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Lingüística
versión On-line ISSN 2079-312X
Lingüística vol.30 no.2 Montevideo dic. 2014
Lingüística / Vol. 30 (2), Diciembre 2014: 241-288
ISSN 1132-0214 impresa
ISSN 2079-312X en línea
O PAPEL DAS LÍNGUAS AFRICANAS NA EMERGÊNCIA DA GRAMÁTICA DO PORTUGUÊS BRASILEIRO[1]
THE ROLE OF AFRICAN LANGUAGES IN THE EMERGENCE OF BRAZILIAN PORTUGUESE GRAMMAR
Juanito Avelar
Universidade Estadual de Campinas
Charlotte Galves
Universidade Estadual de Campinas
Este artigo traz argumentos favoráveis à hipótese de que as línguas africanas faladas pelos escravos introduzidos no Brasil desempenharam um papel significativo na emergência da gramática do português brasileiro. Explorando um viés teórico mentalista, o estudo se ocupa de paralelismos morfossintáticos entre o português brasileiro e o português africano, bem como entre essas variedades e as línguas bantas, para propor que a aquisição do português como segunda língua pelos africanos produziu mudanças em duas direções: (i) transferência de propriedades sintáticas das suas línguas maternas para o português em formação no Brasil e (ii) reestruturação desencadeada pela dificuldade no aprendizado de marcas gramaticais específicas do português.
Palavras-chave: português brasileiro, português africano, línguas bantas, contato linguístico, mudança gramatical
This paper argues that African languages spoken by the slaves brought to Brazil played a significant role in the emergence of some of the grammatical properties of Brazilian Portuguese. Exploring mentalist assumptions, the study deals with morpho-syntactic parallelisms between Brazilian and African Portuguese, as well as between such Portuguese varieties and Bantu languages, in order to propose that the acquisition of Portuguese as second language by Africans produced two types of changes: (i) changes linked to the transfer of syntactic properties from their native languages to emerging Portuguese varieties in Brazil, and (ii) changes linked to grammatical restructuring triggered by difficulties in learning morpho-syntactic features of Portuguese.
Keywords: Brazilian Portuguese, African Portuguese, Bantu languages, language contact, grammatical change
1. Introdução
Uma das questões que têm permeado os estudos históricos sobre o português brasileiro diz respeito a saber em que medida as múltiplas dinâmicas de contato interlinguístico estabelecidas na formação da sociedade brasileira contribuíram para produzir as características que permitem contrastar suas variedades com as do português europeu. Se, do ponto de vista lexical, não há dúvidas de que o português brasileiro teve uma forte influência de outras línguas (o que se evidencia pelos inúmeros empréstimos provenientes de línguas africanas e indígenas), a mesma certeza não é consensual no que diz respeito a propriedades gramaticais. Os debates em torno dessa questão têm se dado de forma polarizada, com defensores do que podemos chamar de hipótese da deriva e hipótese do contato ocupando cada um dos lados da polarização – os primeiros argumentam em favor de que todas as marcas gramaticais do português brasileiro foram trazidas de Portugal, não havendo nenhuma propriedade inovadora devida à ação de contatos interlinguísticos; os segundos defendem que o português brasileiro apresenta características gramaticais que emergiram como consequência do contato, em particular no que diz respeito à constituição das suas variedades populares.
Um dos pontos nevrálgicos do debate tem se estabelecido em torno do aporte linguístico africano introduzido no Brasil, tendo em vista que, entre o final do século XVI e o início do século XIX, os africanos representavam entre 20% e 30% de todo o contingente populacional em território brasileiro, chegando a superar numericamente outros grupos (índios, portugueses, brasileiros descendentes de africanos e europeus, entre outros) ao longo do século XVII - ver Mussa (1991: 163). A esse respeito, Naro e Scherre (2007: 182), defensores da hipótese da deriva, afirmam que “no português do Brasil inexiste influência gramatical específica de qualquer língua africana”. Em contraposição, Lucchesi (2009a: 28) ressalta que “não se pode pensar seriamente que a língua portuguesa não foi diretamente afetada pelo contato do português com as línguas africanas de uma forma bem ampla e representativa”; nessa mesma linha, Mattos e Silva destaca que o principal elemento difusor do português em território brasileiro seria “essa população de origem africana - segmento demográfico dominante no Brasil colonial -, que teve de abdicar de suas línguas, pelas razões históricas conhecidas, e que adquiriu a língua de dominação, reformatando-a profundamente” (Mattos e Silva 2002: 456)).
O presente estudo se situa entre aqueles que advogam em favor da hipótese do contato, explorando a ideia de que certas marcas gramaticais singularizadoras do português brasileiro no conjunto das línguas românicas se devem à ação dos contatos interlinguísticos estabelecidos entre falantes de português e de línguas africanas (em particular, línguas bantas). O que estamos chamando de ação indica, em linhas gerais, duas situações diferentes: (a) transferência de padrões frásicos e propriedades morfossintáticas das línguas africanas para o português adquirido como segunda língua pelos africanos e (b) propriedades desencadeadas por dificuldades em reproduzir, por parte dos africanos, as marcas da língua tomada como alvo (no caso, o português) quando da sua aquisição. Em um e outro caso, é preciso pressupor que as marcas do português falado como segunda língua (doravante, L2) pelos africanos penetraram no português que foi sendo adquirido como primeira língua (doravante, L1) pelos nascidos no Brasil e, por extensão, que essas mesmas marcas encontraram um cenário propício a sua difusão por entre variedades emergentes do português brasileiro, de uma forma que ainda precisa ser bem compreendida em termos geográficos, demográficos, históricos, sociais e culturais.
Este trabalho aborda marcas gramaticais do português brasileiro que não são encontradas no português europeu, visando a verificar em que medida podem ser associadas às situações descritas em (a) e (b). Iremos nos ocupar dos seguintes pontos:
(i) construções de tópico-sujeito, especificamente os casos em que termos com interpretação locativa ou possessiva ocupam a posição de sujeito e concordam com o verbo;
(ii) emprego de preposição em junto a complementos de verbos de movimento, bem como a variação entre ausência e presença de preposição na complementação de tais verbos;
(iii) predicados dativos com duplo objeto;
(iv) sintaxe pronominal, em particular no que tange à variação morfológica na forma dos pronomes em função da sua marca casual/função sintática;
(v) nomes sem determinante (os chamados nomes nus) singulares em posição argumental.
Antes de prosseguir, é importante chamar a atenção para o lugar dos processos de crioulização no conjunto das hipóteses atuais sobre a formação do português brasileiro. Propostas que defendem uma origem (semi)crioulapara o português brasileiro vernáculo, como as de Guy (1981) e Holm (1987, 1992), vêm perdendo força entre os favoráveis à hipótese do contato. Embora possa ter havido casos específicos de crioulização em pontos isolados do território brasileiro, consideramos estarem no caminho certo posições como as de Lucchesi (2009b: 70), para quem vários fatores impediram a constituição estável de um processo mais geral de crioulização na história linguística do Brasil, entre os quais podemos citar “a proporção entre a população de origem africana e branca, que proporcionou um maior acesso à língua-alvo do que o observado nas situações típicas de crioulização”, “o uso de línguas francas africanas como instrumento de interação dos escravos segregados e foragidos” e o “incentivo à proficiência em português” [2] - [3].
Neste trabalho, iremos explorar a ideia de que o que houve no Brasil foi um tipo específico de transmissão linguística irregular, nos termos propostos em Lucchesi e Baxter (2009: 101), que tomam esse termo para “designar amplamente os processos históricos de contato maciço entre povos falantes de línguas tipologicamente diferenciadas”: em situações desse tipo, é comum que a língua do grupo dominante se imponha, “de modo que os falantes das outras línguas, em sua maioria adultos, são forçados a adquiri-la em condições bastante adversas de aprendizado”. Segundo os autores, “as variedades de segunda língua que se formam nessas condições [...] acabam por fornecer os modelos para a aquisição da língua materna para as novas gerações de falantes, na medida em que os grupos dominados vão abandonando as suas línguas nativas”. Na situação do Brasil, Lucchesi (2009b: 71) destaca que a miscigenação e a integração social dos escravos e ex-escravos têm duas consequências: “favorecem a assimilação dos padrões linguísticos dominantes por parte dos dominados” e “abrem vias de introdução, na fala das camadas médias e altas, de estruturas criadas por mudanças nos extratos mais baixos”.
Enfim, cabe um esclarecimento sobre a ênfase dada neste artigo às línguas bantas. Isso se deve essencialmente a dois fatos. O primeiro é que a maior parte dos africanos introduzidos no Brasil como escravos era falante dessas línguas, em particular do quimbundo[4], que se tornou a base de uma das mais importantes línguas francas africanas faladas no período colonial. O uso do quimbundo, numa versão mais ou menos próxima da língua falada originalmente na África, foi bastante usada em território brasileiro no século XVII (Bonvini 2008), numa época que se pode considerar crucial para a emergência de uma versão diferenciada do português no Brasil [5]- [6].
O segundo é que os dois maiores países de língua oficial portuguesa na África, Angola e Moçambique, situam-se na área das línguas desse grupo, oferecendo a oportunidade de análises comparativas detalhadas entre o português brasileiro e o português africano, que têm se revelado extremamente produtivas, como ficará claro nas próximas seções.
O trabalho se encontra dividido da seguinte forma: na seção 2, apresentamos o quadro teórico no qual a questão da influência das línguas africanas sobre a emergência da gramática do português brasileiro possa adquirir um sentido teórico e empírico preciso. Isso inclui a própria definição do que seja contato linguístico, com base no estabelecimento de um modelo em que esse conceito possa ser formalmente explorado no estudo da evolução das línguas; na seção 3, como já mencionado acima, proporemos estudos de casos, procurando estabelecer as evidências empíricas que possam nos levar a afirmar que, com grande probabilidade, o aprendizado do português como L2 por africanos esteja na origem das inovações observadas; na seção 4, enfim, fecharemos o artigo com algumas conclusões gerais.
2. Os alicerces da pesquisa
Em trecho mal-humorado, Serafim da Silva Neto fustiga assim os que defendem a tese da influência das línguas indígenas e africanas sobre o português do Brasil (os grifos são nossos):
Nos primeiros estudos sobre o português do Brasil, escritos em geral por amadores, exagerava (sic), e sem nenhum método ou crítica, a influência indígena. Mais tarde, passou-se a fazer o mesmo com a influência dos negros. A verdade, porém, é que a maior parte dos fatos alegados não passava de interpretações sem base, fantasiosas ou precipitadas. Alem da falta de conhecimentos de línguas americanas e africanas, a muitas das pessoas que advogavam teses indiófilas ou e negrófilas faltava a indispensável base da cultura lingüística e românica. De fato, não basta haver semelhança entre fenômenos de linguagem brasileira e outros das falas americanas ou africanas. É preciso demonstrar que não se trata de evoluções independentes, mas que há filiação entre eles (Silva Neto [1950] 1977:91).
Deixando de lado o discurso pouco palatável para os leitores de hoje, pode-se afirmar que Silva Neto esboça, nas linhas acima, as exigências de um programa de investigação para um estudo do papel das línguas indígenas e africanas na formação do português brasileiro, programa esse que supere o amadorismo. No que diz respeito ao enfoque deste artigo, isso implica o conhecimento das características peculiares das línguas bantas, o estudo da história linguística e social da língua portuguesa e o uso de um modelo de contato linguístico capaz de fazer previsões adequadas sobre os efeitos de substrato na emergência de uma nova variedade da língua. Sessenta anos depois da publicação da primeira edição da Introdução ao Estudo da Língua Portuguesa no Brasil, parece que as condições já se encontram reunidas para o programa de pesquisa começar a dar frutos de qualidade. Não somente as línguas bantas têm sido alvo de numerosas e aprofundadas investigações[7], como também a influência dessas línguas na aquisição do português L2 na África (cf. Gonçalves 2004, 2010; Gonçalves e Chimbutane 2004) tem se tornado um objeto de estudo particularmente revelador dos processos de transferência gramatical envolvidos nas dinâmicas de contato interlinguístico. De um modo geral, o português falado na África, como L1 ou L2, vem sendo estudado de forma detalhada nos seus aspectos lexicais, fonéticos, morfológicos e sintáticos (cf. Gonçalves 2010, Laban 1999 e Reite 2013 para o português moçambicano; Chavagne 2005, Inverno 2005, 2011, Figuereido 2010 e Figueiredo e Oliveira 2013 para o português angolano; Oliveira et al. 2012 para o português guineense; Jon-And 2013 para o português moçambicano e cabo-verdiano). Além disso, documentos históricos nos trouxeram recentemente informações sobre o português escrito por africanos na África e no Brasil ao longo do século XIX (Tavares et al. 2002; Oliveira 2003, 2006; Oliveira e Lobo 2009). Enfim, consolidou-se no Brasil o estudo dos dialetos falados por comunidades remanescentes de quilombos ou constituídas pela presença maciça de descendentes de ex-escravos (Vogt e Fry 1996; Lucchesi, Baxter e Ribeiro 2009; Moura 2009, entre outros). Tais estudos vêm revelando a existência de traços linguísticos ausentes do que podemos chamar de português brasileiro comum (incluindo tanto o culto quanto o popular), inclusive na fala das camadas menos escolarizadas ou mais afastadas dos meios urbanos (Lucchesi et al. 2009, Oliveira et. al. a sair, Figueiredo e Oliveira 2013). Tornou-se, assim, possível fornecer uma base empírica ao que Petter (2008, 2009) chama de continuum afro-brasileiro do português, no tempo e no espaço[8].
A esses dados de natureza linguística se acrescentam aqueles de natureza sociohistórica que nos esclarecem sobre os caminhos e os atores da expansão do português no Brasil. Às investigações do próprio Silva Neto[9] se juntaram muitas outras, baseadas em documentação produzida e estudada mais recentemente. Como mencionamos na seção anterior, estudos da demografia e dos movimentos de população no Brasil apontam para o papel decisivo dos africanos na disseminação da língua portuguesa pelo território brasileiro (Mussa 1991, Mattos e Silva 2004, Bonvini 2008).
Note-se que, mesmo reconhecendo a existência de uma presença forte de populações negras no Brasil, Silva Neto, levado pela ideologia da classe dominante, não conclui que esses possam ter alguma influência sobre a língua desenvolvida no país, mas ressalta que, no português brasileiro, o que há são “cicatrizes da tosca aprendizagem que da língua portuguesa, fizeram os negros e os índios” (p. 96-97)[10]. Cinquenta anos depois, Naro e Scherre (2007), apesar de enfatizarem a importância do elemento negro na cultura brasileira, também lhe negam qualquer influência na língua. Para eles:
[as] características morfossintáticas e fonológicas do português brasileiro, atualmente envoltas em estigma e preconceito social, são heranças românicas e portuguesas arcaicas e clássicas, e não modificações mais recentes advindas das línguas africanas, que vieram para o Brasil com seus povos escravizados e subjugados, ou das línguas dos povos ameríndios, que aqui já se encontravam quando vieram os colonizadores europeus. Tampouco são o resultado de processos de simplificação ou outras modificações espontâneas causadas pelo contato, durante o processo de transmissão não tradicional da língua [...] queremos identificar as raízes lingüísticas românicas e lusitanas que insistem em permanecer em nossas bocas e em nossas falas e que, com mais intensidade, se revelam nas falas e nas bocas dos brasileiros que tiveram pouco acesso aos bancos escolares ou que habitam as áreas rurais e as periferias das grandes cidades (Naro e Scherre 2007:17).
Não há espaço suficiente para discutir a argumentação empírica trazida por Naro e Scherre para sustentar suas hipóteses. Remetemos a Galves (2012) e Lucchesi (2012) para uma refutação desses argumentos.
É nesse quadro empírico bastante rico que podemos enfrentar a grande questão contida na última frase do trecho de Silva Neto reproduzido anteriormente: a da filiação. Consideraremos aqui essa questão sob dois ângulos. O primeiro, de natureza tanto empírica quanto teórica, diz respeito ao efeito do contato. A questão central é se o contato pode resultar em transferência de traços/propriedades de uma língua para outra, ou se seu efeito se limita a processos de reestruturação provavelmente universais, independentes das línguas em presença. É frequentemente nesse caso que se fala de “crioulização”, apesar de esse tipo de efeito não se limitar provavelmente às línguas crioulas. O pioneiro dos estudos sobre dialetos ultramarinos do português, Adolfo Coelho, nega veementemente a influência direta de uma língua sobre outra:
Os factos acumulados por nós mostram à evidência que os caracteres essenciais desses dialectos são por toda a parte os mesmos, apesar das diferenças de raça, de clima, das distancias geográficas e ainda dos tempos. É em vão que se buscará, por exemplo, no indo-português uma influência qualquer do tamul ou do cingalês (Coelho 1967 [1880, 1882, 1886]: 105-106)
Na próxima seção, em contraposição a pontos de vista como os de Coelho, abordaremos propriedades morfossintáticas do português brasileiro e mostraremos que algumas delas podem ser tratadas como o resultado da transferência de estruturas provenientes de línguas bantas.
A segunda questão crucial a respeito da filiação é o quadro teórico no qual se coloca a questão do contato: o que significa dizer que duas ou mais línguas estão em contato? Para tratar brevemente dessa questão, faremos menção a seguir a dois modelos de contato, relacionados com duas concepções distintas de língua.
O primeiro modelo é de natureza mentalista e se articula com a teoria de Princípios e Parâmetros, que vem marcando os diferentes desdobramentos da Gramática Gerativa nas últimas três décadas. Esse modelo focaliza a reanálise efetuada pelo aprendiz na sua tarefa de fixação de parâmetros, tanto na segunda como na primeira língua. Como veremos em mais detalhes na próxima seção, Gonçalves (2004, 2010) e Gonçalves e Chimbutane (2004), em estudos sobre o português em Moçambique, propõem uma análise na qual levam em conta a ação dessa interferência. Uma noção essencial que esses dois trabalhos desenvolvem é a de ambiguidade dos dados da língua a ser aprendida como L2 em função da língua materna:
certas estruturas geradas pela gramática de uma dada língua podem ser ambíguas apenas para os aprendentes dessa língua como L2, devido à influência do conhecimento que já têm da gramática da sua L1, i.e, a ambiguidade da L2 resulta da possibilidade de as evidências geradas pela sua gramática poderem ser analisadas na base de propriedades gramaticais das L1s dos aprendentes (Gonçalves e Chimbutane 2004: 23).[11]
O segundo modelo desconsidera os processos de aquisição e enfatiza a questão da interação entre membros da comunidade. Contrariamente ao primeiro, que define a língua como uma propriedade interna da mente - o que Chomsky (1986) chama de Língua-I(nterna) -, o segundo vê esta como um organismo (equivalente ao que, nos estudos biológicos, denomina-se espécie) que, como tal, evolui em função do seu meio (cf. Clements 2009; Mufwene 2008). Os membros da espécie são os idioletos dos falantes, constituídos de traços heterogêneos (nos diversos níveis linguísticos) - comparáveis aos genes - permanentemente negociados na interação. Essa negociação tem como efeito o favorecimento de certos traços em detrimento de outros, num processo de competição. Negrão e Viotti (2011, 2012) discutem, à luz dessa teoria, a emergência da construção que denominamos genericamente de tópico-sujeito em 3.1. Elas explicam que, da perspectiva desse modelo, em situação de contato entre línguas diferentes, o mesmo processo de competição se estabelece, favorecendo traços linguísticos de maior semelhança entre as línguas participantes. No caso do português clássico e do quimbundo, existem, segundo as autoras, estratégias de topicalização semelhantes, que estão na origem da emergência, no português brasileiro, de novas formas em que o tópico acaba sendo tratado como um sujeito.
Genericamente, as duas teorias compartilham a idéia de que o contato gera sobreposição de traços de uma língua à outra. Porém, ao discordarem sobre a natureza do processo em que isso acontece (aquisição de segunda língua num caso, interação no outro caso), elas diferem crucialmente num ponto. No modelo mentalista, o efeito do contato é assimétrico: a segunda língua é reinterpretada à luz da língua materna dos falantes. Na teoria da competição, ao contrário, o processo é visto como uma elaboração conjunta que resulta na escolha de novos arranjos de traços a partir de um banco (pool) comum. Esta última prevê, portanto, que o efeito seja o mesmo para todos os falantes envolvidos, o que não é obviamente o caso, já que as línguas não se influenciam mutuamente, mas uma influencia a outra. A teoria da competição também prevê que todas as línguas usadas numa comunidade possam ter um efeito sobre as outras. Essa predição não é feita pelo outro modelo, que considera que, para haver a influência de uma língua sobre a outra, esta tem que ser aprendida como L2[12].
Adotamos aqui o modelo mentalista, por nos parecer, para os objetivos mais imediatos deste trabalho, mais explicativo e ter um poder preditivo mais forte. Não resta dúvida, porém, de que esse modelo precisa ser complementado por uma análise das condições sociohistóricas nas quais as inovações introduzidas pela aquisição de uma L2 se propagam pela sociedade. Primeiro, se as análises que seguem têm fundamento, a influência maciça que os africanos tiveram sobre a formação do português brasileiro se deve certamente ao fato de eles terem sido, como mencionado na introdução, um veículo importante da expansão da língua portuguesa pelo território brasileiro. Em seguida, não há também dúvida de que um processo de seleção, favorecido pela chegada regular de falantes de português da metrópole, bem como pela urbanização e escolarização (cf. Lobo 2001), se estabeleceu em relação aos traços inovadores introduzidos de início, fazendo com que alguns se mantivessem na língua, enquanto outros desaparecessem, a não ser em comunidades isoladas. Os fenômenos que estudamos a seguir (com exceção das construções de duplo objeto, tratadas em 3.3) são amplamente difundidos em termos geográficos e compartilhados por todos os segmentos da sociedade brasileira, apesar de possíveis diferenças na sua extensão e frequência, a serem desveladas em análises dialetais.
3. Estudo de casos
3.1 Construções de tópico-sujeito
Desde o trabalho de Pontes (1987), as chamadas construções de tópico-sujeito, exemplificadas em (1) a seguir, têm ocupado um lugar de destaque nos estudos sobre a sintaxe do português brasileiro, não apenas por consistirem, da perspectiva tradicional, num padrão frásico inusitado, mas também por sugerirem que as variedades europeia e brasileira do português são tipologicamente diferentes no que diz respeito ao estatuto de “orientação ao sujeito/tópico”. O caráter inusitado dessas construções está no fato de a flexão não concordar com o sujeito lógico da oração (muito carro em (1a) e o dentinho em (1b)), mas sim com um termo topicalizado em posição pré-verbal que pode corresponder ao que a gramática tradicional classifica como um adjunto adverbial ou complemento locativo (cf. a paráfrase em (2a) para o caso em (1a)) ou a um adjunto adnominal (cf. a paráfrase em (2b) para o caso em (1b)). No que diz respeito à questão tipológica, o que chama a atenção é o fato de essas construções não serem usuais no português europeu, nem em outras línguas românicas, o que tem levado muitos estudiosos do português brasileiro a caracterizá-lo como tendo uma sintaxe que compartilha propriedades com a das chamadas línguas “com proeminência de tópico” ou “orientadas ao discurso”, em oposição àquelas analisadas como sendo consistentemente “orientadas ao sujeito” (vejam-se, dentre outros, os trabalhos de Galves 1998; Negrão 1999; Duarte e Kato 2008; Modesto 2008; Avelar e Galves 2011).
1. a. Essas ruas passam muito carro.
b. As crianças já estão nascendo o dentinho.
2. a. Nessas ruas passa muito carro.
b. O dentinho das crianças está nascendo.
Em Avelar e Galves (2013) e Avelar (a sair), abordamos essas construções a partir de uma perspectiva sociohistórica, indagando sobre os fatores que teriam contribuído para a sua emergência no português brasileiro. Considerando exemplos como os que se seguem em (3) e (4), extraídos de blogues da internet publicados no Brasil, Avelar (a sair) divide essas construções em dois grupos: (i) o daquelas sentenças que mostram o que denomina concordância locativa, exemplificadas em (a)-(b) de (3), assim reunidas porque o termo concordante com a flexão verbal indica uma localização espacial, como observado nas paráfrases em (a’)-(b’); (ii) e o daquelas que denomina concordância possessiva, apresentadas em (a)-(b) de (4), uma vez que, em tais casos, o termo concordante indica um possuidor, o que se pode observar pelas paráfrases correspondentes.[13]
3. Construções de tópico-sujeito com concordância locativa
a. “algumas concessionárias tão caindo o preço [do carro]”
a’. Em algumas concessionárias tá caindo o preço do carro.
(http://forum.carrosderua.com.br/index.php?showtopic=122656).
b. “No interior de SP e do Rio, algumas cidades nevam”
b’. No interior de SP e do Rio, em algumas cidades neva.
(http://www.youtube.com/all_comments?v=IlOPh-mITyc).
4. Construções de tópico-sujeito com concordância possessiva
a. “conheço pessoas que fizeram isso e caíram o cabelo”
a’. ...e o cabelo delas/das pessoas caiu.
(https://br.answers.yahoo.com/question/index?qid=20081119080133AAFPQLS).
b. “até hoje eu tou doendo o pescoço de dançar aquela dança miserável”
b’. até hoje meu pescoço tá doendo...
(http://www.flogao.com.br/osgoroboys/33044167).
Em Avelar e Galves (2013), argumentamos que a presença das construções de tópico-sujeito no português brasileiro se deve à influência do aporte linguístico africano introduzido no Brasil por conta do tráfico negreiro entre os séculos XVI e XIX. Esse argumento é sustentado pelo fato de o padrão frásico comum às construções com concordância locativa ser largamente atestado entre as línguas bantas, sob o rótulo do que se convencionou chamar de inversão locativa na literatura da área. Essas construções são exemplificadas em (5)-(7) a seguir com dados de línguas bantas[14], mostrando, tal como nas construções em (3) do português brasileiro, a concordância do verbo com um constituinte interpretado como lugar ou direção, em vez de se dar com o sujeito lógico da sentença, sempre em posição pós-verbal.
5. OTJIHERERO (Marten 2006: 98)
mò-ngàndá mw-á-hìtí òvá-ndú
18-9.house SC18-PAST-enter 2-people
‘Into the house/home entered (the) gests’
6. KINANDE (Baker 2003: exemplo 25)
Omo-mulongo mw-a-hik-a (?o-)mu-kali
LOC.18-village 18S-T-arrive-FV (AUG)-CL1-woman.1
‘At the village arrived a woman’
7. LUBUKUSU (Diercks 2011: 703)
Mú-mú-siirú mw-á-kwá-mó kú-mú-saala
18-3-forest 18s-PST-fall-18L 3-3-tree
‘In the forest fell a tree’
É importante destacar que o quimbundo, consensualmente apontada, ao lado do quicongo e do umbundo, como a língua materna da maioria dos africanos introduzidos no Brasil (Bonvini 2008), apresenta esse mesmo padrão de inversão locativa, tal como nos dados destacados em (8) a seguir – os morfemas classificadores em negrito mu-, bu- e ku-, introduzindo constituintes locativos em posição pré-verbal, são reproduzidos como um prefixo junto à forma verbal -ala (ni) ‘estar, ter’, evidenciando o estabelecimento da concordância entre o locativo e o verbo. Na Grammatica Elementar do Kimbundo ou Língua de Angola, faz-se menção ao fato de a sintaxe dessa língua permitir a concordância locativa, salientando que “quando, por inversão, o locativo acontece preceder o verbo, este concorda com elle, tomando-o como prefixo. Na inversão, o sujeito logico perde toda influencia sobre o verbo, de modo que não importa a qual cl. sing. ou pl. o sujeito pertença, comtanto que seja de 3a pessoa” (Chatelain 1888/89: 89). O efeito da inversão observada no quimbundo, que leva o sujeito lógico a “perder influência” sobre o verbo, é claramente válida para os dados em (3) do português brasileiro, o que revela haver uma convergência sintática entre esta variedade do português e o quimbundo (bem como as demais línguas bantas) no que tange a propriedades da concordância locativa.
8. QUIMBUNDO (http://www.linguakimbundu.com/index3.html)
a. Mu njibela muala ni kitadi? (No bolso tem dinheiro?)
b. Bu kibuna kiami buala o kamba rienu? (No meu banco está o vosso amigo?)
c. Ku ‘nzo ié kuala ni ndenge? (Na tua casa tem criança?)
Quanto aos casos de concordância possessiva, exemplificadas em (4) com dados do português brasileiro, seu estudo ainda é incipiente entre as línguas nigero-congolesas, mas a ocorrência desse padrão frásico é registrada em línguas bantas, conforme mostram os exemplos em (9)-(10) a seguir. Observe-se que os termos em posição de sujeito (Mavuto em (9) e child em (10)) correspondem aos possuidores do constituinte que se segue ao verbo (respectivamente, eyes e head), o que revela um comportamento similar ao dos casos com concordância possessiva do português brasileiro.
9. CHICHEWA (Simango 2007: exemplo 23)
Mavuto a-na-f-a maso
Mavuto SM-PST-die-FV eyes
‘Mavuto became blind’ (Lit. ‘Mavuto died eyes’)
10. HAIA (Hyman 1977 apud Simango 2007: exemplo 24)
Omwaana n-aa-shaash’ omutwe
child PR-he-ache head
‘The child has a headache’ (Lit. ‘The child is aching the head’)
A inequívoca convergência com as línguas bantas no que diz respeito aos casos de concordância locativa e possessiva torna plausível a hipótese de que as construções de tópico-sujeito emergiram no português brasileiro em função do contato interlinguístico, mais precisamente pela transferência de propriedades das línguas faladas pelos africanos, por meio de um processo de transmissão linguística irregular, ao qual nos referimos na introdução deste trabalho.
Um aspecto que corrobora essa hipótese são as construções de tópico-sujeito no português emergente em Moçambique, em sentenças como as que se seguem, apresentadas em Gonçalves (2010). O fato de os aprendizes do português como segunda língua em Moçambique serem falantes nativos de línguas bantas sugere fortemente que essas construções são o resultado de contato interlinguístico, com uma possível transferência de matrizes oracionais de sua língua materna para o português aprendido como segunda língua.[15]
11. PORTUGUÊS MOÇAMBICANO (L2)
a. Ela nasceu dois filhos na Suazilândia. ( = Dois filhos dela nasceram na Suazilândia)
b. Os olhos saíram lágrimas. ( = Saíram lágrimas dos olhos )
Gonçalves destaca ainda construções como aqueles em (12), em que um sintagma preposicionado introduzido pela preposição locativa em ocupa a posição de sujeito, produzindo construções que não são gramaticalmente aceitas no português europeu. Avelar e Cyrino (2008) observam padrões frásicos desse mesmo tipo no português brasileiro, exemplificados em (13), argumentando, com base em testes sintáticos, que o sintagma preposicionado se encontra na posição de sujeito.
12. PORTUGUÊS MOÇAMBICANO (L2)
a. Na igreja é pequeno. (= A igreja é pequena.)
b. Na minha casa é perto da estrada. (= A minha casa é perto da estrada.)
13. PORTUGUÊS BRASILEIRO
a. “na minha escola aceita cartão de crédito”
a’. a minha escola aceita cartão de crédito
(twitter.com/giiovannaflores/status/18219596304)
b. “no meu carro faz esse barulho de tuchos hidráulicos”
b’. o meu carro faz esse barulho de tuchos hidráulicos
(www.vectraclube.com.br/forum/viewtopic.php?)
É importante observar que, similarmente ao português moçambicano e ao português brasileiro nos casos respectivamente em (12) e (13), algumas línguas bantas exibem estruturas nas quais um sintagma marcado pela presença de um item adposicional (correspondente à preposição portuguesa em) ocupa a posição de sujeito. Esse é o caso, por exemplo, do Zulu, com as construções exemplificadas em (14): a diferença entre (14a) e (14b) é que, em (14a), o constituinte locativo em posição pré-verbal traz um morfema adpositivo (ni) equivalente à preposição em, mas não em (14b). No caso de (14a), temos E-sikole-ni, que equivale, em português, a “na escola”, enquanto em (14b) temos I-sikole, que equivale a “a escola”. Trata-se da mesma relação observada entre (a)-(b) e (a’)-(b’) nos exemplos em (13) do português brasileiro, em que um sintagma nominal pode alternar com um sintagma preposicionado em posição de sujeito.
14. ZULU (Buell 2003: 109;113)
a. [PP E-sikole-ni ] ku-zo-fund-el-w-a (nga-bantwana)
loc:7-7.school-loc 17.SBJ-fut-study-APPL-psv-fv by:2-child
‘The school will be studied at (by the children)’
b. [DP I-sikole ] si-fund-el-a a-bantwana
7-7.school 7.SBJ-study-APPL-FV 2 2.child
(Lit. ‘The school studies at the children’)
Frente a esse conjunto de dados, um possível argumento contrário à hipótese aqui delineada é o fato de as construções de tópico-sujeito não terem sido, até agora, identificadas entre fontes escritas no Brasil ao longo dos séculos XVIII e XIX e metade do XX, o que sugere, à primeira vista, tratar-se de uma inovação recente, por conta de mudanças sintáticas internas ao sistema da língua, sem qualquer relação com efeitos de contato interlinguístico que pudesse envolver as línguas africanas. É importante ter em mente, contudo, que a ausência dos dados relevantes em tais fontes não significa que a emergência dessas construções não remonte a fases anteriores do português brasileiro. Dado o conservadorismo ao qual tende a língua escrita no que diz respeito ao acolhimento de inovações gramaticais, seria uma surpresa se as fontes disponíveis para estudo provenientes dos séculos XVIII, XIX e metade do XX (em sua maioria, documentos de cunho formal) evidenciassem, de forma inequívoca, os dados relevantes.
Cabe ressaltar que, se a hipótese aqui defendida estiver no caminho correto, as construções de tópico-sujeito devem ter surgido entre as camadas socialmente menos privilegiadas da população, entre as quais o processo de aquisição do português como L1 era provavelmente bastante sensível às inovações desencadeadas pelo aprendizado do português como L2 pelos africanos. O mesmo provavelmente não se observava entre as classes socialmente mais favorecidas, que tinham, pelo menos em meio urbano, amplo acesso ao modelo do português europeu. Era essa população socialmente mais favorecida que produzia a maioria dos textos dos séculos XVIII, XIX e primeira metade do XX que temos à nossa disposição, o que dificultava, obviamente, a entrada de padrões frásicos produzidos pelas camadas mais populares na língua escrita. Não é à toa que, neste início do século XXI, os blogues da internet tenham se mostrado uma fonte bastante profícua para a detecção das construções de tópico-sujeito, tendo em vista tratar-se de um espaço bastante democrático no que diz respeito à possibilidade de expressão escrita, com pessoas de diferentes níveis sociais e de escolaridade manifestando suas opiniões sobre os mais diferentes assuntos, algo bastante inesperado há cerca de apenas 20 anos.
Portanto, a hipótese do contato para explicar o surgimento das construções de tópico-sujeito no português brasileiro pode ser mantida, independentemente de tais construções serem identificadas em fontes provenientes dos séculos anteriores.
3.2 Preposições na introdução de complementos dos verbos de movimento
Um proeminente contraste entre variedades do português brasileiro e do português europeu é a possibilidade de as primeiras permitirem, em larga escala, o emprego da preposição locativa em na complementação dos chamados verbos de movimento, como ir, vir e chegar, como em (15a) a seguir. No português europeu, a preposição comumente empregada em contextos frásicos desse tipo é a, como em (15b)[16].
15. a. Fui/Cheguei/Vim no cinema. PB: ok / PE: *
b. Fui/Cheguei/Vim ao cinema. PB: ok / PE: ok
O que torna esse uso da preposição em interessante para os estudos em torno das dinâmicas de contato interlinguístico é o fato de variedades africanas de português e espanhol mostrarem essa mesma propriedade. Os dados em (16) e (17) a seguir são exemplos, respectivamente, do português moçambicano e do espanhol guinéu-equatoriano, falados como L2 em zonas de línguas bantas.[17]
16. PORTUGUÊS MOÇAMBICANO (L2) (Gonçalves 2010: 157-161)
a. “vai lá em casa tirar os cabritos” b. “chego ali na cantina”
17. ESPANHOL GUINÉU-EQUATORIANO (L2) (Quilis e Casado-Fresnillo 1995: 488-493)
a. “llevan ese cacao en casa” b. “fui en el ayuntamiento
Especificamente sobre o português moçambicano, Gonçalves (2010) chama a atenção para a existência de três padrões de complementação direcional, em contraste com o português europeu, que emergem da aquisição do português como L2 em Moçambique: sintagmas nominais antecedidos por em, (cf. 18a); sintagmas nominais antecedidos simultaneamente por para e em, (cf. 18b); e sintagmas nominais sem qualquer preposição que o anteceda, (cf. 18c).
18. PORTUGUÊS MOÇAMBICANO (L2) (Gonçalves 2010: 158-161)
a. em + SN: “quando voltávamos em casa”
b. para + em + SN: “eu vou para no rio para pescar”
c. SN: “fomos jardim”
De acordo com Gonçalves, a emergência desses três padrões é devida à transferência de propriedades morfossintáticas das línguas bantas para o português adquirido como L2 por seus falantes nativos. Não há aqui espaço para mostrar todos os argumentos dispostos por Gonçalves na apresentação da sua hipótese, mas, em linhas gerais, a autora observa que, em línguas como o changana, faladas como L1 na região de Maputo, constituintes com intepretação locativa e/ou direcional podem trazer em sua configuração um índice locativo (o sufixo –eni), como em (19) a seguir, que não altera o estatuto categorial do SN (Sintagma Nominal) – ou seja, não o transforma num sintagma preposicionado: no termo kerek-eni “na igreja”, -eni não se caracteriza como uma posposição; o termo que abarca esse sufixo se configura integralmente como um SN que serve para indicar lugar onde.
19. CHANGANA: complemento direcional (Gonçalves 2010: p. 134)
Tin-tombhi ti-y-e kerek-eni
10-rapariga 10MS-ir-PS 9igreja-LOC
‘As raparigas foram à igreja.’
Gonçalves ressalta que, nas línguas bantas, “os constituintes que exprimem lugar onde são normalmente realizados como SN, os quais, para além de poderem desempenhar a função de oblíquo, tem também acesso às posições sintácticas de sujeito e objeto” (Gonçalves 2010: 134)[18]. Os exemplos em (20) e (21) a seguir, que trazem um argumento locativo com -eni como sujeito e como objeto, respectivamente, confirmam o estatuto de kerek-eni como um SN; se se tratasse de um sintagma preposicionado, as construções deveriam resultar agramaticais, uma vez que ocorrem em posições nas quais esse tipo de sintagma não é autorizado, o que não é o caso.
20. CHANGANA: termo locativo em posição de sujeito (Gonçalves 2010: 134)
Kerek-eni ku-tsongo k-a hina ku-sasek-ile
17igreja-LOC 17-pequeno 17-GEN nós 17-bonita
‘A nossa pequena igreja é bonita’ / Lit.: ‘Em igreja pequena de nós é bonita’
21. CHANGANA: termo locativo em posição de objeto (Gonçalves 2010: 134)
Tin-tombhi t-a-ku-tiv-a (kerek-eni)
10-rapariga 10MS-PRE-17MO-conhecer-VF 17igreja-LOC
‘As raparigas conhecem a igreja’ / Lit.: ‘As raparigas conhecem em igreja’
Frente a essa propriedade de línguas como o changana, a autora propõe ter havido uma reanálise da preposição em entre dados do português moçambicano como os apresentados em (a)-(b) de (18): uma vez que as línguas bantas podem apresentar um morfema locativo – o item -eni (semanticamente equivalente à preposição em do portugês) na arquitetura interna dos SNs, os falantes dessas línguas passaram a tratar o item em do português não mais como uma preposição introdutora de sintagmas nominais, mas como um morfema locativo que dispõe da mesma natureza que o identificado naquelas línguas. Dessa perspectiva, os constituintes introduzidos por em nos exemplos em (18a) não devem ser caracterizados como sintagmas preposicionados, mas como SNs não preposicionados que abarcam um morfema locativo em sua constituição. Isso explica por que os constituintes introduzidos por em podem ser antecedidos pela preposição para no português moçambicano, como em (18b): segundo Gonçalves, não estamos diante da coocorrência de duas preposições (para e em), mas de um SN que traz em seu interior o morfema locativo em e é introduzido pela preposição para. Essa análise nos leva a considerar que, no português moçambicano, a diferença entre (18a) e (18c) não está, respectivamente, na presença ou ausência da preposição: a rigor, dentro dessa análise, a ausência da preposição também se dá em (18a); o que distingue os dois grupos é, portanto, o fato de os complementos das construções em (18a) serem sintagmas nominais que trazem o morfema locativo em no seu interior, ao passo que os complementos em (18c) são sintagmas nominais que não trazem tal morfema.
Parece-nos, à primeira vista, que a proposta de Gonçalves em torno da reanálise de em como um morfema locativo não pode ser aplicada ao português brasileiro comum, do contrário seria esperado que os padrões apresentados em (18b) e (18c) também fossem usuais nessa variedade, o que não é o caso[19]. Contudo, em um estudo preliminar sobre complementos direcionais em afro-variedades de português, Avelar e Álvarez-López (2013) observam casos de ausência de preposição no chamado português afro-brasileiro falado na comunidade de Helvécia[20], interior da Bahia, exemplificados em (22) a seguir. Outro fato interessante é que, entre os 148 dados levantados pelos autores nas amostras de fala de Helvécia, não foi identificada uma ocorrência sequer com a preposição a: os dados revelam haver uma variação entre ausência e presença de preposição (em geral, em ou para), sem que a esteja presente entre os itens disponíveis aos falantes dessa comunidade para introduzir complementos direcionais.
22. PORTUGUÊS AFRO-BRASILEIRO (Helvécia, Bahia/Brasil)
a. “a primeira vez que fui o médico” (= ...que fui no/ao médico.)
b. “vou quase toda festa que tem em Helvécia” (= vou em/a quase toda festa...)
c. “quando chega lá Mané Peixoto” (= quando chega lá em/a Mané Peixoto)
Os fatos relativos à ausência vs. presença de preposição, observados no português afro-brasileiro, bem como no português L2 de Moçambique, podem ser reveladores do estágio inicial das mudanças que levaram à generalização de em como elemento introdutor dos complementos direcionais entre as variedades do português brasileiro contemporâneo. Se esta hipótese estiver no caminho correto, a sintaxe de complementação direcional característica do português brasileiro contemporâneo pode ser tratada como um desdobramento do que vemos hoje no português afro-brasileiro de Helvécia, com os casos de ausência de preposição tendo sido suprimidos por razões que ainda precisam ser compreendidas. Uma possível explicação está no que Lucchesi (2009b: 71) aponta como consequências da miscigenação e da integração social entre escravos e não escravos: como já ressaltado na introdução deste trabalho, os dois fatores “favorecem a assimilação dos padrões linguísticos dominantes por parte dos dominados” e “abrem vias de introdução, na fala das camadas médias e altas, de estruturas criadas por mudanças nos extratos mais baixos”. Esse pode ter sido o cenário que conduziu à generalização de em na complementação direcional entre falantes de todos os estratos sociais no Brasil (com o emprego dessa preposição sendo uma influência dos estratos mais baixos sobre os mais altos) e, ao mesmo tempo, bloqueou a difusão dos casos em que a preposição é eliminada, bem como garantiu uma “sobrevida” à preposição a, ainda que em baixa frequência (uma influência devida à ação dos extratos mais altos sobre os mais baixos).
As particularidades atestadas no português afro-brasileiro podem, dessa perspectiva, ser vistas como resultado do isolamento geográfico e social em que a comunidade de fala permaneceu durante um longo período, o que permitiu a preservação de marcas linguísticas reveladoras do estágio em que os efeitos da aquisição do português como L2 pelos africanos se faziam ver mais facilmente. Tendo em vista esse conjunto de considerações, é perfeitamente plausível a hipótese de que a generalização de em na introdução de complementos direcionais seja uma influência de substrato, por meio da difusão de marcas presentes no português adquirido como L2 pelos africanos, afetado pela transferência de propriedades gramaticais do aporte linguístico africano introduzido no Brasil, na linha do proposto por Gonçalves (2010) para o português moçambicano.
Não podemos, contudo, descartar a possibilidade de essa generalização ser, pelo menos em parte, o resultado não da influência de substratos africanos, mas da dificuldade, por parte dos adquirentes de português como L2, de assimilar propriedades relativas à sintaxe da complementação direcional, em especial no que diz respeito à escolha da preposição introdutora dos complementos. A preposição a pode ter sido eliminada da complementação direcional no português afro-brasileiro por ser de baixa saliência fônica, o que teria dificultado a sua percepção (e consequente produção) por parte dos aprendizes africanos de português como L2. Isso nos levaria a considerar os casos de ausência de preposição não como o resultado de uma influência de substrato, mas como um fato extensivo à supressão de a nesses contextos (cf. adiante o caso do artigo feminino). Por sua vez, a generalização de em poderia, dessa perspectiva, ser explicada pelo fato de essa ser a preposição canônica do português para introduzir constituintes que expressam lugar onde: uma vez que os complementos direcionais são, quase sempre, inerentemente locativos, não seria surpresa se os aprendizes de português como L2 fossem levados à conclusão de que em é um item que serve à introdução de complementos desse tipo, principalmente diante da dificuldade em assimilar a preposição a.
Decidir qual das duas hipóteses está no caminho correto, ou até mesmo saber se uma e outra devem ser combinadas para explicitar apropriadamente os fatos relevantes, demanda ampliar o escopo deste estudo para as variedades do português fora do eixo África-Brasil (por exemplo, na Ásia), no intuito de verificar se, sem a presença das línguas bantas como substrato, encontramos ou não os mesmos efeitos quanto ao uso de preposições junto a complementos direcionais. Exige igualmente atentar para outros contextos de uso das preposições locativas e direcionais (por exemplo, entre os chamados adjuntos adverbiais e predicados espaço-temporais) tanto nas línguas bantas quanto nas variedades do português, no intuito de verificar em que medida as convergências sintáticas já atestadas na complementação direcional se estendem para outros padrões frásicos.
3.3 Preposição em expressões dativas
O desuso da preposição a também está no centro de uma construção presente em alguns dialetos do português brasileiro, como os da Zona da Mata (Scher 1996) e de Helvécia (Baxter e Lucchesi 1997; Lucchesi e Mello 2009). Trata-se da construção de objeto duplo (COD), ou alternância dativa, também observada na fala dos moçambicanos que têm o português como L2 (Gonçalves 2004, 2010), em frases das Atas dos Brasileiros escritas por afrodescendentes diretos (Oliveira 2006) e em textos de cunho administrativo e jurídico redigidos em Angola, no século XIX, por africanos falantes de quimbundo e quicongo (Tavares et al. 2002):
23. PORTUGUÊS AFRO-BRASILEIRO - Helvécia/Bahia (Lucchesi e Mello 2009: 442-443)
a. “ele vendia compade Jacó porco gordo” (Ele vendia um porco gordo a/para Compadre Jacó.)
b. “cê manda pedi um empresti ele” (Você manda pedir um empréstimo a ele.)
24. PORTUGUÊS MOÇAMBICANO L2 (Gonçalves 2004: 239)
“uma criança deu o individuo as chaves” (Uma criança deu as chaves a/para o indivíduo.)
25. PORTUGUÊS AFRO-BRASILEIRO – SÉCULO XIX (Atas dos Brasileiros, Oliveira 2006)
“Senhor Prizidente levou ocuisimento da Sembreia um riquirimento do Senhor Manoel Leonardo”
(O Sr Presidente levou ao conhecimento da Assembléia um requerimento do Sr Manoel Leonardo)
26. PORTUGUÊS ANGOLANO – SÉCULO XIX (Textos administrativos e jurídicos, Tavares et al. 2002: 130;153)
a. “...e perguntando o mesmo chefe o Autor se tinha mais qui dizer”
(e perguntando o chefe ao autor se tinha mais que dizer.
b. “...ficando os Reos responcaves de pagarem o Aucttor, a quantia de vinti e seis mil duzentos e sincoenta”
(ficando os réus responsáveis de pagarem ao autor a quantia de vinte e seis mil e duzentos e cinquenta.)
Com base em um estudo prévio desenvolvido sobre dados de vinte línguas crioulas, Lucchesi e Mello (2009: 437) destacam que a COD é encontrada em todas essas línguas, à exceção do malaio-português. É, por outro lado, uma propriedade de todas as línguas do oeste africano, assim como das bantas, o que torna a hipótese da influência dessas línguas na emergência de CODs em português bastante atrativa. Tal hipótese é, contudo, enfraquecida pela existência desse mesmo fenômeno em línguas crioulas fora da África, como as dos oceanos Índico e Pacífico.
Gonçalves (2010) argumenta, porém, que o COD em português moçambicano L2 é resultado da interferência da gramática materna dos falantes de línguas bantas, nas quais, contrariamente ao português, o verbo pode atribuir caso a dois sintagmas nominais. A questão é saber por que e como essa propriedade da língua materna é retida na aquisição da L2, em contradição com os enunciados presentes nesta. A resposta de Gonçalves é que os dados do português são ambíguos para os falantes de línguas bantas, uma vez que a preposição a ora parece desempenhar um papel puramente sintático (de atribuidor de caso quando o verbo tem dois argumentos, como dar), ora se comporta como uma preposição que seleciona semanticamente seu complemento, em articulação com verbos de um argumento só (como telefonar). Frente a essa ambiguidade, os dados do português são analisados com base na gramática das línguas bantas: o verbo atribui dois casos, prescindindo da preposição em frases como as exemplificadas anteriormente em (24), e a preposição a se comporta como um item lexical pleno que seleciona semanticamente um objeto humano como alvo ou beneficiário, independentemente de o verbo ser transitivo ou intransitivo. Esta análise tem a grande vantagem de permitir derivar um fenômeno aparentemente contraditório em relação ao que observamos nas construções de alternância dativa: o uso da preposição a junto a objetos diretos[21], como exemplificado a seguir em dados de Gonçalves (2010) e Tavares et al. (2002):
27. PORTUGUÊS MOÇAMBICANO L2 (Gonçalves 2010: 128)
a. “A natureza não pode dominar ao homem” (A natureza não pode dominar o homem.)
b. “Uma das amigas foi visitar a ela” (Uma das amigas foi visitá-la/visitar ela.)
28. PORTUGUÊS ANGOLANO – SÉCULO XIX (Textos administrativos e jurídicos, Tavares et al. 2002: 142)
a. “tendo tambem Captivado a Sebastião Amazengo” (Tendo prendido também Sebastião Amazengo.)
b. “sendo perguntado, pello Tenente Chefe, quem havia ferido ao seu filho” (...quem havia ferido o seu filho.)
Uma explicação alternativa para o emprego de a junto a objetos diretos seria a de que esse uso tem sua origem no próprio português clássico, que apresentava o chamado acusativo preposicionado. Essa hipótese poderia ser defendida para o português brasileiro, mas dificilmente para o português moçambicano, uma vez que, dada a colonização tardia de Moçambique, a língua-alvo para aquisição como L2 naquele país é o português europeu moderno, que não dispõe do acusativo preposicionado. Com efeito, essa construção entrou em desuso no português a partir do século XVIII, mas é no século XX que a língua portuguesa entra sistematicamente em território moçambicano (Gonçalves 2010). Um corolário do uso da preposição a com objetos diretos é a ocorrência do pronome clítico dativo lhe no mesmo contexto, como nos exemplos a seguir extraídos de documentos angolanos do século XIX, um uso que é largamente atestado no português brasileiro contemporâneo.
29. PORTUGUÊS ANGOLANO – SÉCULO XIX (Textos administrativos e jurídicos, Tavares et al. 2002: 140; 142)
a. “Requer nesta Audiencia que o Reo apresente o Sobrinho delle Autor para ser endagado a passoa que lhe sacinou”
(Requer nesta audiencia que o réu apresente o sobrinho do autor para ser indagado a respeito da pessoa que o assassinou)
b. “que diga qual seja o macota que lhe foi buscar no dito Congo”
(Que diga qual seja o macota que o foi buscar no dito Congo)
Esses últimos exemplos nos remetem à reorganização do sistema pronominal, que será discutido na próxima seção.
3.4 A reorganização do sistema pronominal
O sistema pronominal brasileiro apresenta muitas diferenças em comparação com o europeu. Dentre elas, consideraremos aqui três: o uso do pronome clítico dativo lhe em substituição ao clítico acusativo o, o uso do pronome tônico ele em substituição ao mesmo pronome acusativo e a colocação pré-verbal dos pronomes clíticos.
Os dois primeiros fenômenos são amplamente atestados no português africano, tanto no passado, quanto nos dias atuais[22]. No Brasil, encontram-se em todos os estratos da sociedade, bem como em comunidades isoladas (Lucchesi e Mendes 2009: 481). A comparação com as línguas bantas sugere que, também nesse caso, houve transferência de propriedades dessas línguas no português adquirido por falantes africanos. Inverno, comparando o português falado na província de Lunda Norte, em Angola, com o Cockwe, língua banta falada nessa região, afirma:
a more detailed analysis of the Cokwe data allows me to confidently hypothesize that two aspects of the linguistic structure of Cokwe account for the replacement of direct object clitics o(s), a(s), on the one hand, and lhe, on the other. Firstly, as shown in section 4.1.2 above, there is no distinction between subject and object person markers in Cokwe, i.e. they are formally the same. Secondly, there is also no formal distinction between direct and indirect object markers in Cokwe (Inverno 2011: 177).
A segunda propriedade mencionada por Inverno é a mesma referida por Gonçalves (2010) a respeito do português L2 em Moçambique: não há marcação diferenciada entre o objeto direto e indireto nas línguas bantas[23]. Quanto à primeira, ela resulta de uma propriedade análoga: a ausência de diferenciação casual entre sujeito e objeto. Vale lembrar que Silvio Elia já considerava o uso do pronome tônico em posição de objeto uma influência das línguas africanas:
Outro caso de muito provável afronegrismo é do ele/ela como objeto direto. [...] Houve, de fato, entre nós, um rearranjo do sistema dos pronomes pessoais. Nesse novo sistema ele, forma reta e tónica, substitui o, forma oblíqua e átona [..] Como se insinuou esse ele? Parece-me razoável compreender que o falante ele (sic) uma língua que desconhece variações de natureza casual, faça de um pronome de 3a pessoa (ele) uma forma nominal, tanto como sujeito (ele), como objeto direto (ele), como objeto indireto (a ele) [...] E isso poderia ter-se generalizado por influxo do falar dos negros escravos, no eito e na senzala ou na casa-grande (Elia 2003: 62-63).
O fato de as línguas bantas “desconhece[rem] variações de natureza casual” já era mencionado pelo jesuíta Pedro Dias, na primeira gramática de uma língua dessa família, o quimbundo, intitulada Gramática da língua d’Angola, publicada na Bahia em 1697: “Não tem esta língua declinações nem casos; mas tem singular e plurar” (Dias 1698: 4)[24].
Uma explicação alternativa foi frequentemente alegada para o uso do pronome tônico em posição de objeto: a de que essa construção era atestada, ainda que raramente, no português antigo, e que se tratava, portanto, de um caso de deriva. Mesmo admitindo que a língua chegada ao Brasil no século XVI pudesse ter em certos casos alguns traços arcaizantes, essa análise não se sustenta para o português angolano, já que, como notado por Gartner (1989 apud Inverno 2011), o uso da língua portuguesa só se espalhou pelo interior de Angola no final do século XIX e no início do século XX. A concomitância desse traço no Brasil e em Angola e Moçambique dá, assim, forte respaldo à hipótese da transferência de propriedades das línguas africanas.
A terceira diferença concerne à generalização da colocação proclítica no português brasileiro, em oposição à generalização da colocação enclítica no português europeu. Convém a esse respeito distinguir dois contextos: em posição inicial absoluta de frase, a próclise constitui uma genuína inovação; em posição não inicial, ao contrário, pode ser considerado um traço conservador, uma vez que o português europeu dos séculos XVI e XVII era altamente proclítico nesse contexto. Já que o aumento da frequência da ênclise se dá em Portugal a partir do século XVIII (Galves et al. 2005), o português no Brasil não deve ter sido afetado por essa mudança. A próclise ao verbo inicial poderia ser entendida como uma extensão a um novo contexto desse traço conservador. Novamente, essa explicação não pode se aplicar ao português africano pela razão já evocada acima: tanto em Angola quanto em Moçambique, a expansão do português se dá muito mais tardiamente, após o português europeu ter se tornado enclítico. Isso dá força à idéia de que a convergência das variantes brasileiras e africanas em relação à colocação de clíticos possa também se dever à influência das línguas africanas. Inverno (2011) e Figueiredo e Oliveira (2013) sugerem que a propriedade relevante é o fato de os morfemas pronominais serem prefixos nessas línguas[25] - [26].
3.5 Os nomes nus
Uma das características comuns dos dialetos falados nas comunidades afro-descendentes isoladas no Brasil e nas diversas variantes de português na África é a possibilidade da ausência do artigo definido singular em sintagmas nominais com interpretação definida/específica. Encontra-se essa propriedade em documentos históricos africanos (Tavares et al. 2002) e afro-brasileiros (Oliveira 2006; Ribeiro et al. 2012), exemplificada respectivamente em (30) e (31) a seguir, bem como em registros contemporâneos africanos (Chavagne 2005; Inverno 2011), apresentados em (32), e do português brasileiro popular em determinadas comunidades de fala (Baxter e Lopes 2009; Lopes e Pagotto 2014), como em (33). No português brasileiro padrão, essa ausência só é possível quando a interpretação é genérica ou existencial, como em (34). No português europeu, os nomes nus singulares só apresentam essa mesma interpretação quando em posição de complementação verbal ou antecedido de preposição.
30. PORTUGUÊS ANGOLANO – SÉCULO XIX (Textos administrativos e jurídicos, Tavares et al. 2001: 154)
“Pello Dembo Quibaxi Quiamubemba, foi dito e requerido, a capitão e chefe” (...ao capitão e ao chefe.)
31. PORTUGUÊS AFRO-BRASILEIRO – SÉCULO XIX (Atas dos Brasileiros, Oliveira 2006: AJN, Doc. 20)
“mando O Senhor Prizidente ler, acta, do dia 6 de Marco” (...ler a acta...)
32. PORTUGUÊS ANGOLANO
a. “Ele abateu licópetro” (Ele abateu o helicóptero.) (Mendes 1985: 133 apud Inverno 2011:189)
b. “Ai minha senhora, cão vai matar galo” (...o cão vai matar o galo.) (Chavagne 2005: 251, ex.1384)
33. PORTUGUÊS BRASILEIRO POPULAR
a. “Terrero era grande” (O terreiro era grande.) (Português Afro-brasileiro de Helvécia/Bahia - Baxter e Lopes 2009: 319)
b. “Aí soldado pegou nóis para carregar esse defunto” (Aí o soldado pegou nós...) (Português da Baixada Cuiabana - Lopes e Pagotto 2014: 6)
34. PORTUGUÊS BRASILEIRO PADRÃO
a. Gato toma leite
b. Criança gosta de tomate
Mais uma vez, a convergência de propriedades entre o português brasileiro e o português africano nos leva a indagar sobre uma possível influência das línguas africanas sobre a sintaxe nominal dessas variedades. Porém, nesse caso, a questão se apresenta de modo diferente, uma vez que essas línguas (em particular, as bantas) não apresentam o que chamamos canonicamente de determinante, mas antes um sistema de classificadores, como descrito por Mendonça:
O traço mais original que apresentam as línguas africanas, marcadamente as bantu, está na divisão do vocabulário em um número determinado de classes, que se distinguem entre si por afixos próprios a cada uma. A classe forma uma espécie de sistematização das palavras por grupos, que lembram até certo ponto as declinações das línguas clássicas.
Todavia o critério é diferente e na constituição da classe observam-se não só os prefixos (elemento material), mas também o sentido da palavra (elemento espiritual). Deste modo há uma classe constituída pelos seres humanos, outra pelos nomes de plantas, uma terceira pelos nomes abstratos, uma quarta pelos nomes de líquidos, e sucessivamente. (Mendonça [1935] 2012: 65)
Nesse caso, portanto, não se pode falar literalmente de transferência de propriedades das línguas bantas, já que não se acha registro de classificadores em nomes do PB, a não ser em africanismos que reproduzem uma “versão” já lexicalizada desses morfemas (como em macumba e moleque, por exemplo)[27]. Os desvios nos usos dos artigos (bem como dos clíticos de terceira pessoa) parecem, portanto, resultantes das dificuldades de processamento criadas pelas diferenças na morfologia nominal das línguas africanas e das línguas indo-europeias. O fato de o português, com seu artigo definido desprovido de ataque consonantal, dificultar sobremaneira a percepção da função das vogais em início de palavra, é evidenciado por alguns fatos identificados em textos escritos por africanos e afro-descendentes no século XIX, como hesitações de segmentação e de realização das palavras iniciadas com vogais, conforme ilustrado em (35) e (36) adiante (Galves a sair, com base em dados respectivamente de Tavares et al. 2002: 140, 151, e Oliveira 2006, docs 17 e 20 de Antonio José Bracete):
35. a. “e quando o mesmo Dembo mostre o missão” (omissão)
b. “ouvidas a legação do Aucthor pello Capitão e Chefe...”
36. a. “a este respeito nada disse aSemblea”
b. “depois de lido levou O Senhor Socio Thezoreiro ao Connhecimento da Senblea Os trabalhos…”
Esses exemplos, e muitos outros, mostram que não fica claro para o escriba se a vogal inicial faz ou não faz parte da palavra. Essa conclusão é corroborada pelo fato de que, no conjunto das atas da Sociedade dos Desvalidos escritos por brasileiros afrodescendentes (Oliveira 2006), as palavras que aparecem recorrentemente sem artigo definido em contextos nos quais a interpretação é claramente definida são ata e assembleia, ambas iniciadas pela vogal a, em contextos frásicos nos quais a presença ou ausência do artigo não seria audível, como nos exemplos a seguir.
37. a. “mando O Senhor Prizidente ler, acta, do dia 6 de Marco”
b. “entao mando ler acta passada”
Note-se que, nesse caso, o mesmo efeito poderia ser provocado por outras línguas dotadas de morfologia nominal distinta do português, pela mesma dificuldade de processamento dos artigos do português. Cabe também ressaltar que os artigos fazem parte das categorias de “alto risco” (cf. Todeva 1992 apud Gonçalves 2010), pela sua pouca saliência fônica e complexidade de uso. Dependendo das regiões envolvidas, é plausível pensar que o mesmo efeito pode ser devido ao contato com línguas diferentes. Nesse caso, dados socio-históricos adquirem um papel essencial. É com base em dados dessa natureza que Lopes e Pagotto (2014) argumentam que o uso de nomes nus no português falado na Baixada Cuiabana (ver exemplo (33b)) é possivelmente devido ao contato com línguas indígenas (e não com línguas africanas) no século XVIII.
4. Considerações finais
Os dados abordados neste artigo nos levaram a considerar dois tipos de influência por parte das línguas africanas sobre o português no Brasil:
(i) A transferência de propriedades sintáticas, que pode estar na base, como vimos, da emergência das construções de tópico-sujeito no português brasileiro. Dificuldades de processamento da morfossintaxe da língua-alvo podem favorecer a transferência, como no caso da ausência de marcação casual dos pronomes.
(ii) O atrito provocado pela dificuldade de aprendizagem de uma morfologia de tipo radicalmente diferente (por exemplo, classificadores vs. determinantes). Nesse último caso se encontra provavelmente um dos fenômenos mais discutidos do português brasileiro: a alta variabilidade da concordância nominal e verbal, que não abordamos aqui, e que pode ter, em grande parte, sua origem no caráter prefixal das desinências de plural das línguas africanas em contraste com o caráter sufixal do mesmo tipo de desinência nas línguas românicas (veja-se, a esse respeito, a proposta de Baxter 1998).
No sentido estrito, entendemos assim como sendo influência das línguas africanas sobre o português a transposição de propriedades gramaticais das primeiras para a segunda, considerando como evidência dessa transposição a convergência de, senão todas as propriedades a seguir, pelo menos algumas delas.
§ a presença dos traços/construções em questão nas línguas africanas modernas, bem como nos testemunhos disponíveis das suas fases passadas;
§ sua presença em variedades do português africano;
§ sua presença em outras línguas aprendidas maciçamente por africanos, como o espanhol na Guiné Equatorial;
§ sua presença nos dialetos falados em comunidades de forte presença de origem africana que ficaram à margem da evolução da língua nos contextos urbanos;
§ sua presença em documentos históricos escritos por africanos ou afrodescendentes das primeiras gerações, no Brasil ou na África;
§ sua ausência no português europeu (a não ser que seja possível mostrar que se trata de derivações distintas);
§ sua ausência em variantes do português que emergiram a partir do contato com outras línguas;
§ sua ausência nas línguas nativas brasileiras;
§ a sociohistória do contato, ou seja, o tempo de contato e as condições sociais nas quais a nova vertente da língua se desenvolveu.
Apesar de não termos, até aqui, o conhecimento necessário para levar esse trabalho a cabo em toda sua extensão, esperamos ter trazido neste artigo algumas das evidências relevantes que nos permitem afirmar, com uma razoável certeza, a realidade da influência do aporte linguístico africano, em particular as línguas bantas, sobre o português falado no Brasil.
Lista de Abreviaturas
APPL = aplicativo
AUG = vogal aumentativa
CL = prefixo classificador nominal
fut = futuro
FV, fv = vogal final
GEN = genitivo
L, LOC, loc = afixo/adposição/clítico locativo
MS = marca de concordância sujeito-verbo
MO = marca de concordância objeto-verbo
PASS, psv = voz passiva
PAST, PST = passado
PRE, PR, PRS = presente
S, SBJ, SC, SM = marca de concordância sujeito-verbo
T = tempo
VF = vogal final
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[1] Este trabalho foi desenvolvido no âmbito de dois projetos financiados pela FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo): A Língua Portuguesa no Tempo e no Espaço: Contato Linguístico, Gramáticas em Competição e Mudanças Paramétricas (projeto temático - processo 12/06078-9) e Constituintes Locativos e Direcionais em Afro-Variedades de Português e Espanhol (projeto de pesquisa no exterior - processo 13/07112-9). É também parcialmente financiado pelo CNPq (processo 305699/2010-5).
[2] Neste trabalho, assumimos as razões alegadas por Lucchesi para não considerarmos a hipótese da crioulização para a formação do PB. Porém, como ficará claro em seguida, isso não implica uma menor participação das línguas africanas nessa formação. Nesse sentido, discordamos de Negrão e Viotti (2011: 32) quando afirmam: “Brazilian Portuguese is definitely not a creole, because the participation of African languages in its constitution was not as intensive as was the case in the formation of creoles.”
[3] Para outros estudos contrários à hipótese de haver uma origem (semi)crioula para o português brasileiro, ver Tarallo (1993), Tarallo e Alkmim (1986) e Álvarez-Lopez e Parkvall (2003), dentre outros. Ver também Pagotto (2007) para uma discussão a respeito da polarização entre as hipóteses da deriva e do contato.
[4] De acordo com Castro (1990: 10), apud Lucchesi (2009:65), “nos dois primeiros séculos, o quicongo e o quimbundo, seguidas pelo umbundo, formam as línguas numericamente predominantes na maioria das senzalas ou as de maior prestígio sociológico.”
[5] Segundo Mendonça “o quimbundo, pelo seu uso mais extenso e mais antigo, exerceu no português uma influência maior do que o nagô” (Mendonça [1935] 2012: 63).
[6] Enfim, vale lembrar que as línguas bantas e sudanesas fazem parte da grande família nigero-congolesa e compartilham muitos traços fonológicos e morfossintáticos que as distinguem do conjunto das línguas indo-europeias. Mendonça ([1935] 2012) enfatiza particularmente esse aspecto quando apresenta as características fonológicas e morfossintáticas do quimbundo. Bonvini (2008: 25) também lembra que, nas primeiras classificações das línguas africanas, “a definição do termo banto correspondia mais ou menos ao que linguistas de hoje designam com o termo nigero-congolês”.
[7] Não é possível citar de maneira exaustiva a extensa literatura sobre esse assunto. Na seção 3, fazemos referência a vários trabalhos relevantes para o presente estudo.
[8] Para uma operacionalização desse conceito, ver Galves (a sair).
[9] Ver também Elia (2003) que, além de traçar as grandes linhas da história externa do português no Brasil, comenta amplamente trabalhos escritos ao longo do século XX sobre a questão da relevância do contato na formação do português brasileiro.
[10] Renato Mendonça demonstra muito mais objetividade e poder de predição quando vê na língua popular as raízes da fundação de uma nova variedade.
[11] É interessante notar que Chaudenson (2007), numa análise bastante critica da noção de substrato na análise das línguas crioulas, conclui que a única acepção interessante do termo se encontra na questão da “apropriação” da língua estrangeira pelos falantes.
[12] Por exemplo, é legítimo duvidar que os indígenas do Brasil tenham tido um papel linguístico idêntico ao dos africanos, pela simples razão de que, nos primeiros séculos da colonização, pelo menos numa grande extensão do território, eles não adquiriram a língua dos colonizadores, tendo antes acontecido o inverso. Convém também a esse respeito fazer a distinção entre efeito de “substrato” - ou seja, da língua materna sobre a língua segunda - e “empréstimo”. (cf. Thomason e Kaufman 1988)
[13] Para propostas de formalização das propriedades demonstradas por construções de tópico-sujeito no português brasileiros à luz de desdobramentos recentes da Teoria de Princípios e Parâmetros, ver os estudos de Avelar e Galves (2011), Munhoz (2011), Munhoz e Naves (2012) e Toniette (2013).
[14] Na exemplificação de construções das línguas bantas, optamos por manter as glosas e traduções em inglês, tal como apresentadas nos textos de onde foram extraídas. Os índices numéricos introduzidos nas glosas representam os classificadores nominais indicativos de gênero e/ou número largamente mencionados na literatura sobre as línguas bantas. Esses índices são adicionados a substantivos (9.house, 2.child, 8.book), a marcas de concordancia com o sujeito na flexão verbal (18S, 17SM, 7.SBJ), entre outras categorias. As abreviações empregadas, que também foram preservadas de acordo com os textos originais, estão reunidas na Lista de Abreviaturas.
[15] Tendo em vista os dados em (12) do português moçambicano, as construções de tópico-sujeito podem ser incluídas no que Petter denomina continuum afro-brasileiro do português. Segundo a autora, “são tantas as semelhanças compartilhadas pelas três variedades de português [brasileira, angolana e moçambicana] nos três níveis de organização linguística selecionados (fonológico, lexical e morfossintático) que fica difícil defender que tais fatos sejam casuais, resultantes de uma deriva natural do português ou decorrentes da manutenção de formas antigas do PE” (Petter 2009: 171).
[16] Silveira Bueno (1958:216-217) chama a atenção para ocorrências da preposição em junto a verbos de movimento em dados do português medieval. À primeira vista, essas ocorrências poderiam justificar a hipótese de que os fatos relevantes no português brasileiro são o resultado de mudanças atreladas à deriva linguística, na linha do proposto por Naro e Scherre (2007). Um olhar mais atento para os dados apresentados por Silveira Bueno revela, contudo, que os exemplos do português medieval não são casos típicos de complementação direcional: “...indo dar em hua fonte”, “Bem como Alfeu de Arcada em Siracusa vai buscar os braços de Aretusa”, “En a primeyra rua que cheguemos...”, entre outros. Nos dois primeiros exemplos, ir funciona como verbo auxiliar, de modo que o termo introduzido pela preposição em não pode ser tratado como seu complemento. No terceiro exemplo, a preposição em não introduz sintaticamente o complemento de chegar, mas sim o sintagma nominal dentro do qual se encontra uma oração com esse verbo; a seleção de em, nesse caso, se dá em função dos termos presentes no que podemos chamar de oração principal, que não é reproduzida pelo autor. Os dados apresentados em Silveira Bueno não podem, dessa forma, ser tomados como uma evidência de que a preposição em era usual na introdução de complementos direcionais do português medieval e, portanto, não são um argumento favorável à hipótese da deriva.
[17] A respeito de outras propriedades relativas à sintaxe de constituintes locativo-direcionais em variedades do espanhol na América Latina e na África, vejam-se os trabalhos de Lipski (2004, 2005).
[18] Os dados do português moçambicano aqui apresentados em (12), que trazem constituintes locativos em posição pré-verbal, são apresentados por Gonçalves (2010) para propor que a reanálise de em como um morfema locativo não preposicional é o que permite a entrada desses constituintes em posição de sujeito. Não é claro se essa explicação pode ser estendida para o mesmo tipo de construção identificada no português brasileiro, aqui exemplificada em (13), tendo em vista que não há um total paralelismo entre o português brasileiro e o português moçambicano no que diz respeito aos contextos de alternância entre presença e ausência de em. Esse aspecto será mencionado ainda nesta seção.
[19] Note-se, contudo, que alguns casos de dupla preposição se encontram nas Atas da Sociedade dos Desvalidos (Oliveira 2003, 2006), nos documentos escritos pelos africanos: “efica aguiados para na Dominga 13 do Corrente” (VA-003, 131) (= e fica adiado para o domingo 13 do corrente).
[20] Sobre a variedade do português afro-brasileiro falado na comunidade de Helvécia (Bahia), ver o trabalho intitulado O português afro-brasileiro: as comunidades analisadas, de Lucchesi et al. (2009).
[21] Observa-se por vezes a ocorrência da preposição em em lugar de a: “em Occaziam que havia mandado nestes dous em Compania do Capita Camatoco delle Reo apreender em hum seu criminozo” (Tavares et al. 2002: 143)
[22] Para o português angolano, ver, entre outros, Chavagne (2005: 227-229), Inverno (2011: 174) e Figueiredo e Oliveira (2013:143), os dois últimos a respeito do português falado respectivamente nas regiões de Lunda Norte e do Libolo.
[23] Essa propriedade é também mencionada por Chatelain (1889): “os pronomes infixos estão ora no acusativo (complem. direto) ora no dativo (compl. indir.) sem diferença na forma ou na posição” (Chatelain, 1888-1889: 76, nota de rodapé 106)
[24] A respeito da gramática de Dias, ver também Rosa (2013). Para uma interpretação da ausência de traço de caso associado a expressões nominais, ver Avelar e Galves (2011).
[25] Duas ponderações são necessárias aqui. Primeiramente, o argumento da época da difusão do português em Angola ou Moçambique pode ser refutado se for revelado que a difusão do português para o interior dos países foi feita por falantes oriundos de regiões em que se falava um português já reestruturado. Vale transcrever, a esse respeito, a seguinte observação de Inverno: “European Portuguese (henceforth EP) both oral and written is the official standard of Angola, but it does not seem to be the standard variety of Portuguese that is spreading throughout the country” (Inverno 2011: 9).
[26] A natureza prefixal dos pronomes nas línguas bantas pode estar na origem de outra inovação brasileira menos discutida na literatura a respeito da influência das línguas africanas: o fato de que os pronomes clíticos tendem a permanecer junto ao verbo do qual são complementos, em lugar de se deslocarem para os auxiliares finitos ou mesmo para verbos como querer, que provocam “subida do clítico”. Compare-se: português europeu (ele não me tinha visto) vs. português brasileiro (ele não tinha me visto).
[27] Ver Álvarez-López (2007) para um estudo sobre registros do classificador ji-/zi- em representações do português falado por africanos no Brasil.