1. Introdução
Desde a década de 1950, o Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais (= DSM), proposto pela Associação Americana de Psiquiatria, tem sido utilizado no campo médico e da saúde1 como instrumento clínico que orienta o estabelecimento do diagnóstico de pessoas com dificuldades em diferentes esferas da linguagem e da vida psíquica. A versão mais recente deste Manual (DSM-V 2013) trouxe mudanças terminológicas e a inclusão/redistribuição de novos quadros clínicos - dentre eles, o Transtorno da Comunicação Social ou Pragmática, que tem motivado questionamentos e discussões quanto à sua delimitação, eficácia e aplicabilidade clínicas.
O denominado Transtorno da Comunicação Social (Pragmática) foi definido como “um déficit primário do uso social da comunicação verbal e não verbal” (Swineford et al. 2014), em que se observam
prejuízos em compreender e seguir regras sociais de comunicação [...] em contextos naturais, [em] adaptar a linguagem conforme as necessidades do ouvinte ou da situação e [em] seguir as regras para conversar e contar histórias (DSM-V 2013: 48).
Assim, conforme a referida rubrica, “Transtornos da Comunicação Social ou Pragmática” abarcaria uma suposta falta de flexibilidade no uso de inferências lógico-pragmáticas durante o diálogo (Aguilar-Valera 2017). Faz-se, ainda, referência a uma frequente associação entre o referido transtorno a comprometimentos de natureza estritamente linguística, como se diz, ou seja, com o quadro de Atraso de Linguagem.
Não é sem razão que o estabelecimento desta nova entidade clínica tenha levantado indagações sobre a possibilidade de realização de diagnóstico diferencial entre quadros clínicos que destacam dificuldades na fala e aquele em que as dificuldades estariam circunscritas ao âmbito da pragmática, da comunicação2. Na literatura médica e fonoaudiológica, encontram-se trabalhos que sustentam a ideia de que o referido Transtorno é uma variante do transtorno específico de linguagem, embora faça referência a um subtipo semântico-pragmático (Aguilar-Valera 2017: 150). Há, no entanto, outros trabalhos que afirmam que o Transtorno da Comunicação Social e Pragmática seria melhor conceituado clinicamente como um perfil sintomático presente em uma série de distúrbios ligados ao desenvolvimento neurológico (Norbury 2014) - um perfil flutuante, portanto, e não circunscrito a um quadro clínico específico.
Acontece que a prática clínica cotidiana testemunha o quão repetidamente manifestações sintomáticas de fala desafiam tanto a ideia de troca comunicativa, quanto o que se define como flexibilidade pragmática. Não é infrequente que a criança frustre seus cuidadores e interlocutores porque sua fala não atinge o ideal de falante esperado para um dado tempo. Essa diferença temporal inquietante (Lier-Devitto 2003, 2006; Andrade 2005; Fudissako 2009) está no cerne das queixas relativas a perturbações na linguagem, em que se recolhe o desalento de pais pelo que declaram ser uma inabilidade da criança para adaptar/ajustar expressões verbais (ou gestuais) às situações de comunicação.
Neste ambiente de imprecisões diagnósticas, as controvérsias em torno do diagnóstico de crianças com alterações pragmáticas de linguagem geram a necessidade de esclarecimento quanto à condição sintomática de falas de crianças.
Parece-nos essencial assinalar que o deslocamento do conceito de flexibilidade pragmática do campo de estudos da aquisição de linguagem para o campo das patologias de linguagem impõe considerações especiais à análise dos fenômenos linguísticos envolvidos na interação. Dito de outro modo, coloca-se como imperativo, a nosso ver, avaliar a natureza do fracasso comunicativo e refletir sobre o desconcerto especial da fala e do falante no diálogo. Queremos dizer que são efeitos singulares que caracterizam tais fracassos. Trataremos dessa questão.
2. Sobre (in)flexibilidade pragmática e Clínica de Linguagem
Antônio é o nome fictício de um menino de quatro anos e seis meses de idade, que chegou à clínica, trazido por sua mãe, com a seguinte queixa: “meu filho fala, mas não conversa”. Antônio iniciou tratamento numa clínica-escola de Fonoaudiologia, com uma estagiária em supervisão com uma fonoaudióloga-docente da instituição3. Os dados foram construídos a partir de anotações feitas em relatórios técnicos e de transcrições de sessões de avaliação de linguagem registradas em prontuário. A análise desse material clínico foi realizada com base nas elaborações teórico-clínicas desenvolvidas no Grupo de Pesquisa “Aquisição, Patologias e Clínica de Linguagem” (LAEL/PUCSP-CNPq), que representa um modo inovador de abordar questões do diagnóstico e do tratamento das ditas patologias de linguagem. Tal abordagem é concebida como estrutural, na medida em que envolve a interpretação de relações: relação da criança com a fala do outro e com a própria (o que escuta da fala e como escuta) e análise da qualidade das operações metafórica e metonímica que movimentam a fala propriamente dita, qualidade, esta, que certamente é afetada pela posição da criança na linguagem.
Diferentes aportes teóricos orientam, logicamente, formas particulares segundo as quais o diagnóstico (interpretação de queixas) e o tratamento são conduzidos. Toda leitura de um caso se modifica de acordo com o raciocínio clínico mobilizado. Assim, na clínica fonoaudiológica clássica, fortemente inspirada na clínica médica, a queixa é recebida como informação e anotada no momento da avaliação da linguagem. A mãe de Antônio, por exemplo, disse: “ele fala, mas não conversa”; dizer que é recebido como verdade e que serve como indicação de um exame das habilidades da criança para que ela chegue ao “uso efetivo da linguagem e seus propósitos funcionais de comunicação” (Befi-Lopes et. al. 2007: 265). Em outras palavras, a queixa não costuma ser interrogada pelo clínico, mas como informação da falência das “habilidades conversacionais básicas [da criança] e de sua capacidade para iniciar [uma interação] e interagir: responder apropriadamente e manter a interação” (Carlino et. al. 2013: 341).
Seguindo esta linha de raciocínio, o que se avalia é se a criança sustenta intenção comunicativa e se tem a capacidade de reconhecer e se adaptar às intenções de seus interlocutores. Já, acessar a intenção comunicativa do outro é condição determinada pelo estado da aquisição de linguagem. Assume-se, mesmo que implicitamente, que a criança somente é capaz de compreender e utilizar símbolos linguísticos quando ela sabe que adultos utilizam esses símbolos de maneira intencional e com propósitos específicos (Állan e Souza 2009). Nesse enquadre, interação é atividade social, sustentada por um jogo cruzado de intenções compartilhadas e veiculadas através da linguagem (veículo material da partilha de intenções), como diz Tomasello (2001, 2014). No caso de Antônio, então, sua dificuldade de reconhecer as intenções de seus interlocutores na dinâmica da comunicação seria o argumento explicativo da inadequação atestada em sua interação verbal com o outro.
Ainda que do ponto de vista da observação objetiva e imediata seja possível notar o fracasso da interação, uma hipótese cognitivista, ou se quisermos sócio-cognitivista, como esta, deve explicar a condição cognitiva da criança e dizer em que medida ela impede sua apreensão das intenções do outro. Esse passo não é dado com clareza nestas propostas diagnósticas.
Um segmento de sessão clínica com Antônio tem o seguinte formato:
Sessão 1. (T = terapeuta; A= Antônio)
(a criança encontra o controle do ar condicionado e o coloca próximo à orelha, como um telefone).
(1) A: aô, aô (com o controle)
(2) T: alô (com o próprio celular)
(3) A: (SI)
(4) T: tudo bem, A.?
(5) A: tudo bem
(6) T: você tá fazendo o que?
(7) A: dois, teix (começa a contar os brinquedos espalhados pela sala)
(8) T: fala comigo, A. Tudo bem?
(9) A: (SI) fôni
O que se diria de nosso menino Antônio é que ele chegou à clínica por não poder negociar intenções com o outro, que ele não se sustenta no jogo locutor-interlocutor. Parece, contudo, ser suficiente redizer a queixa com vocabulário mais sofisticado: ele fala, mas não conversa, ou seja: Antônio fala, mas não sustenta a alternância locutor-interlocutor4. É fato que o diálogo acima localiza bem a frustração comunicativa. Chama a atenção, contudo, que o menino pode “responder” (4 e 5) e “sustentar” sua fala em torno de “telefone/fôni” ao longo do estranho diálogo com T, que ao apresentar sua avaliação para a supervisora diz que “ele brinca, mas não interage”. É este efeito manifesto e explicitado que atinge o outro na relação com esta criança.
Segundo Carvalho, “a ideia de que a interpretação [do investigador] depende do reconhecimento de intenções que as crianças supostamente querem transmitir [em] sua trajetória linguística” (Carvalho 2011: 134) faz emergir um impasse de cunho metodológico, dada a impossibilidade de estabelecer uma relação sígnica ou unívoca entre uma palavra e um objeto ou estado de coisas no mundo. Não é sem razão, diz a autora, que no interior da própria abordagem sociocognitivista em aquisição de linguagem Tomasello coloque a seguinte questão: “como a criança compreende as intenções de outros, quando essas intenções podem ser interpretadas de várias maneiras”? (Tomasello 2001: 152) Trata-se de uma observação que interroga, ela mesma, a transparência suposta na relação linguagem-mundo que subjaz à noção de (in)flexibilidade pragmática e que demanda, portanto, esclarecimento sobre o assunto. Além disso, há considerações sobre a posição da criança na linguagem e frente ao outro, que não podem deixar de ser levadas em conta, quando se fala em (in)flexibilidade pragmática.
Queremos assinalar, com tais comentários, (1) que a ideia de (in)flexibilidade pragmática trata a língua como nomenclatura e tem, assim, na correspondência entre enunciado e situação externa de comunicação seu solo. O diálogo clínico entre Antônio e a terapeuta não seria, contudo, facilmente enquadrado na classe de situações características de “inflexibilidade pragmática”. De fato, como procuramos indicar, a criança pode sustentar sua fala em torno de um mesmo tema enunciativo - ela tem flexibilidade pragmática, portanto! - ainda que divague na relação com o outro: “ela brinca [e fala], ainda que não interaja” de forma esperada (diz a terapeuta). Não deixa de chamar a atenção, contudo, o embaraço desta criança com a linguagem.
O trabalho de Lemos em Aquisição da Linguagem, desde seus momentos iniciais, contesta vertentes cognitivistas do campo em que a questão do “reconhecimento da intenção comunicativa” do falante pelo ouvinte (e vice-versa) é central (Lemos 1986, 2002). O destaque dado pela autora à materialidade da linguagem no trânsito dialógico entre adulto e criança a levou a afirmar que, na aquisição da linguagem, “mais que aos aspectos pragmáticos da interação, aquilo a que [seu trabalho] queria dar estatuto era à conexão de natureza linguística que a interação [adulto-criança] tão desigual produzia” (Lemos 2002: 46) (ênfase da autora). Note-se que a interação acontece, ainda que “desigual”, como diz ela. De fato, tomar o partido do “linguístico” significa ter que reconsiderar o peso de vertentes pragmáticas, que apostam na ideia de captação e troca e partilha de intenções entre falantes. Em outras palavras, há “impossibilidade de se decidir, com segurança, sobre o sentido que o falante tem a intenção de comunicar” (Carvalho 2011: 141), uma vez que a linguagem não é nomenclatura e que, por isso, há opacidade na relação palavra - sentido, enunciado - sentido. Como supor coincidência, então, entre locutor-interlocutor num diálogo? É no interior de uma não-coincidência entre falante e intérprete que a interação caminha (o segmento acima é exemplo!) - uma dissimetria que é marca constitutiva do sujeito, de sua singularidade radical. Mencionar Lemos e Carvalho neste texto tem a função de situar um ponto de vista, que abre outra natureza de interpretação de acontecimentos.
A meta de propostas sócio-históricas (ou sócio-construtivistas) visa à construção do sujeito enquanto sujeito epistêmico, i.e., de sua transformação de organismo em sujeito histórico-cultural, decorrentes da relação da criança com o adulto (mediador da relação sujeito-objeto), quanto na linguagem (instrumento de construção de conceitos).
Dessa composição resultaria a adequação pragmática das ações sociais e da fala (ver sobre isso, Lier-Devitto e Arantes 1998). Nesse enquadre, não é nada fácil explicar como um adulto-mediador da relação da criança com o mundo pode “ter acesso” a intenções da criança supostamente veiculadas por seus enunciados fragmentados, esgarçados, inconclusos ou, eventualmente, por ações dispersas de seu corpo sobre objetos e sobre o outro.
Na proposta interacionista em Aquisição de Linguagem, como vimos, o foco manteve-se dirigido para a fala e a teorização guiada pela natureza errática, imprevisível e heterogênea do trânsito significante no diálogo (e não para o “significado”). Nesse espaço de reflexão, “ocorrências divergentes”, em expressão de Figueira, colocam em destaque a presença de produções que “chegam a tocar os limites consolidados da língua” (Figueira 2015: 174), produções que, numa Clínica de Linguagem, são aquelas que têm a tonalidade especial de “sintomáticas”5 e que diluem a (in)flexibilidade pragmática como questão e como recurso diagnóstico. Ainda que falas insólitas de crianças em aquisição da linguagem e falas sintomáticas de crianças possam ser caracterizadas de modo amplo como faltosas e imprevisíveis, somente o sintoma produz um estranhamento no outro cujo efeito é o de “corte radical” entre normalidade e patologia (Lier-Devitto e Arantes 1998). Trata-se de um estranhamento que tem a característica de “perplexidade” (Lier-Devitto 2003; Arantes 2009), sentimento, este, que é índice de uma dificuldade de identificação com aquela fala.
No fragmento de sessão de avaliação de linguagem de Antônio, introduzido acima, parece que o estranhamento da terapeuta ficou localizado num fracasso que diz “pragmático”, na medida em que o trânsito interacional/conversacional não se organizava conforme esperado. Entretanto, é preciso interrogar se tal avaliação seria suficiente, poderia conduzir a uma direção de tratamento eficaz. Parece-nos que o fracasso nas “trocas” verbais decorre das características específicas do modo como a fala de Antônio se apresenta, i.e., se ela responde (é endereçada) ao outro e, ainda, quanto o falante se sustenta nesse ambiente dialógico (se e como o falante escuta o outro e a si mesmo).
Andrade (2005) chama a atenção para o fato de que em aportes pragmáticos discute-se a dissimetria interacional (terapeuta-paciente), mas não a qualidade da trama significante da fala do paciente que, por certo, subjaz aos efeitos de desarranjo interacional/pragmático. Este é o aspecto que interessa fortemente numa Clínica de Linguagem: cristalizações significantes sintomáticas, problemáticas6, instauram a dissimetria interacional de fundo, que estabelece uma “diferença incontornável, uma vez que a superfície da fala é atingida, vem estilhaçada e é ela que afeta, de imediato, o outro” (Catrini 2005: 01; Tesser 2007).
3. Considerações finais
A expressão Clínica de Linguagem, que comparece no título deste artigo, distingue não só um método clínico assentado na Pragmática, mas sublinha o seu compromisso com a densidade significante da fala. Este compromisso não encobre outro maior: com o sofrimento que esta imprime na vida do falante. Ao recolher a queixa do paciente sobre sua fala, aguarda-se a enunciação de um pedido ao clínico (Catrini 2005). É no tempo dessa passagem da queixa para a demanda que posições clínicas se delineiam: a do terapeuta e a do paciente (Quinet 1991; Arantes 2001). Abre-se, então, a clínica para o sujeito, seu sintoma e clínico, numa composição dissimétrica: o terapeuta ocupa o lugar de um saber suposto a ele pelo paciente, este detém o enigma de sua condição e, portanto, uma verdade.
O contorno clínico dissimétrico é determinado, como procuramos enfatizar, antes de tudo por falas sintomáticas e não por dissimetria estabelecida por fatores pragmáticos: particularidade do contexto da interação, papéis distintos aos interlocutores, como sugerem Leahy (2004) e Grossen e Salazar Orvig (2011).
Insistimos que na afirmação de que a dissimetria clínica, aquela que funda a Clínica de Linguagem, vem pela mão da qualidade desconcertante da fala - é a singularidade de seus efeitos que leva, com certa frequência, a embaraços comunicativos (Lier-Devitto 2003) - mas isso é consequência e não motivação primeira. Entendemos que, quando o olhar se detém na adequação da função comunicativa, na (in)flexibilidade pragmática, a escuta para o modo particular de enlace da criança pela língua fica abalada. Assim, pouco se pode esperar que um clínico de linguagem produza mudanças esperadas, inclusive do ponto de vista da comunicação.
Dito em outras palavras, identificar a ausência ou presença de flexibilidade pragmática em crianças com falas sintomáticas não auxilia o encontro do clínico com a singularidade das manifestações verbais infantis, nem tão pouco pode orientar ações clínicas. Manter-se na análise superficial do encontro/troca comunicativa oblitera a escuta do clínico o impedindo de se deixar surpreender pelo modo único de presença de um sujeito na linguagem.