1. Introdução 1
O português do Libolo (PLb) é a variedade de português falada pelos angolanos do município do Libolo. O município localiza-se no interior de Angola, na Província do Kwanza-Sul, a cerca de 270 km de Luanda, capital angolana. Com uma extensa área de aproximadamente 9.000 km2, o Libolo possuía, até 2011, uma população de 87.244 habitantes, da qual 60.4% (52.736 hab.) se concentrava na Comuna de Calulo, sede do município (Figueiredo e Oliveira 2013: 122).
Assim como a maior parte do território angolano, o Libolo é uma área de grupos étnicos bantos, formada predominantemente pelos ambundos, falantes de quimbundo, uma língua tonal (Xavier 2010; Angenot et al. 2011) e a segunda mais falada no país. Apesar da grande variedade etnolinguística de Angola, com cerca de 40 línguas (Simons e Fennig 2017), o português é única língua oficial do país, sendo utilizado nos órgãos oficiais e no ensino. Porém, o uso das línguas nacionais também é recorrente, estando presentes, por exemplo, em programas de televisão.
Recentemente, o cenário em que o português é uma língua não materna no Libolo sofreu mudanças, uma vez que ele é, atualmente, língua materna da maioria das crianças e da população mais jovem, principalmente das regiões mais centrais como a vila de Calulo. Esse fato é relevante devido ao Libolo possuir, em termos gerais, uma população bastante jovem.2 Somado a isso, do ponto de vista linguístico, pesquisas recentes desenvolvidas por meio do ‘Projeto Libolo’ (Figueiredo e Oliveira 2013-atual) vêm mostrando que existem traços morfossintáticos no PLb que são comparáveis aos encontrados no quimbundo (e.g.Figueiredo e Oliveira 2013; Figueiredo et al. 2016; Figueiredo 2018).3 No âmbito desse projeto, os estudos fonológicos visam a investigar o sistema prosódico do PLb e buscam estabelecer se existem traços prosódicos - potencialmente advindos do contato com o quimbundo - que distingam essa das demais variedades de português.
Nesse sentido, este estudo objetiva descrever e analisar os padrões tonais nucleares das sentenças declarativas e interrogativas globais e parciais neutras do PLb - isto é, as melodias mínimas e em posição de maior proeminência dessas sentenças -, a fim de se observar suas características prosódicas e, então, compará-las às características prosódicas desses tipos frásicos já descritas para outras variedades de português. Sendo o PLb uma variedade de português ainda muito pouco estudada em termos linguísticos - e, especificamente em termos prosódicos, inexplorada -, este estudo traz, portanto, resultados inéditos que contribuem para sua descrição linguística e prosódica.
2. Declarativas e interrogativas neutras
Declarativas e interrogativas são tipos frásicos caracterizados por diferentes propriedades lexicais, sintáticas, pragmáticas e prosódicas (Brito et al. 2003). A depender dessas propriedades, esses dois tipos frásicos podem ser classificados como sentenças neutras e não neutras. Entende-se como neutra a sentença que não possui um elemento específico enfatizado ou focalizado em relação aos seus demais elementos constitutivos e, portanto, o foco recai na sentença como um todo (e.g.Frota 2000: §1.4.1). Sentenças declarativas neutras são, assim, enunciados que apresentam ou explicam uma informação totalmente nova ao interlocutor e podem corresponder à resposta a uma pergunta do tipo “O que aconteceu?” ou a uma forma de citação (out-of-blue sentence) (e.g. Frota 2000: §1.4.1). Já interrogativas globais neutras são perguntas que buscam informações novas, sendo o escopo da resposta toda a informação enunciada, uma vez que não há expectativa específica de resposta por parte do locutor.
Elas desencadeiam uma resposta do tipo sim/não e não possuem uma marca lexical para interrogação, sendo enunciadas com a mesma cadeia morfossintática das declarativas. A distinção entre elas e as declarativas é, portanto, marcada apenas por meios prosódicos (Brito et al. 2003; Frota et al. 2015b; Castelo 2016). Por sua vez, interrogativas parciais neutras são perguntas que também buscam informações novas. No entanto, o escopo da resposta é uma informação específica, identificada pela palavra interrogativa do enunciado, que marca morfossintaticamente a interrogação da sentença (Brito et al. 2003; Frota et al. 2015b).
As sentenças em (1), (2) e (3) ilustram os três tipos frásicos considerados neste estudo.
1. Declarativa neutra: O menino está tomando limonada.
2. Interrogativa global neutra: O menino está tomando limonada?
3. Interrogativa parcial neutra: O que o menino está tomando?
Entoacionalmente, estudos a respeito da prosódia dos tipos frásicos do português desenvolvidos por meio de uma análise autossegmental e métrica da entoação revelam uma homogeneidade melódica para as declarativas, com apenas dois contornos nucleares atestados (descendente ou baixo) (e.g. Frota 2000, 2014; Tenani 2002; Fernandes 2007; Moraes 2008; Serra 2009; Cruz 2013; Cardoso et al. 2014; Frota et al. 2015b; Santos 2015; Castelo 2016; Braga 2018; Fernandes-Svartman et al. a sair), mas uma heterogeneidade para as interrogativas, principalmente para as globais (com contornos nucleares ascendentes e ascendentes-descendentes de alinhamentos tonais variados) (e.g.Vigário e Frota 2003; Moraes 2008; Truckenbrodt et al. 2009; Cardoso et al. 2014; Frota 2014; Cruz 2013; Frota et al. 2015b; Castelo 2016; Rosignoli 2017a).4
3. Corpus e procedimentos teórico-metodológicos
Para a obtenção dos dados de análise, foi utilizado o teste para completar o discurso (DCT, Discourse Completion Test) (Félix-Brasdefer 2010) do projeto InAPoP (Frota 2012-2015),5 um questionário com contextos discursivos para a elicitação de dife rentes tipos de sentenças e significados pragmáticos de forma semiespontânea: declarativas e interrogativas (variando entre neutras e não neutras), perguntas eco, imperativos e vocativos. Nessa tarefa, o entrevistador apresenta oralmente uma situação do cotidiano - às vezes apresentando também imagens - e o participante tem de se imaginar em cada situação, sendo conduzidos pelo entrevistador a produzirem um enunciado específico.
Em uma pesquisa de campo no Libolo, realizada em junho de 2016 no âmbito do ‘Projeto Libolo’, as situações foram avaliadas e adaptadas ao PLb com a ajuda de falantes nativos a partir das versões em português europeu e brasileiro já existentes do DCT. Em seguida, o teste adaptado foi aplicado a participantes libolenses. As situações (contextos) adaptadas para a produção de declarativas e interrogativas neutras no PLb, bem como as respostas esperadas, são apresentadas em (4), (5) e (6).
4. Declarativa neutra: foco amplo
S.1 Contexto: O que aconteceu com esses dois? (A imagem de duas pessoas em trajes de casamento é mostrada em tela de computador).
Resposta: Casaram.
S.2 Contexto: Olha pro desenho e diz o que ele faz. (A imagem de um menino tomando limonada é mostrada em tela de computador).
Resposta: Está tomando uma limonada.
S.3 Contexto: Olha pro desenho e diz o que ela faz. (A imagem de uma mulher tomando limonada é mostrada em tela de computador).
Resposta: Ela toma uma limonada.
S.4 Contexto: Este aí na fotografia é o galã da novela. Diz que o galã anda de carro. (A imagem de um homem dirigindo um carro é mostrada em tela de computador).
Resposta: O galã anda de carro.
5. Interrogativa global neutra: busca de informação
S5. Contexto: Você entra numa cantina e pergunta ao vendedor se tem ginguba.
Resposta: Tem ginguba?
S6 Contexto: Você saiu de casa e viu a rua molhada. Pergunta se choveu.
Resposta: Choveu?
6. Interrogativa parcial neutra: busca de informação
S7. Contexto: Pergunta que horas são.
Resposta: Que horas são?
S8. Contexto: Você precisa comprar um presente pra uma pessoa que você não conhece muito bem. Então, você pede ajuda pro K. Pergunta pra ele o que lhe daria.
Resposta: O que lhe darias?
S9. Contexto: Você me viu conversando por muito tempo com o K. Então, você me pergunta o que ele me contava.
Resposta: O que te contava?
Para este estudo, foram considerados os dados produzidos por três homens (SF, AJ, JD) e uma mulher (MJ) de perfil sociolinguístico semelhante: (i) têm entre 23 e 31 anos (23, 31, 30, 24, respectivamente); (ii) são bilíngues em português e quimbundo; (iii) possuem ensino básico angolano completo (cursaram até a 12ª classe), a não ser um deles (JD), que estava cursando a 9ª classe à época; e (iv) são naturais da Banza dos Dambos, uma aldeota a mais ou menos 8 km dos bairros centrais da vila de Calulo, sede do município do Libolo.
Os enunciados selecionados correspondem às respostas dos quatro sujeitos mencionados para os nove contextos de declarativas e interrogativas, que foram apresentados no mínimo três vezes a cada participante (embora, em certos casos, tenha sido até seis vezes), totalizando 209 enunciados (9 contextos × 4 falantes × 3-6 repetições).
Os arquivos de áudio6 dos enunciados foram submetidos ao software de análise de fala Praat (Boersma e Weenink 2017) para a produção do oscilograma, espectrograma e curva da frequência fundamental (F0) e para a transcrição prosódica.
Na transcrição prosódica, foi utilizado o P_ToBI (Portuguese Tones and Break Indices) (Frota et al. 2015c), um sistema de anotações desenvolvido a partir de estudos realizados no âmbito do InAPoP. Esse sistema possui três camadas de anotação: Tons, Ortografia e Fraseamento.7
A camada “Tons” contém a transcrição fonológica do contorno entoacional de acordo com a Fonologia Entoacional Autossegmental-Métrica (Pierrehumbert 1980; Hayes e Lahiri 1991; Ladd 1996 e 2008; Gussenhoven 2004; Jun 2005, 2014; Frota e Prieto 2015; entre outros), teoria que representa a variação melódica por meio de eventos tonais compostos por apenas dois níveis de altura tonal: alto (H, high) e baixo (L, low). Em português (e.g.Frota 2000, 2014; Tenani 2002; Cruz 2013; Frota et al. 2015b; Frota e Moraes 2016; Santos 2015; Braga 2018), os eventos tonais de maior relevância na descrição das propriedades entoacionais dessa língua são:
(i) Acento tonal (‘pitch accent’) - movimento melódico alto (H*), baixo (L*), ascendente (L*+H, L+H*) ou descendente (H+L*, H*+L, H+!H*)8 associado a sílabas metricamente proeminentes, ou seja, portadoras de acento lexical;
(ii) Acento frasal (‘phrase accent’) - movimento melódico alto (H-) ou baixo (L-)9 associado a fronteiras de constituintes prosódicos mais baixos na hierarquia prosódica (sintagmas fonológicos), realizado nas sílabas limites desses constituintes; e
(iii) Tom de fronteira (‘boundary tone’) - movimento melódico alto (H%), baixo (L%), ascendente (LH%) ou descendente (HL%)10 associado a fronteiras de constituintes prosódicos mais altos na hierarquia prosódica (sintagmas entoacionais), realizado nas sílabas limites desses constituintes.
Neste trabalho, são indicados na camada ‘Tons’ os eventos tonais do contorno entoacional nuclear, a melodia mínima necessária para transmitir diferenças semânticas e pragmáticas em nível frasal em português, composto por um acento tonal e um tom de fronteira (Frota 2000; Frota et al. 2015b).
A camada “Ortografia” contém a transcrição ortográfica de cada palavra do enunciado. Já a camada “Fraseamento” contém o mapeamento do enunciado em constituintes prosódicos, na qual um índice numérico de 0 a 4 indica o grau de juntura dos constituintes de acordo com sua organização hierárquica.
Os domínios prosódicos do português (e.g.Frota 2000; Vigário 2003, 2010), estabelecidos a partir da Fonologia Prosódica (Nespor e Vogel 1986, 2007), são dispostos hierarquicamente, do nível mais baixo ao mais alto, da seguinte forma: 0=clítico fonológico, 1=palavra fonológica, 2=grupo de palavras fonológicas, 3=sintagma fonológico, 4=sintagma entoacional.
Indicamos, neste estudo, apenas o índice 4 da camada, que se refere ao sintagma entoacional (IP), nível prosódico de maior relevância para a descrição do fraseamento entoacional das variedades de português até então estudadas (e.g.Serra 2009; Frota et al. 2015b; Fernandes-Svartman et al. a sair). IP é o domínio que apresenta um contorno entoacional definido, cujas fronteiras coincidem com a posição nas quais pausas gramaticais podem ser inseridas, sendo formado por uma sequência de constituintes do domínio imediatamente inferior (sintagma fonológico);11 em seu elemento mais proeminente (em português, a palavra fonológica12 mais à direita), localiza-se o contorno entoacional nuclear (Frota 2000).
As três camadas de transcrição podem ser observadas na Figura 1.
4. Resultados
4.1. Declarativa neutra
No PLb, o contorno entoacional nuclear das declarativas neutras é caracterizado predominantemente (91.3%) por uma curva melódica descendente, realizada na sílaba tônica da última palavra da sentença (um acento tonal H+L*), e o tom permanece baixo até o final do enunciado (um tom de fronteira L%). Esse contorno é, portanto, representado pela configuração tonal H+L* L%. Além dessa descendência, há contornos nucleares realizados como um platô tonal baixo ao longo da sílaba tônica (L*), com um leve declínio que se estende até o final do enunciado (L%), podendo ser representado pela configuração tonal L* L%. Esse contorno baixo, de menor ocorrência (8.7%), é encontrado nos dados de apenas dois dos quatro falantes (MJ, JD).
Uma vez que a melodia dos contornos nucleares descritos como L* L%, em muitos casos, exibe uma leve curva ao longo de sua realização, é possível pressupor que L* L% seja uma realização fonética do contorno fonológico H+L* L% na qual há uma compressão tonal. Um maior número de dados (e de estilos discursivos diferentes) são necessários para avaliar essa hipótese. É possível afirmar, contudo, que H+L* L% é o contorno predominante e relevante para a caracterização desse tipo frásico em nossos dados.
Apresentamos, na Tabela 1, a distribuição dos contornos nucleares das declarativas neutras por falante e, em seguida, na Figura 2, ilustramos os dois tipos de padrões tonais encontrados para esse tipo frásico.
Considerando-se as variedades (brasileiras, europeias, guineense e santomense) já estudadas pela mesma perspectiva teórica aqui adotada,13 é possível observar que um dos traços entoacionais definidores das declarativas neutras do português é o contorno final descendente ou baixo, a depender da variedade, associado a esse tipo frásico.
Na maior parte das variedades do português europeu (PE),14 as declarativas neutras são caracterizadas por um contorno nuclear H+L* L% (Ale, Alg, Bra, Cob, CtB, Eva, Por, SEP); contudo, em certas variedades do PE, esse contorno pode ser exclusivamente (NEP) ou alternativamente (Ale, CtB, Eva, Por) baixo L* L% (Frota 2000, 2014; Cruz 2013; Frota et al. 2015b; Fernandes-Svartman et al. a sair). No caso do português brasileiro (PB), os contornos nucleares das declarativas neutras (PBa, SE, BA, MG, RJ, SP, PR, SC, RS) possuem um único padrão fonológico H+L* L% (Frota e Vigário 2000; Tenani 2002; Fernandes 2007; Serra 2009; Toneli 2014; Frota et al. 2015b; Castelo 2016; Fernandes-Svartman et al. a sair), mesmo que sejam reportadas ligeiras diferenças de realização fonética (alinhamento e escalonamento tonal) (Castelo 2016: 43-49). Já para o português de Guiné-Bissau (PGB) e o português de São Tomé (PST), tanto H+L* L% quanto L* L% são encontrados associados a essas sentenças (Santos e Fernandes-Svartman 2014; Santos 2015; Braga 2017, 2018).
Portanto, os contornos nucleares das declarativas neutras do PLb são semelhantes aos encontrados nas demais variedades de português, tanto no que se refere ao seu padrão descendente (H+L* L%) predominante (isto é, mais frequente) quanto nos casos de seu padrão baixo (L* L%) alternativo (ou seja, menos frequente).
4.2. Interrogativa global neutra
As interrogativas globais neutras do PLb apresentam dois padrões tonais nucleares distintos: ascendente e ascendente-descendente.
O primeiro padrão, menos frequente (41.7%), é caracterizado por um tom baixo ao longo da sílaba tônica, seguido por uma rápida ascendência na sílaba postônica.
A curva melódica ascendente em direção ao final do enunciado desse padrão tonal pode ser interpretada como resultado de uma fronteira monotonal H% ou de uma fronteira bitonal LH%. No entanto, pelo fato de não haver dados com palavras proparoxítonas em final de enunciado em que se possa observar o comportamento tonal dessa curva ao longo das sílabas postônicas final e não final, optamos por indicá-la, nesse momento, com a notação que melhor a descreve em termos fonéticos e de frequência: L* LH%. Já o segundo padrão, mais frequente (58.3%), é caracterizado por um tom ascendente na sílaba tônica, seguido por uma queda na sílaba postônica, sendo representado por L+H* L%. Os padrões tonais L* LH% e L+H* L% são observados para três falantes (MJ, SF, JD). No entanto, para um quarto falante (AJ), L+H* L% é o único padrão atestado para esse tipo de interrogativa.
Na Tabela 2, fornecemos a distribuição dos contornos nucleares das interrogativas globais neutras por falante, ao passo que, na Figura 3, ilustramos os dois tipos de padrões tonais atestados.
Ademais, diferentemente do PB (BA, MG, RJ, SP, PR, SC, RS), em que o contorno nuclear L*+H L% das interrogativas globais é normalmente truncado a L*+H ao se associar a oxítonos (Frota et al. 2015a; Castelo 2016), acreditamos que não seja provável que o contorno ascendente das interrogativas do PLb seja resultado de truncamento também (ou seja, de uma estratégia de acomodação entre o texto e a melodia na qual não haja a realização fonética do tom de fronteira L% por não haver material segmental postônico para a sua ancoragem). Nos dados do PLb, a maioria das palavras em que o contorno nuclear L*+H H% está associado (n=11/15) são paroxítonas.
Logo, consideramos que os contornos ascendentes (L* LH%) e ascendentes-descendentes (L+H* L%) desse tipo frásico referem-se a padrões fonológicos diferentes.
Podemos notar, portanto, que a diferença entre as declarativas neutras e as interrogativas globais neutras (que podem ser vistas como a contraparte interrogativa da declarativa) no PLb é codificada prosodicamente pela mudança de pelo menos um dos elementos formadores do contorno nuclear: o acento tonal e/ou o tom de fronteira. A combinação de acento tonal e tom de fronteira diferentes vista no PLb (H+L* L% para a declarativa vs. L* LH% para a interrogativa global) é a estratégia que ocorre na maioria das variedades de português (Ale, Alg, Ba, Por, RS) (Frota et al. 2015b: 256). Porém, o emprego de apenas acentos tonais diferentes, mas mantendo-se o mesmo tom de fronteira (H+L* L% para a declarativa vs. L+H* L% para a interrogativa global), também é observado em certas variedades do PB (MG, RJ, SP) (Moraes 2008; Truckenbrodt et al. 2009; Frota et al. 2015b).15
Se, por um lado, o contorno nuclear das declarativas neutras é praticamente homogêneo no português (com apenas duas possibilidades atestadas), por outro, o contorno nuclear das interrogativas globais neutras contém maior variação, sendo atestadas as seguintes configurações: L* H%, L*+H H%, L*+H L%, L+H* L%, L* HL%, H+L* LH%. Embora complexas, todas essas configurações envolvem uma melodia ou do tipo LH ou do tipo (H)LHL.
Mais especificamente, no PE, encontram-se contornos nucleares ascendentes L* H% (Ale) e L*+H H% (Alg, Por), ascendente-descendente L* HL% (NEP) e descendente-ascendente H+L* LH% (SEP) (Vigário e Frota 2003; Frota 2014; Cruz 2013; Frota et al. 2015b). No PB, são atestados contornos nucleares ascendentes L* H% (PBa, SE) e L*+H H% (BA, RS) e ascendentes-descendentes L*+H L% (BA, MG, SP, RJ) ou L+H* L% (RJ, SP) e L* HL% (SC, RS) (Moraes 2008; Truckenbrodt et al. 2009; Frota et al. 2015b; Castelo 2016; Rosignoli 2017a). Além disso, os contornos L* HL% e L*+H L% (PBa, SE) e os contornos L*+H H% e L* HL% (BA) são padrões alternativos em certas variedades do PB (Castelo 2016: §4.3.1.2).
Conforme pode ser visto, os contornos nucleares encontrados para as interrogativas globais neutras do PLb, assim como ocorre com as declarativas, são semelhantes aos encontrados nas demais variedades de português.
4.3. Interrogativa parcial neutra
As interrogativas parciais neutras do PLb são produzidas, de forma geral, frequentemente (70%) com um contorno nuclear descendente H+L* L%, semelhante ao encontrado para as declarativas neutras. Nesses casos, portanto, a diferença entre esse tipo de interrogativa e as declarativas neutras é transmitida morfossintaticamente pelo emprego da palavra interrogativa, já que uma marca prosódica de interrogação nesses enunciados seria redundante por já haver tal marca morfossintática (Frota et al. 2015b: 266).
Em variedades do PE e do PB (Ale, Alg, BA, MG, NEP, Por, RJ, RS, SEP, SP), a estratégia de utilizar o mesmo contorno nuclear da declarativa para a interrogativa parcial também é recorrente (Vigário e Frota 2003; Moraes 2008; Frota 2014; Frota et al. 2015b).
Configurações tonais semelhantes às das interrogativas globais são, contudo, também atestadas nos dados de dois falantes (MJ, AJ), para os quais elas são configurações predominantes: ascendente L* LH% (11.4%)16 e ascendente-descendente L+H* L% (18.6%). Nesses casos, além de uma marca morfossintática, as sentenças possuem também marcas prosódicas de interrogação, à semelhança da marcação prosódica redundante desse tipo de interrogativa em outras variedades de português (Frota et al. 2015b: 266).
No PE e no PB, embora a interrogativa parcial neutra seja normalmente produzida com o acento tonal nuclear da declarativa neutra (H+L* ou L*, a depender da variedade), seguido por L%, esse tipo frásico, por consistir em uma interrogativa, pode também ser produzido com uma marcação prosódica redundante de interrogação, a qual é codificada por uma ascendência final (um tom de fronteira H%), típica de interrogativas globais, em vez do final baixo; tal ascendência transmitiria uma polidez adicional à pergunta (Frota et al. 2015b: 265-66).17 No que se refere ao PLb, é tema de pesquisa futura definir se a ascendência tonal codifica ou não uma polidez adicional à pergunta.
A distribuição dos contornos nucleares das interrogativas parciais neutras por falante é dada na Tabela 3. Na Figura 4, exemplificamos os três padrões tonais encontradas para esse tipo frásico.
Novamente, assim como para os demais tipos frásicos aqui considerados, os contornos nucleares das interrogativas parciais neutras do PLb são semelhantes aos encontrados nas demais variedades de português, quer no emprego do mesmo padrão tonal da declarativa, quer na marcação prosódica redundante.
4.4. Fraseamento
As sentenças do PLb que formam o corpus deste estudo normalmente constituem um único sintagma entoacional (IP) e, assim, contêm um único contorno nuclear, conforme pode ser visto nas figuras apresentadas até o momento. Entretanto, foram encontradas algumas sentenças que estão mapeadas em dois IPs. Essas sentenças não são frequentes e foram encontradas apenas entre as declarativas neutras.
Das 82 declarativas do corpus que podem sofrer esse tipo de fraseamento - ou seja, aquelas que possuem no mínimo duas palavras fonológicas -, 22% estão mapeadas em dois IPs. A maior parte delas (n=12/18) agrupa o sujeito sentencial (S) em um IP separado de verbos (V) e objetos (O), que são agrupados em outro IP: (S)(VO). Para as demais sentenças (n=5/18), os seguintes agrupamentos são encontrados: (SV)(VO) e (SV)(O). Em praticamente todos os casos, o limite entre os IPs é delimitado por pausa, uma das pistas prosódicas mais robustas em português (sobretudo no PB e no PGB) para identificar as fronteiras desse constituinte prosódico (Serra 2009; Fernandes-Svartman et al. a sair).
Nos exemplos de (7) a (10), ilustramos todos os padrões de fraseamento encontrados nos dados e, na Tabela 4, apresentamos a sua distribuição por falante.
7. (SVO): (O galã de novela anda de carro.)IP
8. (S)(VO): (O ator de novela)IP (anda de carro.)IP
9. (SV)(VO): (Ele está)IP (a tomar uma limonada.)IP
10. (SV)(O): (Ele bebe)IP (um sumo de limonada.)IP
Diferentemente do PLb, na maioria das variedades do PE (Ale, Bra, Cob, CtB, Eva, NEP), o padrão de fraseamento predominante é (S)(VO); no entanto, para certas variedades (Alg, Por, SEP), predomina (SVO) (Frota 2000, 2014; Elordieta et al. 2003, 2005; D’Imperio et al. 2005; Frota et al. 2007; Cruz 2013; Fernandes-Svartman et al. a sair).
Este último padrão é também o mais frequente para o PGB e variedades do PB (RS, SP), embora se encontre também (S)(VO) (Fernandes-Svartman et al. a sair), o que aproxima o PLb dessas variedades. No PGB, ainda é atestado, em menor frequência, o padrão de fraseamento (SV)(O), que não havia sido observado em outras variedades de português estudadas até o momento (embora seja um padrão possível, mas infrequente, em duas outras línguas românicas: catalão e espanhol) (Fernandes-Svartman et al. a sair). Em todos os casos, a ramificação sintático-prosódica e o tamanho dos constituintes são fatores com diferentes pesos na escolha do padrão de fraseamento entre as sentenças. A natureza dos dados do corpus deste estudo, porém, não permite que tais fatores sejam investigados para o PLb, o que será feito em trabalho futuro, por meio de um corpus específico.
No que se refere ao contorno nuclear, o padrão tonal ascendente L+H* H% é o que caracteriza IPs não finais no PLb. Padrões ascendentes são também os mais comuns para todas as demais variedades de português, sendo atestados os seguintes: L*+H H% ou L+H* H% (Bra, Cob, CtB, Eva, NEP, PGB, Por, RJ, SEP, SP), H+L* H% ou H+L* LH% (Bra, Cob, CtB, Eva, NEP, PGB, Por, RJ, RS, SEP, SP) e L* H% ou L* LH% (Bra, Cob, CtB, Eva, NEP, PGB, Por) (Frota 2000, 2014; Tenani 2002; Frota et al. 2007; Serra 2009; Cruz 2013; Santos 2015; Fernandes-Svartman et al. a sair). Apesar das diferenças de alinhamento e configuração tonal desses contornos, todos eles envolvem uma melodia (H)LH, que, no PLb, é capturada pelo acento tonal L+H* e o tom de fronteira H%.
A distribuição dos contornos nucleares de IP não final por falante é fornecida na Tabela 5. A Figura 5 exemplifica uma sentença mapeada em dois IPs, (S)(VO), e o padrão tonal associado ao contorno nuclear não final desse sintagma.
Cabe dizer ainda que, se o contorno nuclear final identifica o tipo frásico como declarativo, por exemplo, o contorno nuclear não final codifica “continuidade” à sentença. A ascendência, mais precisamente o tom de fronteira alto, sinaliza o limite do sintagma e transmite a continuidade do enunciado aos casos em que, em uma sequência de frases, a segunda é sintaticamente incompleta em relação à primeira (Cagliari 1992: 138) ou quando o falante deseja manter o tópico discursivo, assegurando a continuidade de sua fala (Gonçalves 1997: 95 apudTenani 2002: 76). Na literatura, esses padrões tonais são denominados de padrão continuativo ou tom suspensivo (e.g.Cagliari 1992; Gonçalves 1997; Frota et al. 2007).
Em suma, as mesmas características prosódicas observadas no PLb para os contornos nucleares de IPs não finais de declarativas neutras mapeadas em dois IPs são também encontradas no PE, no PB e no PGB: IPs não finais são delimitados por pausa e marcados por um tom de fronteira alto.
5. Considerações finais
Neste estudo investigamos os padrões tonais nucleares de sentenças declarativas e interrogativas globais e parciais neutras do português do Libolo (PLb), uma variedade de português angolano em contato com o quimbundo, uma língua tonal banta.
A partir de dados de fala semiespontânea obtidos por meio de um ‘teste para completar o discurso’, a análise entoacional, desenvolvida de acordo com a Fonologia Entoacional Autossegmental-Métrica, mostrou que essa variedade de português apresenta características entoacionais semelhantes às encontradas em outras variedades de português.
Para declarativas neutras, são observados dois padrões tonais associados ao contorno nuclear, descendente H+L* L% e baixo L* L%, sendo o primeiro o predominante. A descrição de variedades do português europeu (PE), brasileiro (PB), guineense (PGB) e santomense (PST) realizada até o momento por outros estudos sugere que, embora haja variação quanto aos padrões tonais predominantes e alternativos encontrados entre as variedades, os contornos nucleares H+L* L% e L* L% são os únicos possíveis nessa língua. O fato de o PLb atestar esses dois padrões o integra a essas variedades.
Além disso, no caso de haver um sintagma entoacional não final, o PLb exibe um padrão tonal ascendente L+H* H%, o que novamente o aproxima das demais variedades de português pelo fato de empregar a mesma estratégia para a caracterização desse sintagma: a pausa e o tom de fronteira alto. A semelhança entre o PLb e as demais variedades de português não se restringe às declarativas, estendendo-se também às interrogativas. As interrogativas globais neutras, que são morfossintaticamente idênticas às declarativas, exibem dois padrões tonais no PLb: ascendente L* LH% e ascendente-descendente L+H* L%. Esses padrões são também encontrados em variedades do PE e do PB e, assim como nessas variedades, a diferença prosódica entre esse tipo frásico e as declarativas neutras é transmitida apenas prosodicamente, por combinações contrastivas dos acentos tonais e tons de fronteiras do contorno nuclear. Já para as interrogativas parciais neutras do PLb é atestado principalmente um contorno nuclear descendente H+L* L%, semelhante ao da declarativa, assim como ocorre no PE e no PB.
Nesse caso, a diferença entre esses dois tipos frásicos é, portanto, apenas morfossintática, sendo expressa pelo emprego da palavra interrogativa. Encontram-se também, em menor frequência, os padrões ascendentes L* LH% e L+H* L%, semelhantes aos das interrogativas globais, associados ao contorno nuclear das interrogativas parciais, o que confere a elas tanto uma marca morfossintática quanto uma marca prosódica de interrogação, de modo paralelo ao que já foi observado no PE e no PB.
Na Figura 6, fornecemos uma síntese dos contornos entoacionais nucleares encontrados em nossos dados para as declarativas e interrogativas parciais e globais neutras.
De modo geral, os resultados entoacionais encontrados para o PLb - uma variedade de português em situação de contato, pouco investigada linguisticamente e, até então, não estudada prosodicamente - atestam que os padrões tonais nucleares de suas declarativas e interrogativas neutras encontram correspondências, de modo geral, no sistema prosódico do português, mesmo que o padrão seja pouco frequente.
Entretanto, estudos futuros, considerando o contorno pré-nuclear das sentenças e a análise desses tipos frásicos em outros estilos discursivos, como em dados de leitura e de fala espontânea, por exemplo, poderão revelar se existem nelas características exclusivas ao PLb (e eventualmente advindas do contato com o quimbundo).