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Lingüística

versión On-line ISSN 2079-312X

Lingüística vol.27 no.1 Montevideo jun. 2012

 

Lingüística

Vol. 27, junio 2012: 77-97

ISSN 2079-312X en línea

ISSN 1132-0214 impresa

 

 

AS ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS E SUAS IMPLICAÇÕES NA RELAÇÃO ENTRE ORALIDADE E ESCRITA – UM ESTUDO DO PARÊNTESE NA CRÔNICA

 

DISCOURSE STRATEGIES AND THEIR IMPLICATIONS IN THE RELATION BETWEEN SPEAKING AND WRITING – A STUDY OF PARENTHESIS IN CHRONICLE

 

Maria Helena de Moura Neves

Universidade Presbiteriana Mackenzie;

 Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho/ CNPq

mhmneves@uol.com.br

 

 

Com aparato funcionalista o texto discute as relações entre língua falada e língua escrita, defendendo a existência de um sistema gramatical único para ambas, mas também a pertinência de estudos que contemplem as especificidades de uso, algumas delas mais na interação, outras, mais no sistema. A investigação que busca comprovar essas premissas teve como material de exame a crônica, dada a coloquialidade de sua linguagem no geral e dado o engajamento pessoal do cronista, o que envolve estratégias linguísticas disponíveis para explicitação da informação e para captação do leitor. Ela se concentrou no parêntese discursivo, especificamente em sua ligação com o grau de planejamento da linguagem e com a criação de planos de visão e o estabelecimento de relevos. Concluiu-se que o recurso ao parêntese tanto representa informalidade de linguagem (mais para a fala) como evidencia cuidado de elaboração e marcação de estilo (mais para a escrita), ilustrando especificidades.

 

 

Based on functional theory, the text discusses the relations between spoken language and written language, defending not only the existence of a sole grammatical system for both, but also the relevance of studies contemplating specificities of use, some of these being more directed toward interaction, and others being more directed toward system. The investigation that aims to prove these premises used the chronicle as examination material, due to its linguistic colloquialism in general and due to the chronicler’s personal engagement, which involve linguistic strategies available for the expression of information and for the reader’s understanding. The investigation was concentrated on the discourse parenthesis, especially on its connection with the degree of language planning and with the creation of view plans and the establishment of emphasis. It was concluded that the resource of parenthesis both represents linguistic informality (which is more directed toward speaking) and shows the care with preparation and marking of style (which is more directed toward writing), illustrating specificities.

 

 

Palavras-chave: Fala e escrita, estratégias discursivas, funcionalismo, parêntese, crônica.

 

Keywords: Speaking and writing, discourse strategies, functionality, parenthesis, chronicle.

 

 

(Recibido: 27/01/12; Aceptado: 07/03/12)

 

 

 

1. Introdução

 

Neste estudo trago reflexões que recuperam, de certo modo, um capítulo de livro, em que discuto as relações entre estudos da língua falada e da língua escrita (Neves 2010: 151-168). A ele volto, aqui, nas minhas incursões iniciais.

O que tenho defendido é a existência de um sistema gramatical único para ambas as modalidades, ao mesmo tempo que tenho defendido a pertinência de estudos do português falado e do português escrito sob um aparato teórico que contemple suas especificidades de uso. Lembrando, mesmo, o difícil limite de distinção, do ponto de vista das estruturas básicas, entre a língua falada e a língua escrita, levo a questão para os diversos compartimentos da “gramática”, observando, por exemplo, que, em alguns campos, as diferenças se discutem mais fortemente no terreno da interação (modo de produção, condições de uso, interesses e propósitos específicos), enquanto em outros campos as diferenças já se discutem mais especificamente no nível do sistema. Em nenhum dos casos desaparece nenhum dos componentes (sintático, semântico ou pragmático) que se integram para compor a gramática da língua.

De todo modo, não há como deixar de encontrar indicações cabais de uma diferenciação entre língua falada e língua escrita - em si e por si, e em qualquer de suas realizações - no concernente a pelo menos quatro grandes campos: (i) envolvimento interpessoal; (ii) grau e localização temporal do planejamento; (iii) natureza dos procedimentos de formulação; (iv) características da organização do texto.

Caminho, pois, na direção da ideia de que língua escrita e língua falada são metodologicamente comparáveis, insistindo em que isso não implica propor uma dicotomia rígida - fato que, aliás, é de fácil consenso - do mesmo modo que não implica considerar que a simples comparação seja suficiente para caracterizar cada uma das duas modalidades.

 

2. O falado e o escrito

 

Com efeito, o falado e o escrito, excluída qualquer rigidez de dicotomização, diferem quanto aos modos de aquisição, métodos de produção, transmissão, recepção, e, mesmo, estruturas de organização. E, se há diferenças constitutivas de cada uma dessas modalidades, o fato tem repercussão no produto. Não por isso, porém, se dirá que alguma das modalidades constitui um padrão gramatical único.

Sobre as condições de produção, são banais as considerações que passo a fazer - retomando-as resumidamente do capítulo de livro indicado (Neves 2010) - mas elas são relevantes. As relações entre fala e escrita são marcadas como contraste, em primeiro lugar, entre presença e ausência do interlocutor, o que implica contraste entre solidão e participação, no ato de produção. Acresce o contraste entre a necessidade de realização sequencial no tempo real, na fala, e a possibilidade de realizações mais globalmente dirigidas, e com realimentações sem quebras, na escrita. Somam-se as próprias características físicas ligadas à qualidade oral, diferentes da qualidade do veículo gráfico: é até óbvia a indicação de que, na fala, o emissor dispõe de um arsenal de recursos vocais, gestuais e posturais cujos efeitos de sentido podem até sobrepor-se aos dos dados segmentais. Essencialmente caracterizadora da produção oral é a concomitância com a recepção, nesse particular em contraste absoluto com a produção escrita, que já nasce destinada a uma recepção posterior. Ora, quem fala desenvolve o discurso com a consciência - ou, pelo menos, a suposição - de que todo segmento já pronunciado foi recebido pelo interlocutor, e qualquer diferença que haja com o que ele realmente desejava dizer tem de ser reparada face a face com o(s) parceiro(s) de interlocução. Quem escreve, porém, (só) pode reparar seu texto em privacidade. Isso se relaciona, ainda, com as diferentes condições e oportunidades de planejamento verbal em cada uma das modalidades, obviamente com multiplicação das variáveis, em dependência do contexto e do registro de uso. Coroa o conjunto dessas diferenças, aqui grosseiramente apresentadas, o contraste entre a possibilidade (e a ameaça) de silêncio que envolve a interlocução oral e a ausência de possibilidade (e de perigo) de silêncio que marca a produção escrita: do falante se espera que fale durante todo o tempo que lhe é dado, isto é, que tenha a palavra enquanto tem o turno, mas quem escreve não sofre essa pressão.

Se vamos às estratégias que, com ou sem dicotomização, têm de ser reconhecidas numa comparação entre produção oral e produção escrita, fica muito mais evidente a necessidade de relativizar as diferenças, na direção de considerar distintas produções orais e distintas produções escritas. Por isso, neste particular, a mais explícita amostra está na comparação entre uma linguagem falada que se constitui como fala espontânea, a qual tem planejamento simultâneo à produção (de que é protótipo a conversação coloquial), e uma linguagem escrita que se constitui como produto ligado a (forte) planejamento prévio. Não é esse tipo de amostra que aqui contemplo. Pelo contrário, como veremos: minha descrição, que é de língua escrita, tem foco no gênero crônica (portanto, um tipo de escrita “leve”), que examino em contraposição a análises já disponíveis (Jubran 1999, 2006; Neves 2006) do material de língua falada do NURC - Norma Urbana Culta (portanto, um tipo de fala “escolarizada”, além de “formalizada”).

Ou seja, quanto ao córpus de exame, parto justamente de aproximações, não de dicotomias.

Com essa relativização, e mesmo assim, relaciono alguns contrastes, novamente com base no capítulo de livro citado (Neves 2010). Em princípio, parece que, na fala espontânea, há de ver-se maior ênfase naquilo que se quer comunicar e no próprio ato de interação, enquanto na escrita (bem) planejada vai ênfase (maior, ou menor, a depender do tipo de atuação e do gênero do discurso) no como dizer para bem dizer. E é aí que pesa o “literário” de algumas produções: aqui, da crônica. Seja qual for o tipo de situação, considerado o suporte em que se vaza cada uma das modalidades, pesa sobremaneira o fato de que, na interlocução oral, a voz dos parceiros entra numa linearidade concertada, pactuada em presença, enquanto a linearidade estrita da produção escrita tem desenvolvimento na linha no tempo, ligada concretamente à linha do espaço. Essa diferença no processamento das duas modalidades aponta para a implicação, na interlocução oral, de monitoramento da produção (tanto do que já foi dito como do que se está a dizer) e também da recepção (sempre simultaneamente ao planejamento), enquanto a produção escrita, em princípio, desvincula-se de monitoramento, prendendo-se, pelo contrário, à abertura para número indefinido de voltas e releituras do produtor. Acrescente-se o peso de restrições ou interrupções no ofício de elaboração do texto falado, em contraste com a total liberdade que, no seu isolamento, quem escreve tem para avaliar, direcionar e redirecionar sua elaboração textual. Coroam-se essas indicações com o contraste que há entre a impossibilidade de quem fala controlar permanentemente seus enunciados já produzidos, e o total controle que quem escreve tem de tudo aquilo que enunciou, dado o registro gráfico à sua disposição.

É exatamente neste ponto da argumentação que chamo à reflexão duas estratégias linguísticas de formulação textual absolutamente condicionadas ao controle ou ao não controle imediato das formulações - a parentetização e o uso de marcadores discursivos - que de modo muito particular podem ser avaliados quanto aos dois diferentes modos veiculares de uso da língua: o falado e o escrito.

Obviamente - volto a dizer - toda essa questão estará sendo imperfeitamente vista se uma visão dicotômica radical opuser de um modo irrefletido os extremos das duas modalidades: a língua falada informal, distensa, e a língua escrita formal, cuidada. E, exatamente por isso, como apontei, entro nessa questão examinando uma modalidade de língua escrita que, embora literária, tem sido vista como permeada de características da língua falada de todos os dias. De outro lado, valho-me de um aparato desenvolvido no exame de uma modalidade de língua falada que, em princípio, é menos distensa e menos informal do que uma conversa espontânea de esquina, a do NURC - norma urbana culta - que, como todos sabem, foi gravada com conhecimento dos falantes, em uma situação formalizada.

Com grande insistência no perigo de traçar-se uma dicotomia entre língua falada e língua escrita como se a escrita fosse desligada das condições concretas de produção, também venho tratando o fato de que a segmentação de unidades menores no texto se governa diferentemente na língua falada e na escrita. Sabemos que a Análise da Conversação tem instituída uma série de unidades - turno, troca, intervenção, ato - e, por outro lado, tem muito relativizada a pertinência da unidade “oração” como básica no enunciado[1], fato evidente nas conversações espontâneas, em que poucas vezes se encontra uma frase absolutamente completa (raramente uma frase sem alguma intervenção do interlocutor, quando menos um simples olhar, um gesto, um muxoxo ou um riso). Na linguagem escrita, por outro lado, gestos, olhares, risos - e até silêncios - têm de ser sugeridos, descritos, narrados, e só assim se compõe a cena.

Aqui já começo a entrar no meu universo de análise para este estudo, que é a crônica (língua escrita com alto grau de coloquialidade, que toca a natureza da língua falada), sempre buscando aproximações, porque é com elas que se chega à gramática da língua: aquela que rege enunciados em qualquer suporte que permita a linearidade da linguagem. Entretanto, já está reconhecido, aqui, que a regularidade linguística, que subjaz indiferentemente à produção oral e à produção escrita, coexiste com características organizacionais peculiares de cada modalidade, especificamente com características de cada gênero de composição, naquele suporte.

Estabeleço como córpus central de análise 100 crônicas que estão publicadas no volume As cem melhores crônicas brasileiras (Santos 2007), os quais abrangem o longo período que vai de 1850 a 2000[2]. Algumas indicações se referem, ainda, a crônicas que foram examinadas em Fargoni (1993) e Silva (2007).

É verdade, afinal, que as diferenças e semelhanças que os produtos de elocução oral e elocução escrita apresentam entre si fazem parte do próprio objeto posto em exame quando se procede à análise desses produtos. Assim, fenômenos ligados à oralidade, como repetições, superposições, patinações, truncamentos, parentetizações, buscas de denominação, etc., a que já me referi, são o ponto de partida - e, muitas vezes, até o foco - na análise da língua falada, começando o trabalho pela necessidade de decisões sobre o modo de preservá-los, tratá-los, já que, sem eles, o enunciado se desconfigura e se desfigura. Se abrigados na linguagem de suporte escrito (qualquer que seja ela), esses fenômenos conversacionais nascem por outra via, a da reprodução, a da simulação, porque eles são “pensados”, e não espontâneos: vêm de uma estratégia que tem diferentes móveis e diferentes processamentos. Pode-se dizer que a língua de suporte gráfico, quando os abriga, compõe o registro deles quase como um empréstimo da língua falada, e especialmente é levada a isso para obter marcar a função interpessoal da linguagem - por exemplo, para captar a “benevolência” do leitor -, desse modo buscando, por exemplo, a naturalidade que a língua escrita inevitavelmente perde. Já adiantando a análise, é o que mostram estas ocorrências de crônicas da nossa obra de exame:[3]

 

1   Vocês compreendem, ? (Stanislaw Ponte Preta, III: 127)

2   Vamos deixar logo uma coisa bem clara: eu não sou boiola. Já escuto as risotas pelas, hum, costas. 

     Hum, ele era ligadão  na mãe, humm...” ou “Hum, já vi esse filme antes, Psicose.” (Arthur  Dapieve, VII: 291)

3   Andou perguntando:

     ─ Pode ser dez coroinhas? Pode? (Nelson Rodrigues, IV: 179)

4  Nervos devidamente colocados no lugar, tive um acesso de choro. Nada de buáááááá e sniff, coisa de criança. Sou da Zona Norte. Foi assim: aaammmhhhnnnn!

5   Vendo que eu havia conseguido o completo domínio de minha emoção, Mari Lúcia continuou:

     ─ São gêmeos.

     aaaiiiiimhhnnnhhhiiiigrfssss! (Aldir Blanc, VI: 240)

6   ─ Estou me apresentando para... atchim!

     ─ O senhor está resfriado?

     ─ Não - atchim, atchim, atchim etc. (Marcos Rey, VI: 293)

7  Você dizia “Eu deixo, eu deixo”, e eu dizia “O quê? O quê?”, até que um dia. Um dia minhas enzimas tocaram as suas e você gemeu, meu amor. Assim, assim. (Luiz Fernando Veríssimo, VII: 298)

 

Por aí vai a reflexão que aqui trago. Para isso, há algo a dizer sobre o gênero crônica literária, que é o objeto de exame. Ela já entra em análise com a indicação de que possui um alto grau de coloquialidade, o que toca a tipicidade da língua falada, mas, por outro lado, se elabora em suporte escrito, o que reverte, absolutamente, a natureza da língua falada.

 

3. A crônica

 

Sabemos que a crônica é, hoje, um gênero de trânsito jornalístico por excelência, nascido de um gênero literário de natureza histórica. Entretanto, embora um leitor (apressado) de jornal ou de revista não leia uma crônica naquela atitude (mágica) de quem se põe a ler um romance, impossível não acabar a leitura sem perceber na crônica aquele “recheio literário” de que fala Rachel de Queiroz, na Crônica n° J, que foi a sua crônica de estreia em O Cruzeiro, em dezembro de 1945.

Em outro estudo (Neves 2006, estudo não publicado que, de certo modo, é suporte destas reflexões), já observei que uma noção à qual os estudiosos em geral ligam a crônica é a de cotidiano, especialmente porque a crônica se faz de fatos que em si não são tão significativos e que, muitas vezes, passam até despercebidos, mas que, nas mãos do cronista, são recriados como “um momento lírico, uma reflexão filosófica ou um simples comentário” (Tufano 1978: 222), porque sua ironia, seu lirismo, seu humor ou sua sátira muito podem extrair dos fatos (Sá 1987: 11), sendo possível até que, como diz Marchezan (1989, apud Fargoni 1993: 46), uma crônica nasça da falta de assunto.

Outra característica da crônica - decorrente da anterior - é que ela se faz, muitas vezes, de uma permeação das características de diversos gêneros. Basta lembrar que, entre as crônicas de Rachel de Queiroz publicadas em O Cruzeiro, estão (atentando-se para os grifos): um Bilhete de parabéns (em agosto de 1946), uma Carta a Emília, Miss Brasil (em junho de 1955), uma Carta a Daniel Pereira Editor (em agosto de 1966) e um Bilhete para Herman Lima (em junho de 1967). E entre as crônicas do livro As cem melhores crônicas brasileiras, que é a fonte de meu banco de dados (Santos, 2007), também se encontram, por exemplo: um Dialogando com o público leitor, de João Ubaldo Ribeiro (VIII: 257-260); uma Carta Aberta para um amigo além-mar, de Carlos Heitor Cony (VIII: 334-336); Máquinas de coser, de José de Alencar, que é, literalmente, uma carta, com todas as suas partes (I: 36-40); Queixa de defunto, de Lima Barreto, que, após apenas três linhas de introdução, insere uma carta (I: 34-35).

Novamente recorro a Neves (2006), em que, examinando o modo como se apresentam diversas crônicas de Rachel de Queiroz, arrolei como traços bastante definidores do gênero “crônica” estes que agora resgato, a fim de considerar sua afinidade com a língua falada: (i) alto nível de contextualização: uma crônica é uma peça de época; ela traz à cena acontecimentos de seu tempo (ou de algum outro tempo que de algum modo seja relevante para o seu), e, consequentemente, liga-se determinantemente a costumes, modos de vida e crenças; (ii) alto nível de engajamento pessoal: uma crônica deixa ver quem a cria, traz sua perspectiva, sugere seus interesses sem necessariamente revelar o próprio autor, e, ao mesmo tempo, engaja o leitor mediante a comunhão desses interesses; (iii) temática variada: a inserção do texto na vida contemporânea, ou no modo de vida de algum outro tempo trazido ao presente, aliada à multiplicidade de interesse de que o autor povoa esse gênero, garante-lhe uma gama inesgotável de temas e figuras; (iv) simplicidade formal e vivacidade de estilo: uma crônica é uma peça breve, leve, de leitura fácil e descompromissada, digerível sem esforço, mas nem por isso banal.

Nesse estudo ainda propus que o engajamento pessoal do cronista leva a grande empenho por obter uma recepção que recrie no leitor, do modo mais efetivo possível, ideias e intenções, o que implica envolvimento total das estratégias linguísticas que possibilitam tal obtenção[4]. Entre essas estratégias em cuja base está a coloquialidade da linguagem, ocorrem muito marcadamente as inserções acrescentadoras ou explicitadoras de informação (como os parênteses) e as estratégias de captação do leitor (representadas, entre outros, pelos marcadores discursivos)[5]. Nos limites de espaço de um artigo, aqui só falarei dos parênteses.

 

4. O parêntese

 

O parêntese é uma das estratégias de discursivização e de textualização de maior relevância, pelo que traz de representação de hierarquias: (i) em todos os níveis de constituição do enunciado (tanto na sintaxe, ou seja, no sintagma, na oração e na frase, quanto além dela, nas porções maiores); (ii) em todos os planos de funcionamento linguístico (tanto na comunicação de conteúdos quanto na troca interpessoal); (iii) na própria construção do texto (naquela zona que fica no domínio da “função textual”, tal como proposta em Halliday, 1994).

O parêntese tem sido estudado particularmente - o que parece bastante óbvio - em ocorrências da língua falada. Sirva de feliz exemplo Silva e Crescitelli (2006: 82), que coloca a parentetização entre as estratégias ligadas a “interrupção com retomada" do texto, aquela que “tem a função de sinalizar prospectivamente a ocorrência imediata a ela de diferentes estratégias de construção o texto falado”. Ainda sirva de argumento Castilho (1986: 82), que fala da estrutura parentética como um segmento de fala adendado a um primeiro, depois da sua formulação, “numa espécie de ideação posterior”, observação de - ressalve-se - já abre para a importância dessa estrutura em qualquer suporte de produção linguística.

Atravessando-se em algum ponto do desenvolvimento do tópico discursivo[6] e criando um desvio desse tópico por alguns instantes, o parêntese acaba incorporando-se ao que vinha sendo dito, de tal modo que o que segue se formula com base nessa incorporação.

Se na fala tal estratégia é, em geral, vista como decorrência do baixo grau de planejamento dessa modalidade de linguagem (por exemplo, pela necessidade de acrescentar-se informação que foi “esquecida”, na formulação), na escrita, entretanto, ela parece ligar-se muito fortemente a uma construção de planos de visão e a uma forte marcação de relevos (portanto, a serviço do cuidado de elaboração), e, por aí mesmo, parece ligar-se, determinantemente, a estilo. 

A verdade é que, na linguagem escrita, o parêntese tanto pode representar a informalidade da linguagem falada (especialmente nos diálogos) como pode evidenciar cuidado de elaboração e marcar estilo, ou, ainda, as duas coisas ao mesmo tempo, que é o que se pode ver no nosso material de exame.

Para melhor acompanhamento de algumas análises, faço aqui um breve apanhado da classificação oferecida por Jubran (1999: 131-157, 2006: 301-357) - e que adoto, com pequenas alterações - das funções textual-interativas desse tipo de segmento que é o “parêntese” discursivo. A classificação se pauta nos tipos de foco que são estabelecidos na parentetização, que são quatro:

 

1) foco na elaboração tópica do texto (mais intratextual, mais ligado ao conteúdo e à organização formal - formulação e estrutura - do enunciado);

2) foco no locutor (referente à posição assumida pelo locutor na situação de enunciação: o locutor se introjeta no texto);

3) foco no interlocutor (referente ao envolvimento dos interlocutores com o ato de fala que executam: o locutor visa especialmente à inteligibilidade do texto);

4) foco no ato comunicativo (mais extratextual, mais ligado à situação de discurso).

 

Eu lembraria que toda essa catalogação é muito gradual, que a função de “relação entre participantes de enunciação” e a função de “situação de enunciação” continuamente se interpenetram, daí a razão dessa minha expressão relativizada: “mais” intratextual e “mais” extratextual. Eu diria, ainda, que há um percurso que vai do “mais” intratextual (foco na elaboração tópica) até o “mais” extratextual (foco no ato comunicativo), passando pelo “mais” subjetivo (foco no locutor) e pelo “mais” intersubjetivo (foco no interlocutor)*.

Cabe indicar que a crônica é muito particularmente oferecida a exame de tal tipo. Como registrado no estudo anterior não publicado que citei (Neves 2006), a crônica talvez seja o gênero escrito que mais represente a interação escritor-leitor, e ocorre que, nela, de fato, são bastante frequentes os desvios relativos ao tema, à avaliação do tema, à formulação linguística, à construção textual e à enunciação, conforme se verá nas análises. Há que ressalvar peculiaridades estilísticas de determinados autores, obviamente.

Voltando-se à questão do estabelecimento de focos na classificação dos parênteses, são visíveis as intersecções, especialmente no caso de uma ativação privilegiada da “função interpessoal” (Halliday 1994), caso específico da linguagem falada. É o que também sugere Jubran (1999: 134), quando diz que os parênteses que recaem preponderantemente sobre o tópico discursivo fazem diminuir “a expressão do processo interativo na materialidade linguística do texto”.

 

5. A análise

 

E vejamos o que nossas crônicas nos mostram.

 

5. 1. A marcação

         No confronto entre fala e escrita, parece interessante iniciar as observações exatamente pela marca gráfica que sinaliza a existência de um parêntese discursivo. Na reprodução de língua falada[7] essa sinalização é absolutamente técnica, decidida por regras estabelecidas para simples transcrição, ou seja, ela não tem nenhuma pertinência para análise, exatamente porque não se liga à linguagem em interação, apenas se concretiza como expediente de registro gráfico. O que colho nesses estudos que me servem de fonte é a ausência total de algum diacrítico que tenha sido especialmente destinado a registro de parentetização na escrita. A presença de três pontinhos (...), que muitas vezes delimita um parêntese, é, na essência, marca de “pausa”, nas normas de transcrição do NURC. Ou seja, a existência, ou não, dessa marca gráfica refere-se exclusivamente à presença (muito frequente) ou à ausência (pouco frequente, e mais ocorrente na fala do documentador, não dos informantes), de uma pausa oral que porventura exista na(s) fronteira(s) de cada parêntese:

 

8     L2 Eu acho que comer bem é dosar coisa ... sem uma preocupação científica pra não ... não digo que não exista isso ... mas eu ... o meu comer bem é esse ... dentro do possível uma coisa ... não ... eu quero fugir do termo balanceado ... mas comer bem é poder ... ahn ... juntar numa determinada refeição ... uma série de coisas (D2 POA 291: 48-54)

9     nós vamos reconhecer bisontes ... ((vozes))... bisonte é o bisavô ... do touro ... tem o touro o búfalo:: e o bisonte MAIS lá em cima ainda ... nós vamos reconhecer ahnn:: cavalos ... nós vamos reconhecer veados ... sem qualquer (em nível) conotativo aí ... e algumasa vezes MUIto poucas ... alguma figura humana (EF SP 405: 131-40)

10   L2 uma das coisas fundamentais de qualquer preparo de prato ... eu pelo menos penso assim  ... quer dizer ... é a minha opinião ... é que as pessoas ... ao ... ao ...ao comerem ou saborearem um prato fiquem sempre perguntando como é ... como foi feito (D2 POA 291: 127-32)

11  L2 isso é um problema econômico é o mesmo caso agora vai entrar o técnico pra dar a/a satisfação acontece o seguinte a sinalização ... é um / uma etapa cara da estrada ... mas é indispensável à segurança do tráfego ... (DDD SSA 98: 33-38)

12  Doc. Agora eu gostaria de saber que tipo de filme além da comédia quando a senhora quer assistir alguma coisa mais séria se É que a senhora às vezes gosta de assistir alguma coisa com mais conteÚdo mais séria que não seja comédia e tal eu gostaria de saber que tipo de filme a senhora mais aprecia ... tá? (DID SP 234: 304-10)

 

Na análise das crônicas aqui efetuada, por outro lado, o ponto de partida foi exatamente a marcação gráfica específica, o que significa que parentetizações porventura pretendidas, mas não marcadas pelo autor do texto, foram desconsideradas, por inseguras. Foram três as marcações que se puderam garantir como fronteiras de parêntese: os parênteses propriamente ditos (uma marca sempre dupla) e os travessões (ou apenas um, antes do segmento, ou dois, em ambas as fronteiras,). A quantificação relativa dessas marcações nas 100 crônicas analisadas está no Quadro 1:

 

 

Verifica-se, na amostra, que, contrariamente ao que se poderia esperar, não são aquelas marcas gráficas que têm a denominação específica de “parêntese(s)” as que assinalam privilegiadamente a parentetização. Em relação ao total, o número das marcas que se ilustram a seguir não chega à quarta parte da amostra:

 

13 Aqui, fazemos verdadeiros compêndios sobre (e sob) bundinhas. Narcisamente, o brasileiro adora a própria bunda. (Mario Prata, VII: 287)

14 Ele não era sueco, não era gigante, não era bêbado, não era um ex-campeão de hóquei (conforme soube depois), era Flamengo, era Rubens. (Paulo Mendes Campos, III: 117)

15 Reconheci, pelo paladar, pelos olhos, certos molhos, certas bossas tipicamente brasileiras (o problema é que eram típicos): feijoada, dendê, folha seca de Didi, Noel Rosa, escola de samba. (Ivan Lessa, V: 228)

16 Já morri que eu sou muito vivo. Além do mais, estou cansando de escrever e ainda vêm estas frases sem pé nem cabeça (como se as outras o tivessem). (Caetano Veloso, V: 200) 

 

Outro resultado também não previsto foi a quase igualdade de número de ocorrências de travessões duplos (muito evidentemente marcações de segmentos parentéticos) e de travessões simples, o que representa, na verdade, alta ocorrência de segmentos parentéticos em final de enunciado (38%), nesta configuração:

 

17 A amante ideal terá sempre na bolsa o lencinho de papel que limpará nosso rosto do batom - mesmo quando o batom for de outra mulher. (Carlos Heitor Cony, VIII: 309)

18 Sou uma espécie de imposto mínimo, e por isso nem sou malandro, nem mendigo, nem um homem como qualquer - porque não quero mais do que isso. (João do Rio, I: 48)

19 A esse não ouso falar - não temos intimidade e ele não parece desejar perguntas que interfiram com sua apressada missão das segundas-feiras à Praça da Figueira ou adjacências. (João Ubaldo Ribeiro, VI: 254)

20 Minha relação com minha mãe não se caracterizava por essa idolatria que certos gays têm por suas mães - e eles devem ter lá os motivos deles. (Arthur Dapieve, VII: 291)

 

De todo modo, a maior parte das ocorrências (quase 40%) foi marcada por travessões duplos, como em:

 

21 A amante ideal terá, mais ou menos, de oito a 12 anos menos que o seu amo e senhor. Nem muito moça para os desvios do gosto e do jeito nem muito velha para lembrar - a nós homens - as mulheres que não deram certo. Pois a amante ideal sempre dará certo. (Carlos Heitor Cony, VIII: 309)

22 Ela voltou para a frente do espelho - com ele ao lado -, fez mais algumas experiências de como poderia usá-la, os dois se olharam e tomaram a decisão: iam comprar. (Danuza Leão, VIII: 323)

23 Aí, se não me falha a memória - e essa é a segunda coisa que mais falha nessa idade -, me lembro que Fernando Henrique, Maluf e Chico Anysio estariam sentados ali comigo. (Zuenir Ventura, VII: 266)

24 Ela examinou, primeiro, as linhas da minha mão esquerda, palpou-me longamente as falangetas - e, tomando o baralho, misturou as cartas, remexeu-as, estendeu-as em leque sobre a mesa - e, antes de falar do meu futuro, começou a falar do meu passado. (Olavo Bilac, I: 55)

 

5. 2. As funções

Quanto à interpretação das funções dos parênteses, que é questão central, e, ainda, com foco nas relações entre fala e escrita, verifica-se, de partida, na análise das crônicas (expressas em suporte escrito), que, nesse gênero, o parêntese pode ter um lugar significativo nas indicações de cena. Isso corresponde à didascália dos gêneros dramáticos e, portanto, toca uma organização interacional do universo da língua falada, embora uma ressalva inicial já deva ser feita quanto ao fato de que esse uso foi encontrado em apenas alguns autores, e, além disso, de um modo que considero bastante ligado a estilo individual. Trago especialmente o exemplo de textos de Mário de Andrade cronista, as quais, na coletânea em exame e nesse particular, se distinguem de todas as outras:

 

25 Eu sei. É que gosto de esclarecer logo toda a minha identidade, o sr. pode examinar os meus papéis. (Fez menção de tirar uma papelada da bolsa arranha-céu.). (Mario de Andrade, II: 77)

26 ─ Muito bem. (Eça nem sorriu por delicadeza.) O sr. pode  dispor de alguns momentos? (Mario de Andrade, II: 77)

27 Quando foi de tardinha escutei um canto de flauta que se aproximava. (Aqui a Sra. Stevens começa a chorar.) Era um pastor nativo que fora levar zebus ao templo. Dei-lhe hospitalidade, e como a noite viesse muito ardente e silenciosa, pequei com esse pastor! (Aqui os olhos da Sra. Stevens tomam ar de alarma.) (Mario de Andrade, II: 78)

28 Cheguei faz dois meses ao Brasil, já estive na capital da República, porém nada me satisfez. (Aqui a Sra. Stevens principia soluçando convulsa.) (Mario de Andrade, II: 78)

29 “O Andaraí sabe que vai perder” - o Láuza tornou-se loquaz -, “mas não faz questão de pontos. Faz questão é da amizade do Vasco”. (Mário Filho, III: 108)

30 Entre gestos delicados e grande tranquilidade, devorou com prazer o cardápio francês - mergulhava a colher na boca, e depois olhava-a com muita curiosidade, resquícios da infância. (Clarice Lispector, IV: 174)

 

É fácil supor que, em linguagem de suporte escrito (como a aqui observada), os parênteses centrados na elaboração do texto (Foco 1) seriam privilegiados em relação àqueles que recaem no locutor, no interlocutor e, principalmente, no ato comunicativo em si (Focos 2, 3 e 4). Na crônica, de fato, verifica-se que esses são os parênteses mais frequentes, o que é significativo[8].

A quantificação geral a que cheguei, seguindo a classificação de parênteses de Jubran (1999, 2006) é indicada no Quadro 2

 

 

Usando ocorrências de meu córpus, posso assim exemplificar os numerosos parênteses com foco na elaboração do texto (80%) presentes no geral dos autores (Foco 1):

 

31 Outra observação: sendo avultado o número de bolsas femininas perdidas no Rio, muitas (senhoras, não bolsas) se resignam a aceitar outra qualquer, em substituição à que perderam. Mulheres procurando bolsas, bolsas aguardando mulheres: desencontros. (Carlos Drummond de Andrade, III: 141)

32 E lá os brancos deixaram o sêmen (do latim sêmen, que significa semente) para a fabricação das mulatas com suas respectivas bundas. (Mario Prata, VII: 288)

33 Imediatamente, o gigante entrou em transe e começou a fazer problemáticas firulas com uma bola imaginária, mas dando a entender cabalmente o quanto ele admirava (admirava é pouco: o quanto ele amava) o malabarismo dos nossos jogadores. (Paulo Mendes Campos, III: 117)

34 Detalhe: em países ricos como a França, a compra de uma echarpe é uma coisa banal e rápida - e aquela nem custava caro -, mas para o jovem casal, via-se, era uma transação importante, e uma mulher que ama não faz uma compra dessas sem a opinião do marido. (Danuza Leão, VIII: 322-323)

35 Como todas o exploravam no mesmo sentido - pois todas estavam a par das mesmas coisas - e como não ocorreria uma divergência de opinião, cada assunto era de novo uma possibilidade de silêncio. (Clarice Lispector, IV: 174)

36 O Pessimista enrouqueceu de raiva. Eu, com gesto familiar, tirei o chapéu às meninas - que imediatamente corresponderam ao cumprimento. (João do Rio, I: 31)

 

Por outro lado, o parêntese com foco no ato comunicativo em si (Foco 4 - ocorrente em 8% dos casos), que é diretamente comprometido com a “garantia da existência da interação verbal” (Jubran 1999: 155), constitui, evidentemente, um esforço em princípio dispensável na modalidade escrita da linguagem.  Assim, pode-se entender que são praticamente peças da língua falada alguns dos tipos de parêntese abrigados nesse rótulo, por exemplo aqueles que, no dizer de Jubran (1999: 156), visam ao “estabelecimento da modalidade do ato comunicativo” (por exemplo, se haverá uma exposição ou um diálogo), ou os que visam ao “estabelecimento de condições para realização ou para prosseguimento do ato comunicativo”, ou os que visam à “quebra de condições enunciativas”, ou, ainda, os que visam à “negociação de turnos”.  Também parênteses com foco no interlocutor (Foco 3 - ocorrente em 5% dos casos) podem ser estimados como raros no discurso de expressão escrita, nomeadamente aqueles que visam a “atribuir qualificações ao interlocutor para a abordagem de um tópico”, a “testar a compreensão do interlocutor”, ou os do tipo deste que está em Jubran (1999: 152-153), e que, portanto, é de língua falada:

 

37 quer dizer uma uma situação... eu vou repetir... muito diferente do início da economia americana... [tá dando pra situá a diferença?] (EF RJ 379: 152)

 

Mas, ainda assim, cabe relativizar. Lembrem-se determinados gêneros de expressão escrita, como o discurso oratório, no qual é crucial a maximização da importância do auditório. E, para a maioria dos gêneros de expressão escrita (assim como em todos os gêneros de expressão oral), lembre-se, também, a grande necessidade de segmentos que “atravessem” a organização tópica exatamente para “evocar conhecimento compartilhado do tópico” (Jubran 1999: 151), como ocorre neste conjunto de ocorrências que contém os únicos cinco exemplos de parênteses com foco no interlocutor existentes no córpus de exame:

 

38 Um dia estava com um amigo português, o cineasta Paulo de Souza, especialista em cinema africano, numa praça de Mindelo, a capital intelectual do país e das bundas (a capital do país chama-se Praia, pode?). (Mario Prata, VII: 288)

39 Alguns ficaram com medo de cobra (macho pode ter medo de cobra, não é contra as normas), outros se queixaram do frio, outros de sono, mas acabamos assentados em nossas posições. (João Ubaldo Ribeiro, VI: 238)

40 Ou talvez fosse porque a bonita, conhecendo o que era, não fizesse força por sustentar o amor de ninguém. Enquanto a pobre da feia - todos sabem como é - aquele costume do agrado e, com o uso da simpatia, descontar a ingratidão da natureza. (Rachel de Queiroz, III: 121)

41 “Seus cachorros são insuportáveis e, se vocês nada fizerem a respeito - estamos no Brasil, tudo é possível - eu vou me embora, me mudo, sumo daqui...” - escrevi algo assim, mais resignado que irritado, o arquivo original sumiu do computador. (Tutty Vasques, VIII: 312-313)

42 Este é o caso bonito - não se aflija - bonito à vista dos outros, porque os outros são sinistros. (João do Rio, I: 31)

 

Entre os parênteses que têm foco no locutor (Foco 2 - ocorrente em 7% dos casos), e que são de variados tipos, alguns hão de ser (salvo em determinados gêneros) ainda de mais baixa escolha na expressão escrita, por exemplo os que visam a “qualificar ou desqualificar o locutor para discorrer sobre o assunto”, como este, que pertence ao NURC:

 

43 como é que são as marcações no estado... [bom você devia perguntar isso ao técnico e não a mim eu sou apenas... um: um usuário das marcações] eu acho que aqui nós já temos certas estradas relativamente bem sinalizadas... (D2 SSA 98: 147).

 

Por outro lado, outros teriam grande papel em qualquer uma das duas modalidades (e em variados gêneros), como os que fazem “manifestações atitudinais do locutor em relação ao assunto” (Jubran 1999: 147-149) e que pertencem, portanto, ao grupo do Foco 2. Estas são algumas das amostras que colhi:

 

44 Mal sabia eu que este demônio já havia escrito para meu esposo anexando Xerox do maldito documento que destruiria a minha vida e a de meus filhos! (Não os mencionei na esperança de poupar-lhes algo de minha humilhação.) Cristina e o Sr. Lobato entenderam-se às mil maravilhas. (Ivan Lessa, V: 211)

45 E também com certa raiva - por que não dizê-lo? - porque o meu interesse fora apenas o desejo teimoso de descobrir um segredo que talvez não tivesse. (João do Rio, I: 48)

46 Quis pedir socorro ao apóstolo; mas o mármore, - ou a vista me engana, ou o apóstolo gosta das suas pombas amigas, - o mármore sorriu e não voltou a cara para não desmentir o estatuário. (Machado de Assis, I: 52)

47 À véspera da partida, nossa amiga levou-nos a jantar no Grande Hotel e - lembro-me perfeitamente - fixou os olhos na mesa vizinha, onde uma família chegada da Bahia abrangia um garotinho de cerca de dois anos. (Carlos Drummond de Andrade, III: 113)

48 Ela prometeu-me - bendito vínculo que nos liga a nós, mulheres! - interceder junto ao Sr. Lobato. (Ivan Lessa, V: 211)

 

6. Considerações finais

 

Afinal, o que se pretendeu mostrar é que, em qualquer enunciado, existe uma mesma gramática da língua que dirige a formulação interacionalmente adequada nas diversas peças de linguagem. As diferenças que, reconhecidamente, hão de caracterizar o falado e o escrito se decidem exatamente pelas estratégias que a capacidade do exercício da linguagem aciona, em cada instância de discurso, de modo a assegurar que o sentido e os efeitos que se obtêm estejam o máximo possível próximos das intenções que moveram o usuário a produzi-lo.

Tratando-se do parêntese discursivo, em princípio há de ser reconhecido que seria a emissão oral que, particularmente, estaria constantemente a exigir o seu acionamento, e, portanto, é por essa relação com o oral que se poderá chegar a algum equacionamento da estratégia, quando se examina um gênero de expressão escrita. É fácil entender que as crônicas dão tranquilo ponto de partida para um exame desse tipo. Foi o que se objetivou fazer aqui, com vista a discutir diferenças por via de semelhanças, e sempre a partir do uso linguístico, entendendo-se que é dessa maneira que se pode tratar tal questão sem colocar preconcepções nas diretrizes.

O exame da crônica mostra-a como um gênero que muito comodamente revela as próprias características que a definem, quando aciona recursos prioritariamente ligados à produção de língua falada. E os parênteses são uma feliz escolha para essa verificação: se vistos pelo seu efeito de encaixar porções do texto (escrito) nas quebras de enunciação que um fluxo de fala exigiria, os parênteses levam para essas criações a descontração e a informalidade que são marca comunicativa da conversação (falada); e, por outro lado, se vistos pela sua motivação de oferecer leitura literária de pequeno fôlego, mas de muita comunhão, eles imprimem muito fortemente nessas criações uma marcação de estilo, tanto na autoria como na configuração do gênero discursivo. 

Fechando com um exemplo extremo de autor que, particularmente (e com belíssimos resultados), marcou suas crônicas com a parentetização, remeto ao trecho de uma crônica de Rachel de Queiroz que segue (também transcrito em Neves 2010: 167). Nele em um mesmo parágrafo, cinco parênteses que se encadeiam criam aquela cadência de oralidade que os parênteses tão caracteristicamente trazem a tantas crônicas pela mão de tantos cronistas, como se pode verificar e apreciar:

 

49 Já o rumo a que me atiro - e com tão pouco resultado que nem entendem o que quero - é mais na linha tradicional dos regionalistas (embora eu tenha horror a essa palavra) - linha traçada pelo velho Simões Lopes e companheiros: apenas tento registrar expressões costumeiras, botar em uso a sintaxe já existente - e aí é que está o ponto - acomodando-me eu a ela, em vez de acomodá-la a mim, como é o caso do mestre Rosa. Enfim, a nossa diferença é que não pode dar nenhuma margem a confusões é que ele compõe a sua música - e que beleza de música compõe o danado do mineiro!  - enquanto eu apenas toco. (Queiroz, 1959: 90)

 

Ainda aproveito colher desse trecho a interessantíssima lição que Rachel de Queiroz nos dá (consentânea com a que aqui defendo) sobre a importância de o autor / o falante não partir de preconceitos gramaticais, não tentar trazer para os arranjos receitas prontas e artificiais, mas, pelo contrário, “botar em uso a sintaxe (....) existente”, “acomodando-se a ela”. Ou seja, botar em uso, na liberdade de sua criação, aquela gramática de que, como usuário natural da sua língua natural, ele tem segura posse e natural controle.

 

 

Referências Bibliográficas

 

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[1] Lembro a emergente Gramática Discursivo Funcional da Holanda, que já coloca no modelo o move (entidade discursiva) como ponto de partida da consideração gramatical (HENGEVELD e MACKENZIE 2008).

[2] A obra divide as crônicas por oito períodos da seguinte maneira: I- 1850-1920; II- 1920-1950; III- os anos 1950 – a década de ouro; IV- Os anos 1960; V- Os anos 1970; VI- Os anos 1980; VII- Os anos 1990; VIII- Os anos 2000.

[3] As abonações entre parênteses registram o nome do autor da crônica seguido da indicação numérica do período (I a VIII) ao qual a crônica pertence, e da página em que se encontra a passagem, na coletânea que escolhi como fonte para as análises (Santos 2007). Dispenso-me, pois, de apresentar cada uma das indicações particulares de cada uma dessas crônicas na seção Referências bibliográficas, ao final deste artigo.

[4] Lembre-se como pertinente o fato de que, em princípio, um leitor de jornal ou de revista lê em intervalos da correria da vida diária.

[5] Faça-se uma ressalva: Uma coisa são os marcadores discursivos que aparecem na parte narrativa ou dissertativa da crônica (em que o autor fala por si) e outra coisa são os marcadores discursivos que aparecem nos diálogos (em que falam as personagens, e em que, portanto, o cronista simula a conversação da linguagem falada).

[6] Ochs (1979: 71) define o parêntese, literalmente como “ruptura do tópico discursivo”. Lausberg (1967: 264), considerando como uma figura de construção importante para definir estilo, considerando-o como uma intercalação estranha à construção de uma oração, e, portanto, como um pensamento que rompe a continuidade da oração.

[7] As ocorrências que apresento são resgatadas do córpus do NURC exclusivamente por via dos estudos sobre parêntese efetuados por Jubran (1999, 2006). Por isso, dispenso-me de oferecer os dados das publicações de textos do NURC, nas Referências bibliográficas.

[8] Devo observar que, para a conversação oral, eu não disponho de uma contagem em córpus que permita a comparação.

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