1. Introdução
Embora muito já se tenha discutido sobre aspectos fonológicos do português e do espanhol, ainda há um longo caminho a ser percorrido na descrição de aspectos variáveis das fonologias de suas variedades americanas. Neste artigo, pretendemos lançar um pouco de luz a respeito da variação da fricativa /s/ em posição de coda silábica nessas duas línguas e comparar o comportamento dos dois sistemas linguísticos, destacando as semelhanças entre eles e as particularidades de cada um.
Para realizar essas comparações, utilizamos os resultados dos trabalhos de Evanini (2007), Ruiz e Miyares (1984), Martinez (2011), Moreno de Alba (1994), Martín Butragueño (2014), Lipski (1983), dentre outros, para o espanhol americano (EA), e os estudos do português brasileiro (PB) ficaram a cargo de Callou et al. (2002), Brescancini (2002), Hora (2003) e Ribeiro (2006).
É importante salientarmos que optamos por centrar nossa observação ao /s/ em coda silábica como parte do lexema, não tratando de casos em que o /s/ em coda silábica é desinência nominal ou verbal. Justificamos nossa opção por defendermos que, no caso da variação do -s morfêmico, trata-se de um processo com motivações predominantemente morfológicas, enquanto que no /s/ em coda silábica como parte do lexema, temos um processo com predominância fonológica.
Sabemos e concordamos com a relação estreita entre os processos fonológicos e morfológicos, assim como da interferência de aspectos morfológicos em processos fonológicos e vice-versa, mas também entendemos que é importante delimitar bem o objeto de estudo para não mascarar tendências a partir de generalizações.
Outra questão que merece esclarecimento diz respeito às terminologias que foram observadas nos trabalhos mencionados e a que optamos por utilizar neste estudo. Os trabalhos apresentam distinção terminológica, já que alguns trabalhos preferem utilizar termos mais específicos para captar minuciosamente o ponto de articulação de cada variante, outros são mais abrangentes. Há certo consenso para as variantes alveolar (s,z( e zero (((, mas para as variantes (ʃ, ʒ( e (h(, várias denominações são apresentadas. Para as variantes (ʃ, ʒ(, são utilizados os termos palatal e palato-alveolar, já a variante (h( é denominada de aspirada, laríngea e glotal. Como estamos descrevendo os resultados trazidos pelos pesquisadores já mencionados, optamos por preservar a terminologia que cada um faz uso em sua pesquisa.
1.1. Variação do /s/ em Coda Silábica no Espanhol Americano
De acordo com Martinez (2011), ecoando Canfield (1981), Cotton e Sharp (1988), Hualde et al. (2009), Lipski (1994) e Penny (2000), dois dialetos do território espanhol tiveram forte papel na formação dos falares da América não portuguesa: o espanhol peninsular norte-castelhano (responsável pelo apagamento de oclusivas finais (“verdad”: /vɛr´dad/ ( /vɛr´daO/), simplificação de encontros consonantais em coda silábica (“próximo”: /prɔksimɔ/ ( /prɔsimɔ/), dentre outros fenômenos) e o espanhol peninsular sulino (responsável pelo enfraquecimento e apagamento de algumas consoantes (“escucha”: /eskutʃa/ ( /eskuʃa/; “casas”: /kasas/ ( /kasaØ/).
Além dessas duas influências dialetais mais consideráveis, não se pode esquecer que cada um dos futuros países da América espanhola foi influenciado por inúmeras línguas indígenas e de colonização, variando desde o quéchua, náuatle, guarani, línguas africanas e até mesmo o italiano, sobretudo na região do Prata. Como asseguram Hualde et al. (2009), as diferentes variedades do EA foram matizadas, assim, por uma série de fatores: desde as diversas características sociopolíticas do momento histórico do povoamento de cada região, pela distância dessas regiões com as capitais do Vice-Reino, pelos traços dialetais dos primeiros povoadores trouxeram da Península, como pelas características dos grupos originários aborígenes.
No caso da variação do /s/ no EA, há relato de pelo menos 8 variantes (Martinez 2011), das quais 5 permanecem como fricativas (ʂ, z, ʃ, h, θ(, duas como oclusivas (k, ʔ( e uma como apagamento.
Para Hualde et al. (2009), embora cada país americano apresente diferenças dialetais com respeito aos outros países e variações com relação às diversas regiões internas, é possível categorizar os falares da América Espanhola em seis grandes regiões dialetais: o espanhol caribenho (que envolveria as ilhas caribenhas e as regiões costeiras dos países que as rodeiam), o espanhol mexicano / centroamericano (possível de ser dividido em dois grupos), o espanhol andino (que incluiria as zonas altas da Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia e norte da Argentina), o espanhol paraguaio, o espanhol argentino/uruguaio e o espanhol chileno. Hualde parte dessa classificação a partir de três fenômenos que definem isoglossas mais estáveis no território americano: o /s/ em posição de coda silábica, o /ɾ/ em posição de coda silábica e a diferenciação entre /ʝ/ e /ʎ/.
Para os propósitos do objeto de estudo do nosso artigo, Hualde et al. (2009) sustentam a possibilidade de três variantes mais estáveis para a variação do /s/ em coda final: a conservação do segmento, a aspiração e o apagamento. Enquanto as variedades caribenha, argentina e chilena aspiram ou apagam o /s/ com alta frequência, as variedades mexicana e andina tendem à conservação do /s/.
Segundo Evanini (2007), as variantes (s(, (h( e ((( se alternam nos dialetos1 do EA, fato que corrobora ao tomar por base os trabalhos de Ma e Herasimchuck (1971) e Poplack (1980) sobre o dialeto porto-riquenho, o de Cedergren (1973) sobre o dialeto panamenho, o de Lafford (1982) sobre o dialeto colombiano e o de Cid-Hazard (2003) sobre o dileto chileno, mostrando uma tendência ao processo de enfraquecimento que culmina no apagamento do /s/ na posição de coda silábica.
Evanini (2007) também expõe que todos os trabalhos mencionados sobre a variação do /s/ em coda silábica têm mostrado de forma consistente que os mesmos fatores (mais detalhes cf. Evanini 2007) condicionam a escolha das variantes, o que torna o processo bastante propício ao tratamento de uma teoria fonológica formal.
Embora mencione os dialetos citados e os utilize como base em sua análise, expõe dados de apenas dois deles, o dialeto panamenho com base no trabalho de Cedergren (1973) e o dialeto colombiano exposto no trabalho de Lafford (1982, citado em Morris 1998), cujos dados exporemos nas Tabelas (1) e (2 )
Como observado na Tabela (1), o /s/ em coda silábica final no dialeto panamenho está sofrendo um processo de enfraquecimento. Os resultados refletem um caminho de presença do (s( (11%), seu enfraquecimento (h( (41%) e apagamento ((( (48%), reforçando a preferência por estruturas Consoante Vogal (CV).
Os resultados da Tabela (2), do dialeto colombiano, refletem a influência do estilo para o apagamento do /s/ em coda silábica, independente da posição na palavra, seja medial ou final.
De acordo com os números apresentados, as variantes (s( e ((( seguem um caminho inversamente proporcional em relação ao estilo utilizado pelo falante. Quanto mais formal o estilo, menor a possibilidade de apagamento e maior a possibilidade de preservação da variante (s(, indicando que o estilo tem um forte papel condicionador no processo.
Um ponto que merece destaque nos trabalhos de Evanini (2007) e de Morris (2000) é a menção a uma variante peculiar ao espanhol da Andaluzia, que é a formação de uma geminada em decorrência do apagamento (proposta do primeiro) ou enfraquecimento do /s/ em coda silábica (proposta do segundo).
Muito embora Evanini (2007) mencione essa variante, não se ocupa dela em seu trabalho. Morris (2000), contudo, ao discutir o processo de enfraquecimento no espanhol, especificamente de uma região que se estende do sul da Andaluzia (Terrell 1981) ao noroeste até Estremadura, ao nordeste até Múrcia e ao norte até Castilha La Mancha e Madri (Lipski 1986), encontrou, além da aspiração (su(s(to > su(h(to) e da geminada (su(s(to > su(t(to), uma variante geminada precedida de aspiração (su(s(to > su(ht(to), típica de Cúllar-Baza, situada na província do sul de Granada, na Andaluzia.
De acordo com as observações de Morris (2000), o /s/ em coda silábica se realiza como (h( quando seguido por consoante (-vozeada( e consoante (+soante(, como em mo(s(ca > mo(h(ca e mi(s(mo > mi(h(mo, respectivamente. É importante salientar que os casos de geminada e geminada precedida por aspiração também acontecem nesses casos: mo(s(ca > mo(k(ca, mo(hk(ca e mi(s(mo > mi(m(mo, mi(hm(mo.
A única exceção mencionada é o caso da consoante soante /l/, já que se apresenta na forma aspirada, como em isla > i(h(la, ou na forma geminada, como em isla > i(l(la, não ocorrendo com a variante geminada precedida de aspiração (*i(hl(la).
Em casos do /s/ em coda silábica seguido de oclusivas vozeadas, o resultado será uma combinação de aspiração, assimilação de vozeamento e choque segmental, como em de(s(de> de(((de; disgusto > di(((gusto e re(s(baldar > re(((aldar, re(f(aldar. Neste último caso, ou seja, /s + b/, a fricativa bilabial desvozeada ((( acontece nos dialetos onde emerge a aspiração e fricativa labiodental desvozeada (f(, nos dialetos em que emergem a geminada e a geminada precedida de aspiração.
Algumas observações importantes são feitas por Morris (2000), uma delas se refere ao fato de a aspiração envolver a supressão de traços existentes e proibir a inserção de novos traços, relacionando, dessa forma, a aspiração ao apagamento.
Por fim, ratificamos que o autor se baseia na diferença entre o padrão de aspiração do /s/ em coda silábica interno à palavra ou em fronteira de palavra, destacado no estudo de Salvador (1958), para justificar o fato de apenas trabalhar com o /s/ em coda silábica interno.
Sobre o espanhol de Cuba, Ruiz e Miyares (1984) reforçam que o /s/ em coda silábica tem sido bastante estudado devido à riqueza de variantes que possui. Na América espanhola, semelhante à Andaluzia, o /s/ em coda silábica é pré-dorsal, apresentando, contudo, variações.
Em Cuba, além da pronúncia pré-dorsoalveolar, existem os processos de aspiração (distintos > di(h(tinto(h() e de apagamento (está > e(((tá). Os autores também destacam o fenômeno de assimilação (gusto > gu(t:(o(), que resulta em uma geminada, processo já mencionado anteriormente.
Os resultados expostos e discutidos por Ruiz e Miyares (1984) são decorrentes da sua pesquisa realizada em Santiago de Cuba no ano de 1971 sobre o /s/ em coda silábica final tanto na fala culta como na popular.
Os dados expostos na Tabela (3) mostram os resultados dos três processos (assimilação, aspiração e apagamento) em relação à fala culta e popular em Santiago de Cuba e ao contexto fonológico seguinte ao /s/ em coda silábica. Vale salientar que no caso do contexto de final absoluto, representado na Tabela (3) por ‘_#’, teremos os resultados da realização do (s(, já que não há contexto seguinte para ser assimilado.
Como podemos depreender pelos resultados, em final absoluto, a variante (s( é a mais frequente na fala culta com 72,87%, seguida pela variante (h( com 69,26%, enquanto, na fala popular, a mais frequente é a variante ((( com 67,79%.
Quando o contexto seguinte se trata de uma consoante labial, o processo de assimilação é o mais frequente na fala culta com 28,45%. Na fala popular, o apagamento e a aspiração se tornam bastante frequentes, com uma porcentagem de 90,17% e 91,73%, respectivamente.
No contexto seguinte preenchido por consoante dental, a aspiração é a mais frequente na fala culta, com 68,70%, já na fala popular, o apagamento (81,75%) e a aspiração (81,20%) são os fenômenos mais produtivos. Em contexto seguinte preenchido por consoante alveolar, velar e nasal, não há casos de assimilação do (s(, tanto na fala culta quanto na popular.
O processo mais frequente na fala culta é a aspiração, com 78,66% para a consoante seguinte alveolar, 65,56% para a consoante seguinte velar e 52,80% para a consoante nasal.
Na fala popular, por sua vez, o apagamento é o processo mais profícuo, apresentando para a consoante alveolar 65,20%, para a consoante velar 63,25% e para a consoante nasal 81,54%.
Além dos resultados já expostos, os autores ressaltam que, na fala popular, os processos mais produtivos são a assimilação (76,37%) e o apagamento (75,19%), e, na fala culta, a aspiração é a mais frequente, com 70,86%. Isso reforça a tendência ao apagamento do /s/ em coda silábica no EA.
Moreno de Alba (1994) assinala que embora existam muitos alofones para o /s/ em coda silábica no território mexicano, a articulação mais comum é a realização alveolar pré-dorsal fricativa surda (s(, também frequente em outras variedades do EA.
Martín Butragueño (2014) afirma que embora a maior parte do território mexicano não aspire ou apague o /s/ em coda final de sílaba, existe muita variabilidade regional e que alguns falares de grande importância histórica têm a característica de debilitar2 a consoante implosiva. O autor se apoia nas pesquisas realizadas por Moreno de Alba (1994), que apresentou dados de áreas dialetais mexicanas onde o relaxamento do /s/ em coda silábica estava presente. Segundo os dados apresentados por Moreno de Alba, a posição final antes de pausa e posição final antes de vogal na palavra seguinte eram os contextos menos favorecedores à debilidade da consoante; por outro lado, nos contextos pré-consonânticos, sobretudo antes de segmentos sonoros, haveria uma probabilidade considerável de “pontos de relaxamento” do segmento.
Moreno de Alba oferece explicações históricas para a presença de zonas debilitadoras do /s/ em coda silábica no território mexicano: a) por um lado a influência mais forte da Corte andaluz nessas regiões; b) influxo de traços linguísticos afro-hispano-americanos, devido à presença abundante de negros e mulatos desde o século XVI nas costas de Campeche, Tabasco e sul de Veracruz, assim como no litoral de Chiapas, Oaxaca e Guerrero. Ambas as explicações carecem de maior investigação.
Martín Butragueño (2014) apresenta também outras variantes do /s/ em posição de coda silábica, a saber: a realização plena (s(, o /s/ enfraquecido ou pouco definido (s(, a aspiração (h( e o apagamento (O(, esta última pouco frequente no território mexicano. No geral, todavia, o autor afirma que os casos de enfraquecimento são menos numerosos, e que a realização da consoante plena se configura como mais recorrente no território mexicano, sobretudo em contexto de interior da palavra.
Em final de palavra diante de posição pré-consonântica ou final absoluto de palavra, os contextos favorecem a um maior enfraquecimento, o que mostra que, de maneira geral, o espanhol mexicano tem preferência pela realização plena da consonante.
Com relação ao espanhol hondurenho, Lipski (1983) classifica-o como pertencente aos dialetos que sofrem um enfraquecimento do /s/ em muitas posições, o que o diferencia neste ponto dos falares mexicanos. O autor propõe que o próprio processo histórico do país (um dos pontos mais assediados por piratas durante os séculos XVI e XVII, que proporcionou inúmeros contatos linguísticos; forte influência africana, sobretudo na costa norte do país, influência do inglês norte-americano, etc.) é um dos fatores responsáveis pela diferenciação do espanhol com respeito a outras variedades centro-americanas.
Lipski (1983) propõe três variantes do /s/ em coda final para o espanhol hondurenho: o (s( sibilante, fricativa coronal-alveolar surda; a aspiração glotal ou faríngea (h( (que pode ser surda ou sonora); e a ausência completa de som /O/. Para o autor, a aspiração e o apagamento costumam ocorrer em posição implosiva, ou seja, em final de sílaba antes de consoante ou em posição final absoluta de palavra.
Através de uma pesquisa sociolinguisticamente orientada, o autor propõe que o espanhol hondurenho se apresenta em um patamar intermediário de enfraquecimento do /s/ em coda, se comparado com outras variedades do espanhol antilhano. Assim, no espanhol hondurenho, a presença de uma vogal acentuada oferece um forte obstáculo para a aspiração ou apagamento (Lipski 1983: 279), o que não parece ser o caso de muitas variedades do espanhol caribenho.
Em outro trabalho, Lipski (2000) afirma que a característica fonética que mais chama a atenção nos dialetos da Nicarágua, Honduras e El Salvador (assim como nas áreas limítrofes dos países vizinhos) é a aspiração do /s/ em final de sílaba ou de palavra. Na Nicarágua, as taxas de aspiração são as mais altas da América Espanhola e a característica é tão forte que há transferência gráfica para a escrita, o que faz com que muitos nicaraguenses escrevam a fricativa com o grafema “j”. Lipski (2000) advoga a influência do espanhol andaluz para esta característica fonética, afirmando que já estava presente por volta do século XVI. Hoje em dia, a redução do /s/ em direção à aspiração abarca toda a Andaluzia, Estremadura, Múrcia, Canárias, toda a bacia do Caribe, o litoral pacífico da América do Sul e a zona do Prata.
Mas é precisamente esta característica que diferencia mais marcadamente a área dialetal de Honduras, Nicarágua, El Salvador, parte da Costa Rica e Belize.
Em El Salvador e Honduras, a aspiração também está presente, porém em taxas menos altas que as da Nicarágua, sobretudo nos falares das camadas socioculturais mais altas. Segundo Lipski (2000), outra faceta da modificação do /s/ na fala rural salvadorenha é a sua produção como fricativa pré-palatal, /ʃ/. Para Lipski, essa realização do /s/ final tem uma óbvia repercussão sociolinguística, já que a contrapõe aos processos mais frequentes de aspiração e apagamento.
Luna (2014), ecoando Hammond (1982), afirma que no espanhol rural de Porto Rico estão presentes cinco segmentos alófonos para o /s/: uma fricativa dental surda (s(, uma fricativa dental sonora (z(, uma fricativa glotal surda (h(, uma fricativa glotal sonora (ɦ( e um zero fonético.
O alofone mais comum era a fricativa glotal surda (h( e que os segmentos fricativa dental sonora (z( e fricativa glotal sonora (ɦ( eram resultado de uma assimilação de sonoridade da consoante seguinte. Luna (2014) contrapõe os resultados encontrados por Hammond (1982) e afirma que, após uma minuciosa pesquisa acústica, o alofone mais presente no espanhol de Porto Rico é a fricativa glotal sonora (ɦ(, com um percentual de 67% das ocorrências.
Em um trabalho sobre a variação alofônica da fala culta de Santiago do Chile, Delorme (2004) apresenta dados que contrariam as possibilidades alofônicas do espanhol peninsular. A autora atesta que, diferentemente do que ocorre na Espanha (com cinco possibilidades de variação), a fala culta de Santiago do Chile apresenta apenas três variantes (s, h, O(, com a seguinte regra de aplicação:
/s/ ( (s( ~ (h( ~ (O( / _ $
/s/ ( (s( / nos demais contextos
A pesquisa foi realizada com informantes que tinham educação universitária e que viveram, ao menos, 75% de suas vidas na cidade de Santiago. Foram selecionados homens e mulheres de três diferentes grupos etários (25-35 anos, 36-55 anos e 56 anos em diante) que falaram em 4 registros distintos: entrevistas, comentários, leituras e miscelânea. O trabalho vai ao encontro da maior parte das pesquisas realizadas no território chileno.
Lira e Flores (2015) afirmam que, em termos gerais, a descrição da realização do fonema /s/ em coda silábica no espanhol do Chile se reduziu a três alofones (s(, (h( e (O(. A maior parte das pesquisas focalizaram principalmente três zonas geográficas (Valparaíso, no centro do país; Valdívia, no sul; e Concepción, no centro-sul do território) e no grupo sociocultural alto. Segundo o autor (ecoando Tassara, Duque e Duque 1986 e 1987, e Tassara 1990 e 1991), os dados de Valparaíso, em situação de leitura, mostram um predomínio da aspiração (h( (54,5%), um percentual de 42,7% para a consoante plena (s( e uma taxa quase irrelevante para o apagamento (2,6%). Em Concepción, por outro lado, os alofones apresentam taxas semelhantes: 49,6% para a aspiração e 47,8% para a consoante plena. Em situação de entrevista, os dados tanto de Concepción como de Valparaíso coincidem: há predomínio da realização aspirada sobre as outras variantes (s( ou (O(. Lira e Flores (2015) apresentam um elenco de pesquisas realizadas recentemente com o espanhol chileno que confirmam os dados de que a variante predominante é a aspiração do /s/, em contextos linguísticos e estilísticos diversificados.
Sadowsky (2015) é da mesma opinião quanto às possibilidades de variação do /s/ em coda do espanhol chileno: a) o alofone canônico dorso-alveolar fricativo surdo (s(; b) o alofone glotal fricativo surdo (h(; e a elisão (O(, que obedece a fatores fonológicos e estilísticos. Para o autor, diferentemente do espanhol de outras regiões da América Latina, a realização do (s( em posição de coda silábica em interior de palavra adquiriu certo grau de estigmatização, associando-o a estratos mais baixos na escala social. A aspiração só é socialmente marcada em ataque silábico.
Palacios (2016) caracteriza o espanhol rio-platense como “a zona linguística que compreende Buenos Aires, o sul das províncias de Santa Fé e de Entre Rios e a Patagônia e a maior parte do território uruguaio” (p. 333). As influências linguísticas dessa área foram o contingente espanhol, presente desde o século XVI, e ondas migratórias de colonos italianos, a partir do século XIX. Com relação ao /s/ em posição de coda silábica, afirma a autora que a aspiração é amplamente generalizada em todos os socioletos, embora nos estratos sociais mais baixos a elisão seja a regra geral.
Com relação ao espanhol paraguaio, caracterizado por haver sofrido forte influência do guarani, a autora também atesta que o apagamento e a aspiração do /s/ em posição final é um traço que compartilha com os seus vizinhos do Cone Sul (Palacios 2016: 334). Neste sentido, a afirmação está de acordo com Coloma (2011) que atesta que o fenômeno da aspiração do /s/ está presente nas variedades paraguaia, rio-platense, chilena, caribenha e andaluz-canária. Por outro lado, ela estaria ausente, de um modo mais amplo, nas variedades do castelhano tradicional, espanhol peninsular padrão, espanhol andino e mexicano-centro-americano.
Feito um breve apanhado do comportamento do /s/ em coda silábica no espanhol, que mostraram, de forma geral, o mesmo inventário de variantes: (s, z, ʃ, ʒ, h, ((, podemos passar à descrição dos dialetos brasileiros, que será a base para o nosso trabalho.
1.2. Variação do /s/ em Coda Silábica no Português Brasileiro
O comportamento do /s/ em coda silábica é bastante variável nos dialetos brasileiros, por isso discutiremos resultados de São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Salvador, Recife (Callou et al. 2002), Florianópolis (Brescancini 2002) e João Pessoa (Hora 2003; Ribeiro 2006) com o intuito de estabelecer um amplo panorama do comportamento dessa variável no português brasileiro. Sabemos, contudo, que não seremos exaustivos, já que algumas capitais não serão observadas.
Ressaltamos que as descrições dos trabalhos sobre os quais discorremos utilizam-se de resultados estatísticos obtidos através do Pacote de Programas VARBRUL (Pintzuk 1989), versão DOS, e/ou do Programa Goldvarb (Sankoff e Rand 1990), versão para Macintosh e mais tarde, ambiente Windows, permitindo-nos, dessa forma, ter uma homogeneidade no tratamento matemático dos dados.
Descreveremos os trabalhos com base na ordem cronológica de realização das pesquisas. Com isso, será possível explicitar os métodos utilizados pelas primeiras pesquisas e as adaptações feitas pelas pesquisas seguintes.
O trabalho de Callou et al. (2002) analisa as consoantes /l/, /r/, /s/ em coda silábica nos dialetos do Rio de Janeiro - Rio de Janeiro, de São Paulo - São Paulo, de Porto Alegre - Rio Grande do Sul, de Recife - Pernambuco e de Salvador - Bahia, extraídos do banco de dados do Projeto da Norma Urbana Culta (NURC), composto por universitários estratificados em relação à idade, ao sexo e à origem geográfica. Obtiveram um total de 9026 ocorrências de /s/ em coda silábica nas cinco capitais pesquisadas e encontraram as variantes: palatal, aspirada, alveolar e zero.
O resultado de cada dialeto é mostrado em relação à posição que a variável ocupa na palavra, se medial ou final, como exposto nos Gráficos de 1 a 5.
Em relação ao Rio de Janeiro, o comportamento do /s/ em coda silábica é bastante semelhante na posição medial e na final: palatal (90% e 75%) - aspirada (6% e 10%) - apagamento (2% e 8%) - alveolar (1% e 8%). A variante palatal é a mais frequente nas duas posições, com percentagens bem distantes das demais variantes, como demonstra o Gráfico 1.
Diferente do dialeto do Rio de Janeiro, em São Paulo, a variante mais frequente é a alveolar com 88% e 91% nas posições medial e final, respectivamente. As outras variantes têm baixa frequência, inclusive não houve nenhum dado de aspiração. A variante palatal apresenta 9% na posição medial e 5% na posição final e o apagamento, 3% nas duas posições, como corrobora o Gráfico 2.
Os resultados de Porto Alegre são semelhantes aos de São Paulo, apresentando a mesma ordem na frequência das variantes: alveolar (77% e 96%) - palatal (23% e 2%) - apagamento (0% e 1%) - aspirada (0% e 0%), fato corroborado no Gráfico 3. Dois aspectos que merecem destaque nesse dialeto são: a oposição entre as frequências das variantes palatal e alveolar e a proximidade na frequência das outras duas variantes, tanto entre si quanto em relação à posição na palavra.
Em Recife, as variantes palatal (84% e 54%) e alveolar (10% e 34%) apresentam resultados opostos entre si e cada uma apresenta frequências distantes entre a posição medial e final. As demais variantes, contudo, apresentam resultados mais próximos tanto entre si quanto em relação à posição que ocupam na palavra: aspirada (5% e 7%) e apagamento (2% e 5%). A variante palatal, assim como no Rio de Janeiro, é a mais frequente, conforme explicita o Gráfico 4.
Os dados de Salvador mostram uma relação inversamente proporcional na frequência de uso das variantes palatal (56% e 31%) e alveolar (39% e 51%), se comparadas às posições medial e final. As variantes aspiradas (4% e 9%) e zero (1% e 9%) também são pouco frequentes, como comprova o Gráfico 5.
Os autores (Callou et al. 2002) seguem discutindo a frequência de uso da palatal nas cinco capitais, buscando, dessa forma, delimitar o processo de palatalização. Cientes dos resultados de São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Salvador e Recife, passemos às discussões sobre o dialeto de Florianópolis (Brescancini 2002).
Os resultados de Brescancini (2002) refletem a fala de três regiões do município de Florianópolis - Santa Catarina: Centro Urbano, Ribeirão da Ilha e Barra da Lagoa. O corpus referente ao Centro Urbano de Florianópolis conta com 30 entrevistas provenientes do banco de dados do Projeto Variação Linguística Urbana na Região Sul do Brasil (VARSUL) e 18 entrevistas coletadas entre 2000 e 2001. Já o corpus de Ribeirão da Ilha, constituído de 24 informantes, foi coletado entre 1994 e 1995 e entre 2000 e 2001. E o corpus referente à Barra da Lagoa, coletado entre 2000 e 2001, é composto por 28 entrevistas.
Dessa forma, a amostra perfaz um total de 100 informantes, sendo 48 da região urbana do município (distrito de Florianópolis) e 52, das regiões interioranas (distrito do Ribeirão da Ilha e distrito de Barra da Lagoa), estratificados quanto ao gênero3, à faixa etária e aos anos de escolarização.
Como mencionado, a variável /s/ em posição pós-vocálica pode ser realizada sob a forma de variante alveolar, palato-alveolar ou palatal, laríngea ou glotal e zero, sendo todas elas encontradas no dialeto de Florianópolis, como demonstram os resultados gerais, expostos no Gráfico 6.
Constatamos que a variante palatal é a mais frequente, com 83%, destacando-se das demais variantes que se somam em 17%. A variante alveolar é a segunda mais frequente, obtendo 12% de aplicação e o apagamento e a fricativa laríngea apresentam aproximadamente valores de 5% e 1%, respectivamente.
Diante da disparidade dos resultados, a autora opta por realizar uma análise contrastiva entre a variante palatal (83%) e as demais variantes (17%), utilizando como valor de aplicação a variante palatal.
Esses resultados refletem o quadro variável no dialeto de Florianópolis - SC, reforçando uma maior frequência de uso da variante palatal em detrimento das demais variantes na posição pós-vocálica. Descritos os resultados de Brescancini (2002), sobre Florianópolis, passemos aos resultados sobre o dialeto paraibano (Hora 2003; Ribeiro 2006).
Os dados de Hora (2003) e Ribeiro (2006) foram levantados com base no corpus do Projeto Variação Linguística do Estado da Paraíba (VALPB - UFPB), (Hora e Pedrosa 2001). O corpus foi coletado em João Pessoa - Paraíba, a partir de 60 informantes estratificados socialmente em relação ao sexo, à faixa etária e aos anos de escolarização.
O trabalho de Hora (2003) versa sobre o /s/ em coda silábica na posição interna à palavra, enquanto que o de Ribeiro (2006) se detém à posição final de lexemas, estabelecendo-se, dessa forma, um paralelo entre as análises.
Os dados analisados por Hora (2003) apresentam as variantes alveolar (s, z( (e(s(fera, re(z(vala), palatal (ʃ, ʒ( (go(ʃ(to, de(ʒ(de) e glotal (h( (me(h(mo) como produtivas, diferente da variante zero (O( que se mostra improdutiva4, já que está restrita a determinados itens lexicais, no caso dessa pesquisa, apenas ao item me(O(mo.
É importante mencionar que no corpus observado por Hora (2003), a ocorrência da palatal está associada ao contexto fonológico seguinte coronal, principalmente com as consoantes /t/ e /d/: po(ʃ(te, de(ʒ(dém e a da glotal, seguida na maioria dos casos por consoantes vozeadas: de(h(ligar, de(h(mantelo. Há, portanto, um uso dominante da alveolar, seguida pela palatal condicionada ao /t/ e /d/ em contexto seguinte e com poucos casos da glotal, seguida por consoantes vozeadas, e do apagamento, restrito ao item lexical mesmo, o que provavelmente confirma a hipótese de difusão lexical. Como comprovamos no Gráfico 7:
Na sequência de sua descrição, diante das poucas ocorrências da glotal (6%) e do apagamento (1%), Hora (2003) optou por fazer uma análise contrastiva entre a variante alveolar e palatal, para determinar o contexto de uso dessa última, semelhante ao objetivo principal do trabalho de Brescancini (2002): determinar o processo de palatalização.
A variação do /s/ em coda silábica na posição final de lexema, segundo Ribeiro (2006), também se apresenta sob a forma alveolar (s,z(, palatal (ʃ, ʒ( e glotal (h(. Além desses casos, a forma de apagamento (O( é produtiva em final de palavra, diferente do comportamento do /s/ na coda interna. Como explicita o Gráfico 8:
Devido à pouca frequência de uso das palatais e glotais, Ribeiro (2006) agrupou-as com as alveolares, formando dois grandes blocos: a presença (alveolar, palatal ou glotal) e a ausência do /s/ (apagamento), o que resulta em 75% de preservação e 25% de apagamento da fricativa coronal no final de lexema.
Reforçamos que os trabalhos de Callou et al. (2002); Brescancini (2002); Hora (2003) e Ribeiro (2006) nos permitem estabelecer um quadro comparativo que explicita as tendências do comportamento variável do /s/ em coda silábica no PB.
E, mesmo que o primeiro trabalho se utilize apenas de falantes universitários, enquanto os demais também se utilizem de outros níveis de escolarização, entendemos que a comparação é confiável, pois os mesmos fatores estão restringindo o fenômeno em estudo e o mesmo pacote de variáveis é apresentado.
Nos dialetos do PB, segundo os resultados de Callou et al. (2002); Brescancini (2002); Hora (2003) e Ribeiro (2006), as variantes se alternam entre as formas (s,z(, (ʃ, ʒ(, (h( e (((. Não é observada em nenhum dos trabalhos a presença da variante geminada, encontrada no espanhol.
2. COMPARAÇÃO ENTRE OS DIALETOS DO EA E DO PB
Assim, em linhas gerais, a Figura 1 apresenta o comportamento do /s/ em coda silábica no EA e no PB.
Podemos perceber pela Figura 1 que, em geral, há uma convergência de comportamento do /s/ em coda silábica e, à exceção da variante geminada, as demais variantes são comuns em todas as línguas e dialetos analisados. O que muda de um corpus para o outro é o ordenamento das variantes. Outro fator que merece destaque é a preservação do /s/ em coda silábica, principalmente na posição medial, principalmente nos dialetos brasileiros. A posição final é confirmada como a mais débil, favorecendo os processos de enfraquecimento e apagamento.
É interessante observar também que, diferentemente dos outros autores aqui elencados, Martinez (2011) apresenta uma descrição ligeiramente diferente para o EA.
Como já mencionado anteriormente, há duas possibilidades de realização como oclusivas (k, ʔ(, que não estão presentes no português. Acreditamos que este deve ser um ponto que deverá ser investigado em pesquisas futuras, tendo em vista o ineditismo das realizações e a escassa descrição dessas variantes até mesmo em variedades do EA.