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Lingüística
versión On-line ISSN 2079-312X
Lingüística vol.30 no.2 Montevideo dic. 2014
Lingüística / Vol. 30 (2), Diciembre 2014: 209-240
ISSN 1132-0214 impresa
ISSN 2079-312X en línea
A HIPÓTESE DO SUBSTRATO NO CONTEXTO DA HISTÓRIA SOCIOLINGUÍSTICA DO PORTUGUÊS POPULAR DO BRASIL
THE SUBSTRATE HYPOTHESISIN THE CONTEXT OFTHE SOCIOLINGUISTICHISTORY OFPOPULAR BRAZILIAN PORTUGUESE
Dante Lucchesi
Universidade Federal da Bahia/CNPq, Brasil
O artigo discute a transferência de estruturas das línguas indígenas e africanas para a gramática de variedades do português popular brasileiro em sua formação. A hipótese do substrato entra na agenda da pesquisa linguística no Brasil desde que o contato entre línguas passou a ser considerado um fator preponderante na história linguística do país, fortalecen do paralelos entre a origem do português popular brasileiro e das línguas crioulas. O artigo apresenta uma importante formulação substratista na atualidade, baseada no conceito de relexificação, e analisa as possibilidades de sua aplicação ao estudo da história sociolinguística do Brasil, considerando sua adequação, fragilidades e potencialidades, dentro da visão adotada aqui de que as variedades populares do português brasileiro passaram, em sua formação histórica, por um processo de transmissão linguística irregular de tipo leve.
Palavras-chave: substrato; português popular do Brasil; historia sociolinguística do Brasil; contato entre línguas.
The article discusses the transferency of structures of indigenous and African languages to the grammar of popular varieties of Brazilian Portuguese during its formation. The substrate hypothesis takes place on the linguistic research in Brazil since contact between languages began to be considered a major factor in the linguistic history of the country, strengthening the parallels between the origin of popular Brazilian Portuguese and creole languages. The paper presents one important substratist formulation in creole linguistics, based on the concept of relexification, and it analyses its possible application to the study of the sociolinguistic history of Brazil, considering its appropriateness, weaknesses and potential, within the view adopted here that, during their formation, the popular varieties of Brazilian Portuguese underwent a process of irregular linguistic transmission of a light type.
Key words: substrate; Popular Brazilian Portuguese; sociolinguistic history of Brazil; language contact.
1. Introdução
A consideração do contato entre línguas como um fator determinante na história do português popular brasileiro – questão retomada, na década de 1980, por Gregory Guy (1981, 1989) e John Holm (1987, 1992), e desenvolvida posteriormente por Alan Baxter e Dante Lucchesi (Baxter e Lucchesi 1997; Lucchesi 2002, 2004, 2008, 2012a, 2013) – aproxima, em maior ou menor grau, as situações de formação do português popular brasileiro das situações de pidginização e crioulização, dentro de uma perspectiva que traça paralelos nítidos entre o contexto colonial brasileiro e as sociedades de plantação do Caribe e entrepostos comerciais na costa da África (onde vicejaram boa parte das línguas crioulas hoje conhecidas no mundo), em função da importação de cerca de quatro milhões de escravos africanos para o Brasil, no período que se estende, grosso modo, de 1550 a 1850. O desenvolvimento dessa perspectiva de análise na agenda da pesquisa linguística no Brasil (Lucchesi et al. 2009) coloca necessariamente em questão como as hipóteses formuladas para a gênese das línguas pidgins e crioulas podem contribuir para a compreensão da formação histórica das variedades populares da língua no Brasil.
As duas principais visões sobre a gênese das línguas pidgins e crioulas que historicamente se opõem e disputam a hegemonia no âmbito da Crioulística são a visão dos universais linguísticos e a visão da transferência do substrato. A ideia de que a gramática das línguas pidgins e crioulas resulta, em grande medida, da combinação dos modelos gramaticais da(s) língua(s) nativa(s) dos falantes adultos do grupo dominado com os itens lexicais da língua do grupo dominante é uma das mais tradicionais na Crioulística (Sylvain 1936; Goodman 1964; Voorhoeve 1973; Koopman 1986; entre outros). Porém, essa visão ficou em segundo plano, nas décadas de 1980 e 1990, com a ascensão no campo da Hipótese do Bioprograma da Linguagem, de Derek Bickerton (1981, 1999), que propunha uma explicação para as características estruturais compartilhadas pelas línguas crioulas ao redor do mundo, independentemente da composição das línguas que concorreram para sua formação, com base na ideia de que a regramaticalização da variedade de língua que se formava nas situações de contato linguístico massivo, abrupto e radical ocorria crucialmente quando da sua nativização, em função do dispositivo inato de aquisição da linguagem, com o qual as crianças nascidas na situação de contato reconstituíam a gramática da língua crioula emergente com base na variedade de segunda língua falada pelos adultos do grupo dominado: um pidgin incipiente praticamente desprovido de estrutura gramatical. Contudo, em face dos crescentes questionamentos feitos à hipótese do Bioprograma da Linguagem de Bickerton, a partir do final da década de 1990 (Roberts 2000; Siegel 2008), a hipótese do substrato têm retomado seu espaço no campo da Crioulística, com profícuas teorizações que lançam luzes sobre a formação das línguas pidgins e crioulas, com uma fundamentação empírica bastante consistente (Lefebvre 1997, 1998, 2001; Lumsden 1999a, 1999b; Siegel 2008).
Neste artigo, será focalizada a aplicação da hipótese do substrato à análise da formação histórica das variedades populares do português brasileiro. Para cumprir esse objetivo, este artigo se estrutura basicamente em duas seções. Na primeira, será feita uma breve resenha de uma das mais importantes teorizações desenvolvidas no âmbito da crioulística, dentro da perspectiva do substrato, que se articula em torno do conceito de relexificação. Essa formulação será avaliada no contexto das especificidades do caso brasileiro, na segunda e última seção deste artigo. Na conclusão, serão delineadas algumas orientações para a pesquisa que vise a identificar possíveis transferências do substrato na configuração estrutural das variedades populares do português brasileiro.
2. A influência do substrato na formação das línguas pidgins e crioulas
Uma das teorizaçõesmais recentes desenvolvidas a partir da hipótese do substrato baseia-se na ideia de que, na formação da(s) interlíngua(s) que dará(ão) origem à língua pidgin ou crioula, os falantes adultos do(s) grupo(s) dominado(s) combinam a forma fonética dos itens lexicais da língua do grupo dominante (a língua de superestrato) com as propriedades semânticas e sintáticas dos itens lexicais correspondentes em suas línguas nativas (as línguas do substrato), em um processo denominado relexificação. Esse conceito tem sido desenvolvido por Claire Lefebvre (1997, 1998, 2001) e John Lumsden (1999a, 1999b), com base, sobretudo, em suas pesquisas sobre o haitiano, um crioulo de base lexical francesa que é a língua materna da grande maioria da população atual do Haiti. O haitiano se formou em uma sociedade de plantação típica, na qual a população de escravos africanos, em sua maioria falante da língua fongbe – uma língua da família kwa, do oeste africano –, excedia em muito o número de colonizadores franceses, numa proporção de mais de dez africanos para cada francês. Em função disso, Lefebvre e Lumsden afirmam que uma parcela significativa do vocabulário do haitiano é formada por palavras que têm a forma fonética do francês, mas são usadas segundo as propriedades semânticas e sintáticas abstratas da gramática do fongbe.
Lumsden (1999a: 130-133) argumenta que a relexificação é um processo recorrente na aquisição de segunda língua por parte de falantes adultos e apresenta dados de aprendizes franceses do inglês e vice-versa, reproduzidos abaixo:
1 *At sixty-five years old they must retire themselves because ...
2 À soixante-cinq ans, ils doivent se retirer en raison …
3 At sixty-five years old they must retire because …
a ‘Aos sessenta e cinco anos, eles devem se aposentar porque…’
4 *Je vais préparer pour la fête.
5 I will prepare for the party.
6 Je vais me préparer pour la fête.
b ‘Vou-me preparar para a festa.’
No exemplo (1), produzido por um aprendiz francês do inglês, o verbo retire é usado de acordo com as especificações gramaticais do verbo correspondente em francês, segundo as quais ele seria um verbo pronominal – cf. exemplo (2) –, mas em desacordo com as propriedades gramaticais desse verbo em inglês – cf. exemplo (3). O contrário acontece na frase em 4, produzida por um aprendiz inglês do francês, no qual falta o clítico – cf. variante padrão do francês apresentada em (6), porque o verbo correspondente em inglês não é pronominal – cf. exemplo (5). Esses são exemplos de relexificação, em que o item lexical da língua alvo é empregado segundo as especificações gramaticais da língua materna do aprendiz adulto de uma segunda língua. Entretanto, nos processos de aquisição sistemática de segunda língua, no qual o aprendiz é treinado para assimilar os modelos gramaticais da língua alvo, esses erros são corrigidos, e a relexificação é eliminada, quando o aprendiz atinge sua meta, ou seja, adquirir uma competência linguística semelhante à dos falantes nativos da língua alvo.
Situação muito distinta é aquela em que se formam as línguas pidgins e crioulas, que também têm como ponto de partida a aquisição de uma segunda língua por parte de uma grande massa de falantes adultos (Wekker 1996; Field 2004; Siegel 2008). A grande maioria das línguas pidgins e crioulas se formaram em contexto de escravidão ou similares (situações outras de trabalho forçado “contratado”), em que o número de falantes dos grupos dominados era muito maior do que os falantes do grupo dominante. Nesse contexto, o acesso que os falantes das outras línguas tinham aos modelos gramaticais da língua dominante era muito restrito. Na verdade, a comunicação inicial entre dominantes e dominados era feita através de um código de comunicação emergencial, denominado jargão ou pré-pidgin e formado por um reduzido elenco de itens lexicais da língua de superestrato. O pré-pidgin seria empregado basicamente para preencher as funções comunicativas básicas, tais como: dar uma ordem ou transmitir informação simples (Siegel 2008). Portanto, para além do restrito acesso aos modelos da língua dominante, na pidginização e/ou crioulização, os falantes das outras línguas também não tinham como objetivo, na maioria das vezes, adquirir uma competência linguística semelhante à dos falantes da língua de superestrato (Rampton 1997). Seu objetivo era somente dispor de código para se comunicar com os indivíduos do grupo dominante e, sobretudo com os demais indivíduos do grupo dominado, já que a maioria das línguas pidgins e crioulas emergiu no seio de comunidades pluriétnicas e plurilíngues, formadas à força, em função da escravidão e outras formas de dominação.
A reestruturação do jargão ou pré-pidgin, que torna possível o surgimento de uma língua pidgin ou crioula, depende crucialmente de sua utilização para a comunicação entre os indivíduos dos grupos dominados (Whinnom 1971). Quando isso ocorre, amplia-se sobremaneira o espectro funcional do pré-pidgin, em razão das relações de cooperação e solidariedade que formam entre esses indivíduos, base para ampliação das funções comunicativas em sua interação verbal. Com um limitado acesso aos modelos da língua de superestrato e, muitas vezes, sem ter a preocupação de reproduzir fielmente esses modelos, os falantes adultos das línguas do substrato vão desenvolvendo o restrito inventário lexical da língua dominante com base nos dispositivos gramaticais de suas línguas nativas. Esse contexto é altamente favorecedor, não apenas da ocorrência de processos de relexificação, mas também da cristalização desses processos na sedimentação de soluções que formarão a gramática na língua pidgin ou crioula emergente.
A expansão funcional e consequente (re)gramaticalização do jargão ou pré-pidgin entre os falantes adultos dá origem ao que se denomina pidgin expandido, variedade linguística que se torna o principal veiculo de comunicação verbal da nova comunidade de fala plurilíngue, não obstante se conserve, por várias gerações, como segunda língua da maioria dos seus falantes.Tal é caso do tok pisin, em Papua Nova Guiné (Mühlhäusler 1986), que tem sido usado como língua de comunicação interétnica em um país com várias centenas de línguas nativas, desde finais do século XVIII; só se nativizando, de forma representativa, a partir da década de 1970, não obstante já fosse usado nos diversos níveis sociais de interação verbal, inclusive na modalidade escrita e nos meios institucionais, no parlamento e no rádio e televisão.
À medida que essa variedade de segunda língua mais ou menos estruturada gramaticalmente vai-se tornando a língua materna dos indivíduos que nascem nessa nova comunidade, vai ocorrendo a emergência da língua crioula. Entretanto, a crioulização pode ocorrer em qualquer ponto do continuum de pidginização, desde o pré-pidgin até o pidgin expandido.[1]No caso das línguas crioulas da costa da África e do Caribe, não se pode afirmar com precisão em que ponto do continuum de pidginização a crioulização ocorreu, pois os únicos dados empíricos disponíveis atualmente provêm das análises dessas línguas crioulas que se fizeram nas últimas décadas, complementadas por análise mais recuadas no tempo, a partir de registros históricos esparsos. No geral, não se dispõe de registros históricos das variedades de segunda língua faladas pelos escravos africanos que deram origem a essas línguas crioulas. Portanto, a base empírica para as hipóteses do substrato decorrem basicamente da comparação atual de estruturas gramaticais da língua crioula com estruturas igualmente atuais da(s) língua(s) que supostamente teria(m) sido hegemônica(s) entre os adultos que formaram inicialmente a comunidade crioulófona.
As teorizações sobre como ocorre a transferência do substrato se baseiam nas correspondências obervadas por esse método de análise, não obstante os problemas empíricos que tal opção enseja. Tais problemas serão comentados adiante. Antes, será feita a apresentação das formulações de Claire Lefebvre e John Lumsden, sobre a formação do crioulo haitiano, que giram em trono do conceito de relexificação. De acordo com Lefebvre (2001) e Lumsden (1999a, 1999b), a relexificação desempenharia um papel central na gramaticalização do pidgin, ao lado dos processos de reanálise e nivelamento dialetal. Nessa perspectiva, o léxico das línguas pidgins e crioulas seria formado da seguinte maneira:
As entradas lexicais dos léxicos das línguas de substrato são copiadas, e as representações fonológicas nessas entradas lexicais copiadas são substituídas por representações fonológicas derivadas de formas fonéticas da língua do superestrato ou por formas nulas. Esse segundo passo é denominado reetiquetagem (relabel). A escolha da forma fonética pertinente da língua de sup
erestrato para reetiquetar a entrada lexical copiada é baseada em seu uso em contextos semânticos e pragmáticos específicos, de modo que a semântica da forma do superestrato deve ter alguma coisa em comum com a semântica da entrada lexical que está sendo reetiquetada[2]. (Lefebvre 2001: 11)
Dessa forma, o resultado da relexificação é uma unidade lexical com uma forma fonética derivada da língua do grupo dominante com as especificações semânticas e sintáticas de uma das línguas do substrato (Lumsden 1999a; Lefebvre 2001). Como exemplos de relexificação de itens lexicais (ou seja, de palavras referenciais), em pidgins expandidos, temos o caso do verbo harim do tok pisin, que deriva do verbo inglês hear‘ouvir’, mas exibe as propriedades semânticas do verbo igub, da língua usan, uma das línguas do substrato do tok pisin. Assim como verbo igub em usam, o verbo harim pode ser empregado em tok pisin, tanto com o significado de ‘ouvir’, quanto de ‘cheirar’ (Reesink 1990: 290). Outro exemplo pode ser encontrado no pidgin das Ilhas Salomão, também na região da Melanésia, no qual o verbo sidaon (derivado do inglês sit down) é usado pelos falantes mais velhos do pidgin salomão de uma maneira absolutamente equivalente àquela do verbo to’oru da língua kwaio do substrato, cobrindo o espectro de significação dos verbos ‘sentar’, ‘viver’ e ‘esperar’ (Keesing 1988: 239). Já o problema da relexificação das categorias funcionais seria mais complexo e igualmente mais relevante, no processo de pidginização/crioulização.
Há um consenso entre os estudiosos do contato entre línguas de que variedades linguísticas como o jargão e o pré-pidgin não possuem categorias funcionais, pelo menos realizadas foneticamente. Uma das razões para isso seria que os falantes adultos das outras línguas não perceberiam as partículas gramaticais da língua alvo, porque, no geral, essas partículas têm uma forma fonética reduzida e átona. Além disso, os próprios falantes da língua alvo suprimiriam essas categorias gramaticais em suas produções verbais, na interação com os falantes das outras línguas, como previsto na teoria do foreigner talk. Lumsden (1999a: 142-143) argumenta que os usuários do jargão ou pré-pidgin formariam as frases utilizando o restrito inventario de itens lexicais extraídos da língua alvo, com base nas categorias funcionais de suas línguas nativas, só que essas categorias funcionais não teriam expressão fonética. Assim, seriam produzidas frases com estrutura superficial idêntica, mas com representações estruturais subjacentes diferenciadas, consoante a gramática da língua nativa de cada usuário. Esse fato explicaria a intercompreensão entre falantes de línguas tipologicamente diferenciadas.
Porém, diferentemente do jargão ou pré-pidgin, os pidgins expandidos e os crioulos possuem categorias funcionais realizadas foneticamente, mesmo que categorias funcionais realizadas foneticamente na língua de superestrato (como a concordância nominal e verbal) não se conservem no crioulo ou no pidgin dela derivado. O que interessa aqui é que, no geral, as categorias funcionais realizadas no pidgin expandido ou no crioulo se diferenciam qualitativamente, em suas propriedades sintáticas e semânticas, da categoria funcional correspondente na língua de superestrato. Considerando os elementos disponíveis no jargão ou pré-pidgin, que é base para o processo de regramaticalização do pidgin ou crioulo, haveria basicamente dois caminhos a serem seguidos pelos agentes da pidginização/crioulização. Um mais evidente seria a fixação de categorias funcionais foneticamente nulas, o que fundamenta a ideia de que os pidgins e crioulos seriam línguas morfologicamente mais simples do que suas línguas lexificadoras (McWhorter 1998, 2001; Siegel 2008).
Outro caminho seria o emprego da forma fonética de palavras lexicais para desempenhar a funções gramaticais, através do processo de reanálise, que Lumsden (1999b: 150) define como a associação da forma fonológica de uma palavra lexical com a entrada lexical de uma categoria funcional no interior de uma mesma língua[3]. É muito frequente a conversão de advérbios ou expressões adverbiais em marcadores de tempo, modo ou aspecto, através da reanálise. Tal é o caso da expressão by and by do inglês, da qual deriva a forma fonética do marcador de futuro em tok pisin bai, através do advérbio baimbai desse mesmo pidgin. Outro exemplo é marcador de futuro lo do crioulo português de Malaca, no sudeste asiático, que deriva do advérbio logo, do português (Baxter 1988).
Haveria, contudo, uma terceira via, que também se tem mostrado bastante produtiva. Trata-se da utilização de palavras gramaticais que têm uma forma fonética forte para fornecer a forma fonética das categorias funcionais do pidgin ou crioulo emergente. O que se observa, entretanto, nesses casos, é que essa forma fonética forte é associada à entrada lexical de outra categoria funcional, através do processo de relexificação aqui referido. Tal é o caso da partícula locativa do francês là, que funciona como artigo definido no crioulo francês do Haiti, bem como da forma foneticamente forte do pronome de 3ª pessoa do plural eux, que também é empregado como pluralizador nominal nessa mesma língua. Vamos examinar agora esses dois casos de relexificação.
Segundo Lefebvre (2001: 14-20), o artigo definido la do haitiano teria sido formado por meio da relexificação, pois há um nítido paralelo de suas propriedades gramaticais com o artigo definido ó do fongbe, língua africana hegemônica no substrato do haitiano. Lefebvre argumenta que o comportamento desse determinante no fongbe e no haitiano se diferencia qualitativamente do artigo definido do francês, a língua lexificadora deste último. Tanto o determinante la (e seus alomorfes a, an, nan e lan) do haitiano, quanto o ó (e seu alomorfe ón) do fongbe exibem as seguintes características: (i) são pós-nominais;(ii) não se flexionam em gênero e número;(iii) têm um valor anafórico obrigatório, indicando que a informação veiculada pelo SN em que figuram já é do conhecimento dos participantes da conversação – cf. exemplo (7); (iv) não podem ser usados com nomes de massa e SN de referência genérica – cf. exemplo (8); e (v) aceitam a interposição de uma oração relativa entre ele e o núcleo do SN, cf. exemplo (9):
7 liv la (haitiano)
vî ó (fongbe)
livro DEF
‘o livro (do qual estamos falando)’
8 Pen (*la) Bon pou lasante. (haitiano)
Wòxúnú (*ó) nyón nu lànmèyén. (fongbe)
pão (*o) bom para saúde
‘(*o) pão é bom pra saúde’
9 Mounn ki pati a. (haitiano)
Súnù dé é yì ó. (fongbe)
homem que saiu o
‘O homem que saiu.’
Em francês, o artigo definido se flexiona em gênero e número (le, la, les), pode ser usado com nomes de massa e de referência genérica e não aceita a interposição de uma oração relativa :
10 Le pain est bom pour la santé.
O pão é bom para a saúde.
11 *Le qui est parti homme
*O que saiu homem
Portanto, Lefebvre conclui que as propriedades gramaticais do artigo definido do haitiano não são derivadas do francês, mas do fongbe. Mais do que isso, Lefebvre (2001: 16-17) argumenta no sentido de que a forma fonética do artigo definido do haitiano não deriva da forma do feminino do artigo definido francês. O ponto de partida de Lefebre é a forma fonética de muitas palavras do haitiano que incorporam o artigo definido do francês, como se na tabela abaixo:
O significativo número de palavras do haitiano que têm essa composição revela que os criadores do crioulo haitiano não percebiam o artigo definido em francês, foneticamente aglutinado ao nome. O emprego do artigo definido, em sua forma atual, junto a esses nomes – larivè a ‘o rio (do qual estamos falando)’ – atesta que o conjunto original DET + NOME do francês se reduziu apenas à forma fonética do nome em haitiano. Lefebvre (2001: 18-20) argumenta, então, que a partícula locativa ou enfática là, que pode figurar no final do SN em francês, seria a fonte da forma fonética do artigo definido do haitiano:
12 Cet homm-lá vient d’arriver. (francês)
Esse/aquele homem que acabou de chegar.
13 L’homm-lá vient d’arriver. (francês popular)
O homem (!) que acabou de chegar.
Obviamente que as propriedades gramaticais da partícula locativa/enfática là do francês divergem em grande medida das propriedades gramaticais do artigo definido do haitiano. Teria sido apenas a distribuição similar dessa partícula com a do artigo definido do fongbe (pós-nominal) o que levou os criadores do pidgin/crioulo a tomá-la para reetiquetar a entrada lexical abstrata do artigo definido dentro dos parâmetros da gramática do fongbe.
Os dêiticos seriam outras palavras funcionais do haitiano que teriam sido criadas por meio da relexificação (Lefebvre 2001: 20-28). O haitiano possui apenas dois dêiticos, sa e sila, que podem ser usados, tanto com nomes de seres animados, quanto com nomes de seres inanimados, e são pós-nominais. Sila só é usado para referir objetos que estão distante do falante, contendo o traço semântico [+distante], enquanto sa não tem valor marcado para distância, sendo empregado, tanto com objetos próximos, quanto distantes do falante, como se pode ver nos seguintes exemplos:
14 mounn sa // bag sa
esse/aquele homem // esse/aquele anel
15 mounn sila // bag sila
aquele homem // aquele anel
O fongbe tem um sistema idêntico, com apenas dois dêiticos, éló e éné, que têm as mesmas características de sá e sila, como se pode ver abaixo:
16 súnù éló // àlòkééló
esse/aquele homem // esse/aquele anel
17 súnù éné // àlòké éné
aquele homem // aquele anel
Esses dêiticos do haitiano e do fongbe podem coocorrer, da mesma maneira, com possessivo, artigo definido e marcador de plural, como se vê na tabela abaixo:
Assim, “as entradas lexicais do haitiano são diferentes das do fongbe somente em suas representações fonológicas” (Lefebvre 2001: 26). A relexificação teria ocorrido, então, da seguinte maneira:
A entrada lexical copiada que corresponde ao dêitico geral éló foi reetiquetada com base na matriz fonética do pronome dêitico geral francês ça [sa], resultando no dêitico geral haitiano sa. Da mesma forma, a entrada lexical copiada que corresponde ao dêitico fongbe [+distante] éné foi reetiquetada com base na forma fonética cela ou celui-là, resultando no pronome demonstrativo [+distante] haitiano sila[4].(Lefebvre 2001: 26-27)
Já a realização do caso genitivo em haitiano constitui uma situação em que, segundo Lefebvre (2001: 28-29), a entrada lexical da categoria funcional da língua do substrato assume uma forma fonética nula no crioulo, pois, enquanto o fongbe tem o morfema de genitivo pós-nominal tón – cf. exemplo (18) –, e o francês marca esse caso com a preposição de ou à – cf. exemplo (19) –, no haitiano o genitivo é expresso por uma estrutura de justaposição – cf. exemplo (20):
18 távò Kòkú tón ó
mesa Koku GEN DEF
a mesa de koku
19 la table de/à Jean
a mesa de João
20 tab JanØ na
mesa Jan DEF
a mesa de João
Lefebvre e Lumsden (1992) assumem que há uma categoria funcional de caso nula em haitiano, com base no princípio de que a atribuição de caso é requerida pela Gramática Universal (Chomsky 1981). Assim sendo, lançam a hipótese de que “a entrada lexical associada com fongbe tón foi copiada, mas não reetiquetada”.
Por fim, a formação do pluralizador nominal haitiano yo seria mais complexa combinando a relexificação com o nivelamento dialetal (Lefebvre 2001: 30-34). Esse pluralizador pós-nominal tem um paralelo nítido com a partícula lè do fongbe, pois sua presença implica sempre uma interpretação [+definido] do SN, o que não impede que ele coocorra com o artigo definido (nesse caso, o pluralizador sempre segue o artigo) – cf. exemplo (21). Já os SNs com valor [-definido] não têm marca de plural – cf. exemplo (22):
21 krab yo / krab la yo (*krab yo la) [haitiano]
àsón lè / àsón ó lè (*àsón lè ó) [fogbe]
os carangueijos
22 M’achte krab. [haitiano]
N’xó àsón. [fogbe]
Eu comprei caranguejos.
A marcação de plural nessas duas línguas difere claramente do que ocorre em francês, em que o plural é marcado nos determinantes pré-nominais, devendo ocorrer também nos nomes indefinidos, como se vê abaixo:
23 Jean a mangé dês pommes.
João comeu maças.
Há, contudo, uma diferença entre o fongbe e o haitiano, pois no haitiano o yo é o pronome de 3ª pessoa de plural – yo pati ‘eles saíram’ –, que funciona também como pluralizador, enquanto no fongbe o pronome da 3ª pessoa do plural tem uma forma distinta: yè yì ‘eles saíram’. A forma fonética da partícula do haitiano seria derivada da forma forte do pronome da 3ª pessoa do pluraleux do francês. A extensão do uso da forma do pronome pessoal para o de pluralizador nominal encontraria paralelo, não no fongbe, mas em várias outras línguas da família kwa, do oeste-africano, como o ewe, o yoruba, o mandinga e o edô, nas quais uma mesma partícula desempenha as duas funções. Lefebvre argumenta que na formação inicial do crioulo haitiano, haveria pelo menos dois dialetos, um do tipo fongbe, com duas entradas lexicais distintas (uma para o pronome pessoal, outra para o pluralizador), e um do tipo ewe, com apenas uma entrada lexical para as duas funções. Teria ocorrido então o processo de nivelamento dialetal, no qual teria predominado o dialeto com apenas uma entrada lexical, o que explica as atuais características da partícula yo do haitiano.
O que foi dito até aqui pode fornecer a base para a seguinte sistematização. De acordo com teorizações recentes que tomam como ponto de partida a hipótese do substrato, os processos de relexificação e reanálise desempenhariam um papel central na regramaticalização do jargão ou pré-pidgin que conduz à formação das línguas pidgins e crioulas. Nos casos em que há uma superposição clara entre a estrutura gramatical da língua crioula e a da língua do substrato em oposição à forma da mesma estrutura gramatical na língua do superestrato, como no caso da coincidência estrutural na forma do artigo definido e dos demonstrativos entre o haitiano e o fongbe, em oposição ao francês (cf. supra), a hipótese do substrato parece ser a mais adequada, independentemente da formalização teórica utilizada para fundamentar essa hipótese[5]. Porém, nos casos de simplificação morfológica, como se observa na marcação do caso genitivo em haitiano, a hipótese do substrato, fundamentada na formulação de cópia da entrada lexical sem reetiquetagem (cf. supra), não seria a mais adequada. Nesses casos, seria mais plausível assumir um processo geral de simplificação morfológica que tem sua origem na aquisição maciça de uma segunda língua por parte de falantes adultos com acesso restrito aos modelos gramaticais da língua alvo, independentemente das características gramaticais das línguas nativas desses falantes. A conjugação de estudos de aquisição de segunda língua por adultos com análises de línguas pidgins e crioulas tem fornecido bases empíricas e teóricas bem consistentes para essa visão, que exclui a transferência do substrato (Shummann 1978; Klein e Perdue 1997; Wekker 1996). Assim, a hipótese que se fundamenta nas restrições de tal processo de aquisição de segunda língua é epistemologicamente mais adequada porque é mais econômica, ou seja, recorre a menos construtos teóricos, de modo que a formulação da relexificação, ou qualquer outra que busque estabelecer uma relação com o substrato nesses casos, torna-se desnecessariamente excessiva (Lucchesi 2012b: 269)[6].
No que concerne ao tema deste artigo, a questão que se coloca é: teria havido processos de mudança induzidos pelo contato entre línguas, na formação de pelo menos algumas das variedades populares do português brasileiro, que se aproximam dos processos de mudança que se enquadram nesse esquema explicativo das transferências de substrato, ou, ao contrário, teriam ocorrido apenas processos de simplificação morfológica que se desenrolam independentemente das influências do substrato? A segunda opção parece ser, em princípio, a mais provável em face da menor radicalidade das situações de contato presentes na história sociolinguística do Brasil vis-à-vis as situações prototípicas de pidginização e crioulização (Lucchesi 2008 e 2009).
Além dessa questão teórica mais geral, muitas das restrições que se levantam contra a hipótese do substrato, como a confiabilidade da identidade do alegado substrato de certas línguas crioulas, se colocam no caso brasileiro, de forma, inclusive, mais crítica. Algumas dessas questões serão abordadas na próxima seção.
3. A hipótese do substrato no contexto sócio-histórico brasileiro
Uma das críticas mais contundentes feitas à hipótese do substrato é confiabilidade da identificação das línguas de substrato que efetivamente contribuíram para a formação da língua pidgin ou crioula em foco. A ausência de registros históricos fidedignos constitui, com efeito, um sério obstáculo para a hipótese do substrato, já que boa parte das línguas crioulas hoje reconhecidas como tal se formou no contexto da escravidão de populações africanas. Grande parte do trafico negreiro e das situações de escravidão ocorreram na clandestinidade e a fortiori são escassamente documentadas. Portanto, é muitas vezes difícil identificar que povos teriam constituído efetivamente o substrato de uma determinada língua crioula. Ocorre também que a rota de abastecimento de escravos podia mudar, alterando completamente a composição étnica do substrato. A esse respeito, Arends (1994: 18) fornece um exemplo muito significativo acerca da formação dos crioulos do Suriname, tais como o sranan e o saramacan. A idéia geral era que, durante todo o período do tráfico negreiro promovido pela colonização holandesa (de 1741 a 1815), os escravos teriam sido trazidos da região que vai de Serra Leoa à Costa do Marfim. Com isso, as principais línguas do substrato seriam as línguas mandê e wolof. Porém, dados mais recentes informam que essa região só desempenhou um papel relevante a partir de 1740, quando o sranan e o saramacan supostamente já estariam formados. No período da sua formação (aproximadamente entre 1650 e 1720), a região que mais supriu o Suriname de escravos teria sido a Costa dos Escravos, que compreende hoje o Togo e o Benin, e, de outra parte, a região que compreende o Gabão, o Congo, o Zaire e Angola, região de línguas bantas. Portanto, ao invés de uma suposta influência mandê e wolof, as influências do substrato nos crioulos do Suriname deveriam ser buscadas nas línguas fongbe, ou nas línguas bantas, como o quicongo e o quimbundo.
Esse problema assume proporções ainda mais dramáticas no contexto brasileiro, que reúne, em seu substrato, mais de mil línguas autóctones, faladas por pelo menos um milhão e meio de índios quando se inicia a colonização portuguesa, às quais se agregam muitas dezenas de línguas africanas, faladas por cerca de quatro milhões de indivíduos, trazidos pelo tráfico negreiro, entre 1550 e 1850, aproximadamente. Esse imenso mosaico de multilinguismo se distribui por um território de dimensões continentais, através de diversas composições sociolinguísticas bem mais complexas e diferenciadas do que as sociedades de plantação do Caribe, em sua maioria insulares, onde vicejaram as línguas crioulas, com forte influência do substrato africano.
Para além da dificuldade em identificar o substrato, em face da escassez de registros históricos sobre a composição etnolinguística da sociedade brasileira, a hipótese da influência do substrato tem de lidar com as possíveis clivagens na formação histórica das atuais variedades do português brasileiro, separando as áreas em que predominaram as populações indígenas, nomeadamente, na Amazônia e na região do Planalto Central, das regiões com uma presença africana mais maciça, como a Bahia, Pernambuco e o Maranhão, no Nordeste. Não há qualquer relação filogenética entre as línguas indígenas brasileiras e as línguas africanas trazidas para o Brasil. Assim, qualquer característica linguística supostamente derivada de um substrato africano, por exemplo, não deveria estar presente em áreas de substrato indígena, a não ser que se demonstrasse que, por uma improvável coincidência, essa característica estivesse presente também na(s) língua(s) indígena(s) daquela região. O contrário também se aplica, hipóteses de influência do substrato indígena deveriam em princípio delinear uma isoglossa, circunscrevendo a variedade de português formada naquela região onde predominavam os falantes daquele povo indígena.
Porém, há razões suficientes para pensar que uma influência do substrato africano seja mais viável do que a das línguas indígenas. Excetuando-se o primeiro século da colonização, os contatos com as populações indígenas sempre ocorreram nas franjas da sociedade brasileira, e o genocídio das populações autóctones fez com que decrescesse drasticamente a representatividade demográfica do elemento indígena na composição da sociedade brasileira, já nos primeiros séculos da colonização europeia. Some-se a isso a enorme diversidade das línguas indígenas brasileiras, separadas em pelo menos cinco famílias linguísticas tipologicamente diferenciadas. O elemento africano, demograficamente mais representativo, integrou-se de forma muito mais ampla e profunda na sociedade brasileira, exercendo um protagonismo linguístico bem mais significativo do que o do segmento indígena (Mendonça 1933; Ribeiro 1995; Lucchesi 2009).
No que concerne à identificação etnolinguística da população do substrato africano na história do Brasil, existe uma divisão consagrada pela tradição historiográfica, na qual a Bahia e o Maranhão se destacam como áreas de substrato kwa, em contraste com restante do Brasil, nomeadamente o Rio de Janeiro e Pernambuco, onde teriam predominado os escravos bantos, com hegemonia dos falantes do quimbundo, mas também com uma presença significativa das línguas quicongo e umbundo (Rodrigues [1933] 2004; Matoso 2003; Castro 2002). Na Bahia, a partir do século XVIII, os falantes de iorubá (aqui chamado nagô) seriam maioria no substrato africano, seguidos dos falantes da língua ewe (aqui chamada jeje). Já o Maranhão seria área predominantemente jeje, isto é ewe. Minas Gerais seria, em princípio, uma zona de predomínio banto, como o atesta a comunidade de Tabatinga, que ainda usa um código restrito de comunicação intragrupal, composto de um vocabulário quimbundo (Queiroz 1998). Entretanto, há um importante documento histórico, um manual de conversação da língua fon, escrito em Vila Rica, em 1734, que aponta para uma igualmente representativa presença de falantes dessa língua kwa na região (Castro 2002). De qualquer sorte, o dialeto mineiro, por suas especificidades, seria um forte candidato a apresentar alterações estruturais mais profundas.
Nesse cenário, uma via de investigação a ser perseguida seria a de identificar características linguísticas que estivessem mais presentes na Bahia e/ou no Maranhão, como possíveis candidatos a uma eventual transferência do substrato kwa. Ou o contrário, apresentar características linguísticas do português popular de estados, como o Rio de Janeiro e Pernambuco, derivadas do substrato banto, que estariam menos presentes na Bahia e no Maranhão. Nessa perspectiva, o acervo do Projeto ALIB, do Atlas Linguístico do Brasil, distribuído por uma rede de 252 pontos que cobrem todo o território brasileiro (Cardoso e Mota, 2012), constitui uma valiosa fonte de informação empírica para a verificação de hipóteses acerca de influências do substrato.
Contudo, a ideia corrente de uma homogeneidade do português popular brasileiro militaria contra eventuais influências do substrato. A comprovação de uma transferência do substrato para o português popular deveria, pelo menos em parte, desconstruir essa visão de uma generalizada homogeneidade. É bem verdade que a história do Brasil é marcada por maciços deslocamentos populacionais, particularmente da população escrava africana (Lucchesi 2009). No século XVIII, há um enorme afluxo de escravos dos decadentes engenhos do Nordeste para Minas Gerais, na verdadeira corrida do ouro e das pedras preciosas em curso na época. Já no século seguinte, o deslocamento se dá das exauridas minas de ouro e pedras preciosas para as emergentes plantações de café do Vale do Paraíba, no Rio de Janeiro, e do planalto paulista. E a população do planalto paulista, por sua vez, teve uma importante participação na colonização da região sul, particularmente o território do Estado do Paraná. Já o êxodo rural, ocorrido ao longo do século XX, com seu pico entre as décadas de 1960 e 1990, levou uma grande massa de nordestinos para a região sudeste, sobretudo para periferia das duas grandes metrópoles do país, Rio de Janeiro e São Paulo. Verifica-se igualmente uma forte corrente migratória do Nordeste para a região amazônica, desde meados do século XIX até os dias atuais. Por fim, o boom do agronegócio no centro-oeste do país, ocorrido desde as últimas décadas do século passado, atraiu para essa região expressivos contingentes de sulistas.
Esses sucessivos deslocamentos podem explicar a suposta homogeneidade diatópica do português popular brasileiro, em função do nivelamento linguístico que necessariamente se teria implementado no bojo de tais processos, o que teria diluído eventuais transferências do substrato ocorridas no passado. Caberia aos postulantes de influências do substrato demarcar isoglossas até então desconhecidas que atestem a transferência de alguma característica estrutural de língua africana, ou mais remotamente indígena; ou demonstrar, ao contrário, a difusão de uma característica do substrato, em função dos deslocamentos populacionais, ao invés de sua diluição; o que seria, em princípio, muito difícil de fazer com fundamentação empírica consistente, devido à amplitude e complexidade das variáveis envolvidas.
Mas talvez haja uma questão que preceda a discussão sobre a distribuição geográfica das influências do substrato. O que estaria, então, em jogo seria a própria ocorrência das transferências do substrato nos contextos sociolinguísticos que teriam predominado na formação histórica das atuais variedades linguísticas brasileiras.
Dentro da visão que se baseia no conceito de transmissão linguística irregular de tipo leve, a formação das variedades populares do português brasileiro seria significativamente distinta da formação das línguas pidgins e crioulas prototípicas (Lucchesi 2008, 2009 e 2012a). Dentro dessa visão, se ocorreram processos radicais de pidginização e crioulização no Brasil, esses processos teriam sido efêmeros e localizados, concentrados principalmente no século XVII, quando a população de toda a sociedade brasileira não chegava sequer a 300 mil habitantes. Dessa forma, a grande maioria das variedades do português brasileiro teria se formado no contexto de uma transmissão linguística irregular de tipo leve que se diferenciaria dos processos típicos de pidginização/crioulização da seguinte maneira:
a originalidade da estrutura gramatical das línguas pidgins e crioulas decorre da impossibilidade de os seus falantes assimilarem os elementos gramaticais da língua alvo, devido à situação de exploração, repressão e segregação a que são submetidos.
Por outro lado, o aumento do acesso dos falantes das outras línguas e/ou de seus descendentes aos modelos gramaticais da língua alvo inibe os processos de transferência de substrato e de gramaticalização, cruciais para a formação da estrutura gramatical das línguas pidgins e crioulas, qualitativamente distinta da estrutura gramatical da língua alvo. Por gozar de maior prestígio, as variantes gramaticais da língua do grupo dominante acabam por prevalecer sobre as estruturas das línguas do substrato que eventualmente poderiam estar sendo transferidas para a variedade linguística em formação na situação de contato. (...)
Portanto, a maior diferença entre os processos típicos de pidginização e crioulização, que representam os casos mais radicais de transmissão linguística irregular, e os processos de transmissão linguística irregular mais leve, como o caso da formação das variedades populares da língua portuguesa no Brasil, é que, no primeiro caso, a gramática da variedade linguística que se forma na situação de contato é formada basicamente por elementos exógenos, enquanto, no segundo caso, os elementos gramaticais da língua do grupo dominante suplantam eventuais processos embrionários de gramaticalização e de transferência do substrato. (Lucchesi 2008: 371-372)
Enquanto as línguas pidgins e crioulas têm uma gramática qualitativamente distinta da gramática de sua língua lexificadora (Rougè 2008), as variedades formadas em situação de transmissão linguística irregular de tipo leve incorporariam a gramática da língua dominante na situação de contato. O que os dois processos teriam em comum seria a erosão morfológica que afetaria os mecanismos gramaticais sem valor informacional, como as regras de concordância e a flexão de caso. Nesse caso, entretanto, haveria uma diferença de grau, já que, no geral, esses elementos seriam completamente eliminados na pidginização/crioulização, ao passo que, na transmissão liga irregular de tipo leve, o resultado seria um quadro de ampla variação no uso desses mecanismos gramaticais.
Análises tradicionais da primeira metade do século XX, como a de Chaves de Mello (1946), procuraram relacionar essa simplificação da morfologia verbal e nominal nas variedades do português popular à ausência desse mecanismo flexional nas línguas do substrato africano. Tal visão encontra respaldo em teorias mais recentes do substrato (cf. seção anterior). Porém, tal hipótese é contrariada pelos resultados alcançados por pesquisas muito bem fundamentadas empiricamente, levadas a cabo nas últimas décadas do século XX, sobre as variedades de segunda língua de trabalhadores imigrantes na Europa Ocidental e nos EUA. Essas análises têm demonstrado que a perda da morfologia flexional nas variedades de interlíngua que se formam quando um grande número de falantes adultos adquire uma segunda língua, de forma assistemática, com limitado acesso aos modelos dessa língua alvo e sem a intenção de atingir uma plena proficiência nessa língua, ocorre independentemente das características estruturais da língua nativa desses falantes adultos, ou seja, dos modelos gramaticais do substrato, como postula Lefebvre, através da ideia de relexificação com etiquetagem nula (cf. seção anterior). Muitos desses trabalhadores eram falantes de línguas flexionais, como o espanhol e o turco, mas a variedade de interlíngua que desenvolviam, denominada Variedade Básica, carecia de elementos gramaticais mais abstratos, entre eles, os mecanismos morfossintáticos da concordância nominal e verbal (Kleine Perdue 1997).
Portanto, a erosão morfológica que caracteriza as variedades populares do PB pode ser atribuída aos processos que atuam na aquisição de uma segunda língua de forma defectiva por parte de uma grande população de falantes adultos, independentemente das características estruturais da gramática de suas línguas nativas (Lucchesi 2012b). Com efeito, os elementos gramaticais dos crioulos do Caribe e da Costa Ocidental da África que são mais consistentemente relacionados a processos de transferência do substrato africano, como a posposição dos determinantes, a serialização verbal, a formação de partículas pré-verbais de tempo modo e aspecto e a utilização do pronome da 3ª pessoa do plural como pluralizador nominal, não são encontradas no português popular brasileiro. A alternância dativa seria, em princípio, um candidato a possível influência estrutural do substrato. Porém, tal processo de variação e mudança poderia ser igualmente enquadrado no processo mais geral de simplificação morfológica que atua na gênese das línguas crioulas independentemente das influências do substrato, como já argumentado aqui, até porque essa é uma característica geral das línguas crioulas ao redor do mundo, mesmo daquelas línguas que não têm substrato africano (Lucchesi e Mello 2009). Dessa forma, a identificação de características estruturais do português popular brasileiro que possam ser associadas, de forma consistente, a uma possível influência de substrato é o novo desafio para aqueles que se colocam dentro da perspectiva que coloca o contato entre línguas como um fator crucial na formação histórica das variedades populares do português brasileiro.
4. Conclusão
No cenário de uma transmissão linguística irregular de tipo leve, como aqui referido, eventuais processos de transferência de substrato seriam particulares e laterais, ou seja, não seria provável encontrar transferências de substrato em estruturas e mecanismos nucleares da gramática das variedades populares do português brasileiro. Contudo, não devem ser descartadas investigações que busquem identificar remanescentes de processos pretéritos de transferência de substrato na história sociolinguística do Brasil. Nessa linha de investigação, há duas características de variedades populares do português no Brasil que parecem ser atualmente boas apostas, dentro da perspectiva da hipótese do substrato.
A primeira está ligada à estrutura argumental mais ampla do verbo comprar. Lumsden (1999a: 137-138) identifica uma construção do haitiano que tem um nítido paralelo com o fongbe, como se pode ver nos exemplos (24) e (25) abaixo, com o correspondente em português apresentado em (27). Ou seja, trata-se de um caso especial de regência verbal, em que o verbo comprar seleciona a locução prepositiva na mão de para reger seu argumento preposicionado. Essa construção não existe em francês, que marca esse argumento do verbo acheter com a preposição de, como ocorre no português padrão do Brasil – cf. exemplo (26) abaixo. Com base nisso, Lumsden apresenta esse fato como um caso de relexificação de uma palavra referencial do haitiano, que tem a forma fonética do francês, mas a especificação gramatical abstrata do substrato fongbe.
24 Jan achte liv la nan men Pól.
Jean comprar livro DEF em mão Paul
25 Jan xô wémà ó dò Pòlù si.
Jean comprar livro DEF em Paulmão
26 Jean a acheté le livre de Paul.
João comprou esse livro de Paulo.
27 João comprou esse livro na mão de Paulo.
Ocorre que a construção apresentada em (27) é muito comum na linguagem coloquial da Bahia, sendo desconhecida e mesmo agramatical em muitos outros estados do Brasil. Trata-se de um paralelo expressivo que merece ser investigado. O primeiro passo seria saber se a mesma construção existe no yoruba, a língua mais importante do substrato africano na Bahia. É bem provável que exista, já que as línguas são da mesma família linguística kwa. Além disso, o ewe e o fon, ambas do grupo fongbe, são línguas presentes no substrato africano, tanto na Bahia, quanto em Minas Gerais, chegando a predominar no Maranhão. Se a construção não existir no yoruba, pode-se recorrer ao esquema do nivelamento dialetal, como proposto por Lefebvre (cf. seção 1 supra), para explicar sua transferência para o português popular da Bahia. Outra evidência crucial seria fornecida pela distribuição do fenômeno no território brasileiro, o que poderia ser feito por meio de uma investigação nos materiais do ALIB (cf. seção 2 supra). O cenário ideal seria se essa construção estivesse restrita aos Estados de Minas Gerais, Bahia e Maranhão, para os quais se tem registros históricos de forte presença de substrato kwa, ou mais especificamente fongbe. Mas não se podem descartar eventuais processos históricos de difusão dessa construção para outros estados brasileiros, o que demandaria uma pesquisa histórica suplementar para atestar a ocorrência de tal difusão.
O segundo fato que sugere uma transferência do substrato também advém de um paralelo com o que foi observado no haitiano por Lumsden (1999a: 138-9). Trata-se de construções como: pye-bananann (lit. pé de banana), pye-palmis (lit. pé de palma) e pye-bwa (lit. pé de árvore). Essas construções não encontram paralelo na língua lexificadora, o francês, que expressa esses conteúdos pelo mecanismo da derivação (como ocorre no português padrão): bananier (bananeira), palmier (palmeira); sendo que arbre (árvore) não aceita tal derivação. Em contrapartida, construções similares são encontradas em fongbe: kwékwé-tín (lit. árvore de banana) e dè-tín (lit. árvore de palma). Não ocorre, entretanto, em fongbe um correspondente exato, tomando por base o substantivo pé.
Mais uma vez existe um paralelo notável com construções típicas da linguagem coloquial da Bahia: pé de banana por bananeira;[7] pé de palma por palmeira, e mesmo pé de árvore, ou pé de pau. E, da mesma forma, tais construções inexistem em outros estados brasileiros. O caminho adotado por uma investigação empírica para verificar essa provável origem no substrato africano seria o mesmo proposto para a regência especial do verbo comprar: (i) verificar a existência de construções paralelas em yoruba e (ii) verificar a distribuição diatópica do fenômeno com base nos materiais do ALIB.
Esses dois possíveis candidatos a influências de substrato enquadram-se na visão geral de formação histórica do português popular brasileiro aqui assumida, na qual predomina o processo de transmissão linguística irregular de tipo leve, pois se trata de alterações em itens lexicais, e não em itens funcionais, que se situam no núcleo da gramática. Nas situações de transmissão linguística irregular de tipo leve, as influências do substrato seriam, como se disse acima, particulares e laterais.
De qualquer forma, a questão da influência dos substratos na história sociolinguística do Brasil ainda vai demandar muita reflexão teórica e pesquisa empírica. Trata-se de mais uma profícua frente de investigação que está se abrindo para a pesquisa linguística no Brasil, na medida em que vão ficando para trás as tradicionais visões imanentistas que buscavam restringir a formação histórica das variedades do português brasileiro à ação de tendências seculares prefiguradas na estrutura interna da língua.
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[1] Segundo Bickerton (1999), só se poderia falar em crioulização propriamente dita, se a nativização ocorresse na fase inicial da pidginização, quando as crianças tivessem como modelo de aquisição de sua língua materna um pré-pidgin gramaticalmente incipiente.
[2] Traduzido do original inglês.
[3] É óbvio que deve haver alguma interseção semântica entre a palavra lexical e a categoria funcional para que a reanálise ocorra.
[4] Traduzido do original inglês.
[5] Além do conceito de relexificação, aqui apresentado, há atualmente outras formulações concorrentes entre os substratistas, como o conceito de transferência, formulado por Siegel (2008), que não será tratado neste artigo.
[6] Essa questão será retomada na próxima seção, no contexto da formação das variedades populares do português brasileiro.
[7] Para além dessa forma, a variante mais corrente no português brasileiro é pé de bananeira, e construções afins, como pé de laranjeira etc.