A morte é parte constitutiva da condição humana e desde muito tempo é também social e culturalmente associada à velhice (Santos, Faria, y Patiño, 2018). É um fenômeno do ciclo vital, ganhando contornos específicos quando se associa à velhice. Parece que na velhice o encontro com a morte passa a ocorrer de modo repetitivo, estando presente na família, na vizinhança e até na própria vida, através da morte simbólica, de forma que quanto mais se vive mais mortes são vivenciadas (Faleiros y Justo, 2019).
Kovács (1992) pontua que certamente a maneira como vemos a morte reflete na forma como somos. Não se trata apenas de um problema no final da vida, quando só então deveria ser lembrada, mas vida e morte estão entrelaçadas ao longo de todo o curso do nosso desenvolvimento. A morte é um objeto social investido de valores, crenças, normas e práticas, em torno do qual são também construídas representações sociais. As representações sociais são formas de conhecimento prático elaboradas e compartilhadas no meio social a partir de um conjunto de elementos cognitivos, ideológicos, normativos, crenças, valores, atitudes, opiniões, informações e imagens, os quais participam da construção de uma realidade comum (Jodelet, 2001).
A literatura nacional tem apontado que representações da morte e da velhice aparecem imbricadas entre pessoas idosas (Oliveira, Pedrosa, y Santos, 2009). A velhice emerge como “etapa que aponta para temporalidade e para finitude do ser humano” (Fernandes y Andrade, 2016, p. 55), despertando sentimento de tristeza, angústia e solidão. Ao mesmo tempo em que “a morte passa a ser representada como algo bom e até desejado” (Brito, Belloni, Castro, Camargo y Giacomozzi, 2018, p. 4) quando remete para a representação da velhice como declínio.
No Brasil, mudanças na pirâmide etária estão em curso e levam a pensar sobre a qualidade de vida e o processo de envelhecimento. Cada vez mais, a ideia de pessoas idosas independentes, ativas e autônomas (Santos et al., 2018) contrasta com mudanças na dinâmica da sociedade e na estrutura familiar, no tamanho e conformação destas, em um contexto no qual formas de cuidado com a população idosa tornaram-se objeto de preocupação (Camarano y Kanso, 2010). Ainda há poucos dispositivos de cuidados que possam atender à crescente necessidade gerada pelo aumento da população idosa. As instituições de longa permanência para idosos (ILPIs), fundadas na filantropia e conhecidas historicamente como asilos, são os principais locais destinados ao atendimento dos idosos na modalidade de longa duração (Camarano y Kanso, 2010). Pelo ritmo da mudança demográfica, a tendência é que as ILPIs se tornem cada vez mais locais de moradia para pessoas idosas (Duarte, 2014). Contudo, a produção sobre as vivências de pessoas idosas institucionalizadas ainda é incipiente (Brito y Moreira, 2018).
No pensamento do senso comum, as ILPIs ainda guardam uma aproximação com a morte, carregando o estigma de ser para muitas pessoas idosas, o último lugar antes de morrer: “um conjunto de processos sociais conduziu a uma representação social hegemônica da estrutura residencial para idosos como algo de negativo” (Daniel, Brites, Monteiro, y Vicente, 2019, p. 216). No contexto português, Daniel e colaboradores (2019) mostram que idosos representam as ILPIs como “cemitério”, “fim” e “outro mundo”. As representações sociais da morte e da experiência de residir em ILPI parecem se entrelaçar e dar sentido à vida de pessoas idosas institucionalizadas. Considerando que as representações sociais diferem entre os contextos, sendo construídas conforme o cenário sócio-histórico-cultural em que determinado grupo se insere (Jodelet, 2001), presume-se que cada comunidade desenvolverá modos específicos de lidar com os objetos sociais, como a morte, atribuindo-lhes diferentes significados.
Em função da sua natureza jurídica, as ILPIs se diferenciam em termos de modos de vida, incluindo qualidade de assistência e perfil dos residentes, instiga-nos a saber se as representações sobre a morte nestes contextos apresenta aspectos comuns e em que medida se diferenciam. Diante disso, as seguintes questões norteiam nossa pesquisa: quais os conteúdos representacionais que circunscrevem a morte e o morrer em contextos de ILPIs? Há relações entre representações sociais da morte e a natureza da ILPI (pública, privada ou privada sem fins lucrativos)? A presente pesquisa teve como objetivo compreender as representações sociais da morte em três contextos distintos de institucionalização
Método
Participantes
A pesquisa foi realizada durante o ano de 2019, em três ILPIs localizadas na cidade do Recife, sendo uma pública, uma privada sem fins lucrativos e uma privada. Participaram do estudo 15 voluntários idosos (11 mulheres e 04 homens), sendo cinco de cada uma das instituições, com idade entre 63 e 95 anos e de ambos os sexos. O número de homens na pesquisa é bem inferior ao de mulheres, pois além do número de residentes do sexo masculino ser significativamente menor, a maioria apresentava quadros demenciais e comprometimento do estado de lucidez (critérios de exclusão adotados no recrutamento). As instituições indicaram potenciais participantes que eram incluídos após concordância com o estudo, o que explica o número pequeno de entrevistadas em cada instituição. A maioria dos participantes declarou possuir uma religião (14), sendo o Catolicismo a mais mencionada (7), seguida do Protestantismo/Cristianismo Evangélico (4), Espiritismo (2) e Umbanda (1). Quanto ao estado civil, 8 participantes declararam-se solteiras (os), 5 viúvas (os) e 2 divorciadas (os). O número de filhos variou de 1 a 7, porém a maioria (8) declarou que não possui filhos. Duas idosas declararam não terem nenhum grau de escolarização formal, os demais variaram de Ensino Fundamental Incompleto a Ensino Superior Completo. O tempo de institucionalização variou de 2 meses a 16 anos.
Instrumento de coleta e análise de dados
Foi utilizado um roteiro de entrevista semiestruturada (questões relacionadas à vida da pessoa na ILPI - motivos para a institucionalização, rotinas, perspectivas de futuro) e um questionário de identificação (perfil dos residentes em cada uma das instituições, considerando religião, estado civil, número de filhos, escolaridade, tempo de institucionalização, entre outras informações).
As entrevistas foram gravadas após consentimento das participantes e após transcritas, submetidas à análise de conteúdo temática (Oliveira, 2008). Para identificação dos temas, foram recortadas unidades de registro (UR) que traduzem frases ou conjunto de frases impregnados de representações sobre a morte e morrer. As UR foram agrupadas e contabilizadas, delimitando os grandes temas que emergem através da interação entre pesquisadora-participante.
Resultados e Discussão
Foram delimitadas 09 categorias temáticas sobre morte e morrer nos três contextos de institucionalização (Tabela 1). As categorias estão apresentadas em função da saliência e articulação de sentidos no corpus das entrevistas e caracterizadas a partir das variações entre os contextos de institucionalização nos quais se expressam.
A categoria mais saliente foi - Posicionamento diante da morte -, contendo 117 UR, presentes em todas as entrevistas. Essa categoria envolve uma dimensão atitudinal que revela de que forma a morte é avaliada pelos idosos institucionalizados. Elementos como medo, resignação, conformismo (ideia de morte como universal e inevitável) e naturalidade se apresentaram com destaque. Nas três ILPIs, a morte é considerada parte do ciclo da vida, destacando-se seu caráter universal e inevitável:
É natural a morte. A morte é algo natural, assim como você nasce, assim também você vai partir. Às vezes vai partir já com 90, 100 anos. Tu vai partir na tenra idade. Às vezes nasce hoje, amanhã já vai (...) (Celina, 81 anos, ILPI privada sem fins lucrativos).
Na ILPI pública, parece haver uma espécie de conformismo, acompanhado também do sentimento de impotência diante de algo que não pode ser mudado e/ou evitado: “Filha, é difícil, mas é uma coisa que tem que existir (Benedito, 65 anos, ILPI pública); “A morte é muito triste, minha filha, a gente não pode fazer nada” (Bernadete, 69 anos, ILPI pública). O medo da morte também é expresso como medo da morte trágica e medo da solidão. Marinete se apavora diante dessa possibilidade, especialmente se a morte vier a ocorrer no hospital: “hoje em dia eu tenho pavor. É. Principalmente, estar no hospital porque eu trabalho em hospital e sozinha, nunca. Deve ser péssimo” (Marinete, 64 anos, ILPI pública). Marinete apresenta-nos o retrato da morte interdita, que com o desenvolvimento da tecnologia deixou de ser familiar e foi transferida para os hospitais, tornou-se também uma morte solitária, marcada pelo temor e negação (Ariès, 1977).
No contexto da ILPI privada sem fins lucrativos, a morte desperta sofrimento, tristeza e saudade, porém o medo não foi referido pelas idosas. Acreditam em uma intervenção divina, que estão sendo amparadas por Deus nesse momento e que a condição de quem morre, inclusive, pode ser melhor do que a de quem está vivo: “É mesmo. Porque se são todos salvos, faleceram, maravilha. Tá melhor do que eu que ainda tô aqui, sofrendo as consequências e eles já partiram” (Celina, 81 anos, ILPI filantrópica). Com exceção de uma idosa, as demais residentes da ILPI privada sem fins lucrativos que participaram do estudo são evangélicas.
Na ILPI privada, os idosos também não referiram temor diante da morte. Segundo Esmeralda, por exemplo, a morte é pior para quem fica:
Morrer é uma coisa boa. A perda é muito ruim. A perda é um negócio horrível. E eu acho a morte para a gente que fica é pior. (...) Eu no dia que eu morrer, eu digo eu sou feliz (Esmeralda, 79 anos, ILPI privada).
Os posicionamentos diante da morte na ILPI privada incluem também certo distanciamento, o que poderia ser traduzido numa espécie de resignação, como no depoimento de Cristina: “Não! Tanto faz. Eu vou morrer e tanto faz. Mais cedo ou mais tarde eu sei que vou morrer. Não queria morrer agora, mas quando for a minha vez, aí eu vou (risos). Pronto” (Cristina, 66 anos, ILPI privada).
Oliveira (2008) pontua que o significado da morte na vida do idoso passa a ser notório, pois a morte estaria “marcada no corpo, no rosto, nas limitações físicas mais evidentes, nas idas frequentes aos médicos, na aposentadoria (...)” (p.16). Uma das ideias centrais sobre as representações sociais da morte nas ILPIs remete à morte dos outros, normalmente pessoas próximas. Esse é o tema da segunda categoria mais saliente.
Na categoria - Quem morreu ou vai morrer? - foram reunidos os conteúdos cuja temática remetia à lembrança de quem já morreu, como familiares e/ou amigos, ou à consciência de quem ainda irá morrer fazendo referência à própria morte. Nas três ILPIs, a morte de familiares e/ou amigos surgiu com maior frequência quando associada às perdas ao longo da vida: “Ao longo da minha vida só tive duas grandes perdas... Foi meu pai, que foi vítima de um erro médico (...). E da minha mãe também, há dez anos atrás, a maior perda também (...)” (Roberto, 63 anos, ILPI privada).
A morte do outro é geralmente referida como perda, desperta reações e sentimentos referidos pelos idosos como tristeza, angústia, saudade, pânico, medo, pavor, dor, sofrimento: “Edinalva, ela era uma criatura muito bacana, foi muito importante na minha vida, todo apoio ela me dava, era uma irmã amiga e companheira (...). Eu perdi ela, foi uma dor muito grande para mim, em 2012” (Dionísio, 81 anos, ILPI pública). Entre as mortes de familiares, foi dada certa importância ao falecimento de cônjuges, uma vez que a perda do parceiro provoca mudanças no presente e futuro daquele que fica: “Quando meu esposo morreu, eu fiquei com essa coisa, em vez de ser só mãe, eu fui pai e mãe. Com cuidado com o filho na rua, trabalhando, chegando fora de hora né? Por causa do trabalho” (Andréa, 76 anos, ILPI privada sem fins lucrativos).
Segundo Kovács (2005), o idoso acumula ao longo de sua vida várias perdas, desde a infância, passando pela adolescência, as quais vão somando-se as perdas de pessoas de sua faixa etária. Nas palavras de Beauvoir (1990, p. 452), o velho “é alguém que tem muitos mortos por trás de si”. Se envelhecer implica uma vitória da vida, ao mesmo tempo envolve perdas tanto resultantes de mudanças físico-biológicas próprias do desenvolvimento como perdas decorrentes da morte dos outros, entre eles conhecidos, amigos e familiares. Estas geram rupturas em relação ao passado ao passo que também promovem incertezas quanto ao futuro (Hoffmann-Horochovski y Rasia, 2011).
A categoria - Transcendência da morte - remete à ideia de a morte estar para além do sentido material da existência. Ancorados na própria cultura e religião, os idosos representam a morte como um evento em que há uma intervenção divina, assim como refletem acerca da passagem do espírito para outra dimensão, considerando a existência de uma vida após a morte. Estas questões, no entanto, mostraram-se mais evidentes na ILPI privada sem fins lucrativos, este parece ser um contexto que busca também mediar a relação dos residentes com o divino, exercendo uma maior influência na elaboração e compartilhamento de representações sociais de morte atreladas a crenças religiosas.
Práticas e costumes próprios da comunidade religiosa fazem parte do cotidiano da ILPI privada sem fins lucrativos e passam a integrar também o dia a dia dos idosos. Deste modo, as representações sociais de morte são configuradas pela cultura local. As idosas que residem nesta instituição possuíam ligação com instituições religiosas anteriormente à entrada na ILPI. Vale lembrar, nesse contexto, o papel ativo dos sujeitos nesse processo. Jodelet (2001) atribui ao sujeito social um lugar de protagonista, admitindo que este tem um papel ativo no processo de construção da sua realidade, apropriando-se dos elementos representacionais compartilhados e construindo suas representações.
Observamos que aquilo para o que não se tem explicação é remetido a uma dimensão divina. Sendo, pois, a morte, inexplicável, é também divina: “Não, são coisas divinas, coisas que você não sabe explicar, de onde veio, para onde vai (...)” (Benedito, 65 anos, ILPI pública).
Entendendo o mecanismo de ancoragem como a tentativa de enraizar ideias estranhas, transformando-as a categorias e imagens comuns, tem-se nesse processo uma mudança de algo estranho e perturbador em familiar a partir da comparação de um objeto ou ideia com categorias que pensamos ser apropriadas (Jodelet, 2001). Além de função justificadora de comportamentos, a representação da morte como transcendente serve como referencial para justificar os comportamentos durante a vida, preparando-se para a vida após a morte. As representações sociais de morte assumem também a função de orientação, na medida em que servem como guias de condutas de práticas sociais, estabelecendo quais ações seriam aceitáveis e esperadas para que se tenha uma morte de acordo com os princípios religiosos.
Embora tenham estado presentes nas três instituições, os discursos acerca de pagamento parecem ser muito mais enfatizados pelos idosos da ILPI privada sem fins lucrativos. A crença de que após a morte teremos que dar conta das nossas condutas parece ter uma função identitária, permitindo que os indivíduos e os grupos se situem no campo social, possibilitando a formação de uma identidade grupal, como também o sentimento de pertença de um sujeito a um grupo, a partir do compartilhamento de representações sociais (Jodelet, 2001). Na ILPI privada, as representações de morte ligadas à ideia de transcendência não foram muito expressivas entre os idosos, notou-se que a morte como um evento natural, sendo a dimensão biológica mais predominante atrelada à noção de finitude.
A representação social da morte como finitude ancora-se na ideia de que ela seria um fato biológico, um evento natural. Presente também nas ILPIs pública (1UR) e privada sem fins lucrativos (3UR), esta categoria foi mais saliente na ILPI privada (15UR). A morte representa o fim da matéria orgânica, a ideia de finitude remete-nos à expressão “desintegração orgânica”, sugerindo que uma das formas de se compreender a morte é como cessação do orgânico, fim da matéria da qual somos constituídos. Esmeralda afirma que com a morte tudo acaba: “O que é morrer. É acabar. Hum, acabou, pronto. Acabou, não existe mais nada, acabou. Acaba. Pronto, acabou (...)” (Esmeralda, 79 anos, ILPI privada).
A morte não constitui apenas a destruição da matéria, do ponto de vista físico e biológico, mas a de um ser em relação que estabelece interações, de modo que o vazio da morte é primeiramente sentido como um vazio interacional: “Porque a gente não vê mais aquela pessoa, não tem mais aquela pessoa para a gente dar uma palavrinha, um parabéns, um bom dia, uma coisa assim, né?” (Eliane, 83 anos, ILPI privada sem fins lucrativos).
A categoria - Entre a vida e a morte: a doença - foi identificada nas três ILPIs e os conteúdos aqui organizados tratam da associação entre doença e morte. Pitanga (2017) sugere que a doença traz em seu bojo muito mais do que a exposição da fragilidade e da vulnerabilidade do corpo, ela apresenta-nos a possibilidade iminente da morte. Para Gardênia, as doenças aparecem como causas de morte, diferenciando-a da morte chamada “natural”: “Aí passou, a minha irmã morreu, a do meio, morreu, teve aneurisma, aí morreu” (Gardênia, 89 anos, ILPI privada).
Bernadete, residente da ILPI pública, também faz uma relação muito direta entre doença e morte, afirmando que “(…) quando a morte vem, a pessoa tá doente ao mesmo tempo que morre (...)”. Em um estudo de Oliveira (2008) sobre representações sociais de morte para idosos, as doenças foram consideradas limitantes no cotidiano ao mesmo tempo em que aproximam os sujeitos da morte, estabelecendo uma relação entre doença, velhice e morte. A ideia de que a doença viria juntamente com a morte, faz desta última uma espécie de solução para o sofrimento acarretado pela doença, expressa na ideia de que ela traria descanso, como vemos também na categoria ‘morte como descanso’.
O tema da morte como descanso foi identificado nas ILPIs privada sem fins lucrativos e privada. Remete à noção de morte como descanso para a vida, marcada pelo sofrimento e/ou adoecimento, decorrentes ou não do envelhecimento. Representar a morte sob esta perspectiva, diminui o “espanto”, a morte é tratada com naturalidade, relacionando-a a uma experiência positiva. A morte traz o alívio para os sofrimentos da vida, pois ao morrer, o sofrimento cessa. Há casos em que se observa uma ambivalência de sentimentos, a perda e o alívio (Both et al., 2013), como parece ser expressa por Andréa, que, no entanto, demonstra que a dor da perda pode ser atenuada pela convicção de que a pessoa que morreu estaria numa condição melhor do que a que se encontrava, agora descansando: “É bom porque ali mesmo fica sabendo, a gente sabe mesmo que aquela pessoa que foi, descansou, não ver mais sofrendo. Perdeu aquela pessoa, mas é até melhor, vai, descansou” (Andréa, 76 anos, ILPI privada sem fins lucrativos).
Na literatura, a morte como descanso aparece geralmente em relação aos quadros de adoecimentos, especialmente nos casos em que não há possibilidade de cura. A morte nessas situações traduz-se no alívio para o sofrimento decorrente da doença (Both et al., 2013; Góis y Abrão, 2015), o que se aproxima em certa medida da visão das idosas deste estudo. Notou-se que as representações sociais de morte são permeadas pelas representações sociais de velhice, as quais estão ligadas à ideia de doença e perda de vitalidade, o que tornaria a vida, neste período, cansativa: “Eu acho que é um descanso para vida, porque a vida é muito cansada, eu acho (...). A pessoa doente, cheia de dor, saindo direto para ir para o médico, eu saio. Ô meu Deus!” (Josefa, 94 anos, ILPI privada sem fins lucrativos)
Sentidos da morte como descanso não foram identificados na ILPI pública. Esta categoria esteve permeada pela ideia de velhice como declínio e a perspectiva dos idosos da instituição pública é de uma velhice que ainda é produtiva, remetendo ao trabalho. Por outro lado, é importante destacar que as idosas que representam esta categoria possuem idades mais avançadas e no caso de Josefa, é quase centenária, o que as diferenciaria em termos de desenvolvimento e perspectivas de vida.
O estado de adoecimento pode aproximar os sujeitos de uma visão de morte não necessariamente como vilã, mas como a possibilidade de ser uma solução, implicando, inclusive, no desejo de que ela ocorra (Kovács, 2014). Sentimentos ambivalentes sobre o adoecimento e morte são expressos em relação ao suicídio ou da morte autoprovocada.
A temática do suicídio foi marginal nessa pesquisa, o que não sabemos se é por se tratar de um tema “tabu”. Apesar da maior visibilidade nos últimos tempos, especialmente nas campanhas de prevenção ao suicídio, no Setembro Amarelo, uma parcela da sociedade trata, ainda, tal como a morte, o suicídio como “tabu”, de modo que busca-se em certa medida evitar o assunto. A tentativa suicida geralmente relaciona-se ao fato do indivíduo, diante de seus conflitos e sofrimentos, não conseguir perceber as possibilidades de solucionar tais questões, sendo a morte a resposta encontrada como uma solução (Minayo, Teixeira, y Martins, 2016).
Minayo et al. (2016) apontam que a dor do sujeito é ampliada diante de quadros de doenças que não têm cura, especialmente quando essas enfermidades conduzem o sujeito a uma condição incapacitante ou limitante. Esta, pois, pode tornar-se uma condição potencializadora do comportamento e/ou pensamento suicida, o que se pode observar no seguinte fragmento de fala de Roberto: “Pronto, minha vida é essa! Místico, respeitador, amo a vida de paixão, mas ficar inútil, em cima de uma cama dependente, eu mesmo faço minha partida, independente de qualquer religião, até mesmo da minha” (Roberto, 63 anos, ILPI privada).
O suicídio é desaprovado em muitas religiões ocidentais (Barbagli, 2019). Sob esta ótica, é interessante notar também que na instituição privada sem fins lucrativos, o suicídio não fez parte das falas das idosas. Isto levou-nos a refletir acerca do papel da religiosidade nesse contexto. E como produtoras de sentido, as crenças religiosas cristãs mostraram-se muito presentes entre as idosas residentes nessa ILPI, atravessando as formas de pensar e de agir.
Quando se trata do suicídio, a família é considerada um suporte fundamental para o indivíduo, e pode possuir um caráter de força protetora a este mesmo (Cavalcante y Minayo, 2012), de modo que a presença ou ausência familiar, inclusive por morte, acompanhada da quebra dos vínculos afetivos pode ter repercussões negativas na vida da pessoa idosa que vive num contexto de ILPI, onde por si só os vínculos afetivos parecem diminuídos. E esse sentido de perdas de referências familiares pode imprimir no idoso um sentimento de abandono e solidão, culminando também em pensamentos suicidas.
A categoria Rituais Fúnebres emergiu apenas na ILPI privada, em duas entrevistas (9UR), e os conteúdos remetem a ritos que fazem parte de um conjunto de práticas culturais presentes na nossa sociedade, atravessados por elementos religiosos e aspectos culturais, sociais e econômicos. Os rituais fúnebres constituem-se também rituais de vida, uma vez que fundamentalmente buscam a reparação da desordem que a morte causa (Hoffmann-Horochovski y Rasia, 2011). Eles envolvem, por exemplo, costumes referentes às formas de remoção e recordação dos mortos, e sofrem variações entre as culturas, geralmente orientados por aspectos religiosos e legais que refletem a visão que a sociedade tem da morte e do pós-morte.
Esmeralda faz referência ao seu próprio enterro, à presença do caixão, um dos símbolos presentes nesse tipo de cerimônia, e é uma das práticas comuns em nossa cultura: “olhe, no dia que eu morrer, porque que quando a gente morre é boazinha, ninguém chegue perto do caixão e diga era boazinha, que eu me levanto e saio atrás” (risos) (Esmeralda, 79 anos, ILPI privada).
Nesse estudo, observamos que não apenas o contexto social e cultural, mas também econômico implica nas expressões das práticas e rituais fúnebres. A compra de jazigos, por exemplo, pode evidenciar uma diferenciação social e econômica, que se expressa nos modos de lidar com os corpos dos mortos. Não sabemos se os demais idosos não possuem ou apenas não relataram, mas sabe-se que os custos com jazigos podem ser elevados, a depender do tipo e localização, por exemplo. Além de evidenciar as diferenças econômicas, o tipo de jazigo marca também a importância social do indivíduo (Machado y Castro, 2017).
Categoria presente apenas na ILPI privada sem fins lucrativos, a dimensão dos sonhos foi também a menos saliente no grupo. Há uma tentativa de aproximar a experiência onírica e a morte, ancorando-se em aspectos religiosos e atribuindo a ambas um estatuto espiritual. O sonho foi concebido como uma experiência extracorpórea, com separação entre o corpo e o espírito e este último sendo o responsável por conduzir as experiências oníricas. Assim, o sonho é utilizado como comparação à morte, evento no qual também acredita-se haver o desprendimento da matéria e do espírito e a passagem deste à outra dimensão.
Quando você dorme, que você sonha, quem é que você vê muitas coisas no sonho? Não é o espírito da gente que vê aquelas coisas e mostra a gente nos sonhos? Pois, é. E quem viu foi você? Porque seu corpo tá ali, dormindo você tá mortinha, não tá vendo nada, mas o espírito tá andando e a gente quando acorda que "olha, eu sonhei isso, isso, isso e isso". Quem viu? Quem viu? O nosso espírito, né? Porque, muitas vezes, a gente, o nosso espírito vai para lugares diferentes e a gente fica com a matéria, fica dormindo. (Andréa, 76 anos, ILPI privada sem fins lucrativos).
Nota-se que há também uma relação da experiência onírica com a memória dos mortos, de modo que os sonhos seriam um meio de resgatar eventos do passado e trazer à tona a lembrança dos que já morreram:
Meus irmãos faleceram, sonhei com nenhum. Só um que era crente, quando ainda estava vivo, aí eu sonhei, eu passando por ele, assim, aí a voz, uma voz assim de lado de mim disse assim "ele vai descansar, só falta duas horas para ele descansar". No outro dia ele morreu, papai do céu levou. Tão bonito, ficou lindo morto (Josefa, 94 anos, ILPI privada sem fins lucrativos).
Bosi (2003, p. 53) afirma que “a lembrança é a sobrevivência do passado”, assim, o passado retornaria na forma de “imagens-lembrança” e, segundo a autora, a imagem presente nos sonhos e nos devaneios representaria a forma pura do passado. Além disso, observa-se no relato da idosa Josefa que os sonhos permitiriam contato com uma dimensão metafísica, implicando em um tipo de premonição ou aviso para a morte, ideia que é expressa ao referir que havia sonhado com seu irmão ainda vivo e que nesta ocasião uma voz teria anunciado a morte dele, que veio a falecer no dia seguinte, como uma espécie de concretização do sonho.
O sono como experiência que integra os sonhos aparece como um elemento que guarda relações semelhantes com a morte. Segundo Kovács (1992) a relação entre o sono e a morte é uma das muitas semelhanças que historicamente se construíram entre a vida e a morte. A ideia de que os mortos dormem e repousam e o fato de que fazemos orações pedindo para que as almas repousem permitem também essa aproximação. As experiências de sonhar podem ser concebidas como experiências comuns e familiares e vemos que em ambos os casos exemplificados os sonhos serviram para objetivar a morte. A objetivação como mecanismo que permite a reprodução de um conceito em uma imagem (Jodelet, 2001), deu concretude à ideia da morte, transformando-a num objeto familiar, assim como os sonhos.
Considerações finais
A morte é considerada parte do ciclo da vida nos três contextos de institucionalização, que destacam seu caráter universal e inevitável, imperando a certeza de que um dia todos morreremos. A morte desperta reações e sentimentos negativos referidos pelos idosos como tristeza, angústia, saudade, pânico, medo, pavor, dor, sofrimento. A morte do outro é geralmente referida como perda e quando se trata de pessoas próximas, especialmente familiares, gera maior sofrimento. As representações sociais da morte nos contextos estudados apesar de possuírem conteúdos consensuais, apresentam particularidades em cada contexto, sendo atravessadas por aspectos do desenvolvimento, mas também por elementos sociais e culturais dos contextos nos quais os idosos estão inscritos.
Na ILPI pública a morte é encarada com resignação, parece haver uma espécie de conformismo, acompanhado também do sentimento de impotência diante de algo que não pode ser mudado e/ou evitado, além disso esteve presente o medo da morte trágica e medo da morte solitária. Neste contexto, crenças religiosas também ancoram formas de pensar a morte, exercendo certa influência sobre as representações sociais dos idosos. Na ILPI privada sem fins lucrativos, há uma forte ênfase em aspectos religiosos nos quais estão ancoradas as representações sociais da morte. As idosas acreditam na morte como uma intervenção divina e em uma passagem para outro plano, portanto, a esperança de uma vida eterna e mais feliz em certa medida tornam a morte menos temida e mais aceitável. Neste contexto também foi dada certa ênfase à morte como pagamento, de forma que as nossas condutas em vida é que determinarão nosso destino após a morte. No contexto da ILPI privada, teme-se mais a morte do outro do que a própria morte, que é tratada com certo conformismo, como também distanciamento e frieza. Apenas nesta ILPI estiveram presentes elementos referentes aos ritos fúnebres.
A doença foi identificada como um dos elementos de objetivação da morte, que pode ser concretizada na imagem do doente. A morte também representa o descanso para a vida, marcada pelo sofrimento e/ou adoecimento, decorrentes ou não do envelhecimento. Esta ideia esteve permeada pela representação social de velhice como declínio e, talvez, por este motivo não fez parte dos conteúdos representacionais dos idosos da ILPI pública, cuja representação social da velhice é marcada pela ideia de uma vida ativa na sociedade. O suicídio aparece de forma marginal entre as representações sociais dos idosos, estando associado como causa da morte. Este tema não esteve presente na ILPI filantrópica, onde supomos que o suicídio seria considerado um ato contrário às crenças religiosas, especialmente ao crerem que Deus, enquanto onisciente e onipotente, é quem decide quando e quem morre. Diante da necessidade de representar a morte, recorre-se às suas causas e a doença aparece como uma das explicações mais concretas. Apesar de pouco enfatizado, houve a tentativa na ILPI privada sem fins lucrativos de aproximar a experiência onírica da morte. As experiências de sonhar podem ser concebidas como experiências comuns e familiares, assim o sonho foi utilizado como elemento de objetivação da morte.
Como limites da nossa pesquisa, apontamos que não foi nossa pretensão analisar variáveis como idade e gênero, que podem apontar discussões relevantes servindo como pistas futuras a serem exploradas. Por fim, consideramos que ao discutir sobre as representações sociais da morte e suas expressões em contextos de ILPIs possamos abrir espaço para reflexões futuras acerca do papel dos contextos como instrumentos de desenvolvimento e na construção do conhecimento do senso comum.