1. Introdução
Em artigo publicado em 2016, discutimos as dimensões técnicas e políticas do exercício laboral no campo jurídico. Fizemos isso com base na análise da composição de um inquérito policial, buscando compreender a mediação realizada pelo/no discurso, implicada no registro dos fatos de uma conduta potencialmente ilícita. Adotando uma abordagem enunciativo-discursiva dos fenômenos de linguagem e uma abordagem ergológica dos fenômenos do trabalho, entendemos, que, do inquérito à sentença, no curso de uma denúncia e seu correlato processo penal, o exercício enunciativo é parte integrante do processo constitutivo da representação ideal do Estado Democrático de Direito e da Justiça, que legitima o direito de punir. Longe de ser uma representação estável, o exercício enunciativo implicado pelo exercício laboral no campo jurídico permanentemente reconstitui essas representações, confrontando-se às tensões que são alimentadas no cotidiano do trabalho.
Não perdemos de vista que esse exercício laboral e seu exercício enunciativo correlato geram consequências irreversíveis na vida daquelas e daqueles que são afetados pelos processos penais. Por essa razão, o exercício jurídico não se resume a uma competência técnica, de saber fazer, mas exige principalmente uma postura ética em relação ao reconhecimento da responsabilidade em definir os rumos de uma vida e, consequentemente, as dinâmicas de uma sociedade.
Situados, pois, nessas coordenadas, direcionamos nossa atual análise à discussão acerca do exercício laboral-enunciativo que resultou na publicação da Súmula 610-STF, em 17/10/1984. A súmula é resultado do julgamento de cinco Habeas Corpus referentes às controvérsias na tipificação do crime de latrocínio em sua forma consumada e tentada, quando o roubo se exaure na tentativa e ocorre a morte da vítima como resultado derivado da conduta conscientemente dirigida à subtração de coisa alheia móvel. Moreira et al. (2019) argumentam sobre a inadequação jurídica do conteúdo normativo dessa súmula e apontam que, embora não tenha caráter vinculante, tem regido as decisões nos diferentes tribunais brasileiros desde então, evitando-se, assim, a discussão de um entendimento destoante que poderia resultar em uma revisão do seu conteúdo normativo melhor orientado pelo que está determinado no Código Penal (cf. “Brasil” nas Referências bibliográficas).
Na continuidade dessa discussão propriamente jurídica, propomos uma análise das decisões fundamentadas dos cinco Habeas Corpus que serviram de precedentes à edição da Súmula 610-STF em perspectiva enunciativo-discursiva bem como em perspectiva ergológica, uma vez que entendemos que o desdobramento dessa questão implica considerar a tomada da palavra como exercício laboral e os efeitos de sentido daí decorrentes. No desenvolvimento desse percurso, fazemos uma apresentação da Súmula 610-STF e a discussão de suas impropriedades na perspectiva de Moreira et al. (2019). Em seguida uma discussão sobre as abordagens teóricas que sustentam o percurso analítico deste artigo, a abordagem discursivo-ergológica. E, por fim, a análise dos textos que consubstanciam a edição da Súmula epigrafada.
2. A súmula 610-STF e sua revisão necessária
Na Súmula 610, editada pelo Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária realizada no dia 17 de outubro de 1984, declara-se: “Há crime de latrocínio, quando o homicídio se consuma, ainda que não realize o agente a subtração de bens da vítima”. Esse enunciado foi sumulado com base no julgamento de cinco Habeas Corpus utilizados como precedentes. São eles: STF-HC 48935, de 10/09/1971; STF-HC 56171, de 15/08/1978; STF-HC 56704, de 20/02/1979; STF-HC 56817, de 23/02/1979; STF-HC 57420, de 13/11/1979.
Juridicamente, a Súmula 610-STF configura-se como uma súmula simples, portanto “não dispõe de força normativa capaz vincular os demais órgãos do Poder Judiciário na resolução de casos cujo objeto de controvérsia é a tipificação do latrocínio em sua forma tentada ou consumada” (Moreira et al. 2019: 73).
Os autores apontam que, em mais de três décadas de reiterada aplicação, mesmo sem possuir efeito vinculante, essa súmula “consolidou substancialmente a sua força persuasiva e produziu uma unidade interpretativa que converteu o seu conteúdo normativo em uma ‘verdade superiormente instituída’” (Moreira et al. 2019: 73), com observância praticamente impositiva a todas às demandas que tangenciam a matéria:
a leitura de 187 decisões monocráticas e colegiadas prolatadas no Supremo Tribunal Federal (STF), Superior Tribunal de Justiça (STJ), bem como nas Varas Criminais e Tribunais de Justiça dos estados do Pará, Rio de Janeiro, Paraná, Ceará, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Distrito Federal, entre os anos de 2010 e 2016, todas relativas a essa controvérsia, demonstram que, no cotidiano forense criminal, essa Súmula é dotada de força persuasiva especial e diferenciada, possuindo ontologicamente efeito vinculante, nas práticas cotidianas dos órgãos do Poder Judiciário. (Moreira et al. 2019: 73)
Os autores defendem, por sua vez, que o entendimento desta súmula adota, equivocadamente, o tipo penal derivado, consubstanciado no resultado da morte da vítima, como base para definir o crime de latrocínio em sua forma tentada ou consumada, “quando tecnicamente o adequado era adotar referencialmente o tipo penal determinado (roubo), cujo elemento subjetivo é psicológico (dolo).” (Moreira et al. 2019: 74).
O latrocínio (roubo qualificado pelo resultado morte) é um crime contra o patrimônio, tipificado no art. 157, § 3º, II, do Código Penal Brasileiro. Trata-se de um crime de natureza híbrida, que constitui uma unidade delitiva, epistemologicamente, distinta tanto do roubo, tipificado no caput do art. 157, quanto do homicídio, tipificado no caput do art. 121, ambos do CPB. De acordo com os autores,
o roubo e o homicídio perdem suas singularidades para compor uma nova unidade delitiva, consubstanciada na associação entre um tipo penal determinado, imputado a título de dolo, e o resultado morte, consubstanciado no tipo penal derivado, imputado a título de culpa (Moreira et al. 2019: 83).
O grave erro contido na Súmula 610-STF, na defesa dos autores, é eleger-se o tipo penal derivado para tipificar o crime de latrocínio em sua forma tentada ou consumada.
Portanto, no entendimento dos autores, “o conteúdo normativo da Súmula 610 inverteu a base valorativa sobre a qual deve se assentar a tipificação da conduta em sua forma tentada ou consumada, que deveria ser o roubo e não o resultado morte.” (Moreira et al. 2019: 74).
Essas pontuações são de natureza jurídica e discorrem sobre o modo como têm sido interpretadas as enunciações que sustentam o exercício laboral-enunciativo nesse campo, sintetizadas nos códigos, nas doutrinas e nas jurisprudências. Entretanto, como matéria histórica que se constitui, se consolida e se transforma nas e pelas enunciações constantes no campo de atuação dos sujeitos do exercício jurídico, essas sínteses estão sujeitas a controvérsias jurídicas, constituídas no processo de interpretações diversas das que se consolidaram no cânone jurídico. Na continuidade da reflexão de Moreira et al. (2019), que pontuaram, precisamente, o entendimento controverso da Súmula 610-STF, apoiados na leitura crítica das fontes do Direito, este artigo tem por propósito discutir o exercício enunciativo que fundamentou a constituição do entendimento sintetizado na Súmula 610-STF, por meio da análise das decisões fundamentadas dos Habeas Corpus STF-HC 48935, de 10/09/1971; STF-HC 56171, de 15/08/1978; STF-HC 56704, de 20/02/1979; STF-HC 56817, de 23/02/1979; STF-HC 57420, de 13/11/1979.
A pergunta para a qual se busca resposta aqui é: qual funcionamento discursivo fundamenta a tomada de decisão jurídica que autoriza que o tipo penal derivado defina o crime de latrocínio em sua forma tentada ou consumada, conforme conteúdo normativo da Súmula 610-STF? Portanto, é preciso reforçar que a reflexão aqui apresentada se baseia no entendimento de Moreira et al. (2019) acerca da inadequação da Súmula 610-STF, buscando avançar no entendimento das condições de enunciabilidade que garantiram o seu surgimento e a sua consolidação. Por essa razão, fizemos a opção por retomar, inicialmente, os julgamentos dos cinco Habeas Corpus, em outubro de 1984, considerados aqui como marco temporal em que um entendimento jurídico se constitui e passa a pautar o exercício jurídico por mais de três décadas, como Moreira et al. (2019) constataram.
Este exercício de análise também se justifica pelo entendimento, em Pessoa e Moreira (2016), de que os textos produzidos em contexto laboral podem ser considerados espaços de escuta do sujeito do trabalho, apontando as marcas do trabalho de renormalização implicado em toda a atividade humana. Os fundamentos teórico-metodológicos que autorizam essa abordagem serão apresentados na seção seguinte.
3. Uma abordagem discursivo-ergológica dos enunciados em contextos de trabalho
A articulação entre os postulados teóricos da Análise do Discurso e da Ergologia vem sendo o empreendimento teórico-analítico que defendemos para alcançar a compreensão de diversos fenômenos plásticos e complexos que se constituem na confluência entre os fenômenos linguageiros e os fenômenos laborais.
Convencidos da indissociabilidade entre linguagem e trabalho, fenômenos que de diversas formas tecem uma rica rede de múltiplas relações, perseguimos, em diferentes momentos, o confronto com os processos históricos por meio dos quais sentidos no e sobre o trabalho emergem, impõem-se, transformam-se, silenciam na cadeia ininterrupta das enunciações.
No campo do exercício jurídico penal, essas relações entre os fenômenos linguageiros e laborais são estreitamente emaranhadas, uma vez que o exercício jurídico é uma atividade de natureza enunciativa, um trabalho que se exerce pela tomada da palavra para estabelecer contratos sociais cujas diretrizes se pautam por uma ordem discursivamente estabelecida, como defende Foucault (1996: 10):
Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder. Nisto não há nada de espantoso, visto que o discurso - como a psicanálise nos mostrou - não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é, também, aquilo que é o objeto do desejo; e visto que - isto a história não cessa de nos ensinar - o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar.
Desse modo, assumindo a natureza enunciativa do trabalho jurídico, mobilizamos alguns conceitos teórico-analíticos que consideramos sustentar suficientemente a investigação do funcionamento discursivo mobilizado no julgamento dos HCs que resultaram na publicação da Súmula 610-STF, que versa sobre o entendimento acerca de circunstâncias específicas do crime de latrocínio em sua forma consumada e tentada. A mobilização de tais conceitos pretendeu não perder de vista a constituição enunciativa da atividade laboral, tampouco as determinações institucionais da prática discursiva nesse campo da atividade humana, buscando alcançar a rede de convergências que se estabelece entre o exercício da linguagem e do trabalho, o que implica posicionamentos políticos, éticos e estéticos.
Os conceitos aqui mobilizados são, da abordagem ergológica, os conceitos de atividade e renormalização e, da abordagem discursiva, os conceitos de prática discursiva e cena de enunciação. São conceitos bastante abrangentes que orientam a leitura dos textos que se prestam à análise desta investigação e para a proposição das relações interdiscursivas que serão assinaladas para a interpretação dos posicionamentos éticos e políticos assumidos na tomada de decisão no campo jurídico penal.
Por atividade, Schwartz e Durrive (2015) consideram uma síntese do agir humano, um “impulso de vida e de saúde que é próprio ao ser humano, cada vez que ele começa a fazer alguma coisa.” (Schwartz e Durrive 2015: 375). O conceito abrange toda a complexidade da ação humana, incluindo-se a ação laboral. A relevância de um conceito tão abrangente para capturar a complexidade da atividade laboral se justifica em razão de considerarmos o trabalho como parte de um esforço permanente do homem de (re)criar as condições de sua existência e sociabilidade.
Sendo assim, as ações humanas, incluindo as ações verbais, constituem uma rede de (sobre)vivência coletiva, interligada pelo que Schwartz e Durrive (2015) denominam de operador sintético, que “liga e laça tudo o que tendemos a separar em categorias quando analisamos o ‘fazer’.” (Schwartz e Durrive 2015: 375). Assumindo esse conceito como norteador de nossa investigação, situamo-nos de saída na complexidade da atividade laboral, impossível de desvincular do desenvolvimento histórico e cognitivo da existência humana.
Se o conceito de atividade nos remete a um complexo universo do agir humano, onde uma intricada rede de relações se estabelece para (re)construção das condições de existência/resistência humana, não é a um universo diferente que nos remete o conceito de prática discursiva (Maingueneau 2008). Assumimos, apoiados nesse conceito, que nossa abordagem dos fenômenos linguageiros implicados em contextos de trabalho, mais especificamente o contexto do trabalho jurídico penal, privilegia os processos de produção de sentidos sobre os objetos de discurso que nesse contexto se constituem, se transformam e se dissolvem, sem desarticulá-los da ordem institucional permanentemente (re)constituída que favorece a sua emergência e/ou seu silenciamento. Desse modo, o conceito de prática discursiva nos permite refletir sobre a dinamicidade e plasticidade dos processos de produção de sentidos inseridos em uma ordem institucional que, também resultado de um processo permanente de (re)constituição, não pode ser tomada como um lugar de estabilidade. É justamente nesse lugar teórico das relações movediças que nos situamos para a abordagem das relações entre as atividades laborais e as atividades enunciativas. Quando se trata de trabalho e de linguagem, não se pode considerar condições estáveis e permanentes, mas complexos processos de mediação entre sujeitos organizados em ordens histórico-discursivas.
Para o entendimento desses processos, outros dois conceitos se somam para a interpretação dos acontecimentos laborais-enunciativos: os conceitos de renormalização e de cena enunciativa. Ambos nos permitem estabelecer pontos de ancoragem por meio dos quais os complexos processos de mediação vão sendo tecidos na singularidade dos acontecimentos.
Refletir em termos de renormalizações das atividades laborais implica considerar que toda atividade se constitui com base em normas, que podem ser normas consolidadas e compartilhadas em um coletivo social, as normas antecedentes, ou normas em processo de constituição, emergentes face a singularidades do agir humano e dos valores a ele relacionados, ainda não plenamente compartilhadas.
São essas normas que orientam as decisões necessárias ao desenvolvimento da atividade, que guiam os sujeitos diante das reservas de alternativas que dispõem ante a necessidade de agir. No contexto das atividades laborais, as normas antecedentes, consolidadas e compartilhadas pelos coletivos de trabalho, abundam e assumem status diferenciados a depender do quanto perdem a aderência dos acontecimentos singulares para normatizar as condutas mais gerais. Segundo Schwartz e Durrive (2015: 382), as normas antecedentes se definem pela anterioridade e pelo anonimato:
Isso significa duas coisas: primeiro, elas existem antes da vida (industriosa) coletiva que elas tornaram possível; em seguida, elas não tomam em consideração a singularidade das pessoas que vão estar encarregadas de agir e vão se instalar no posto de trabalho (tanto quanto essa noção seja válida).
Quando consistentemente formalizadas, essas normas antecedentes apresentam-se nos contextos laborais como prescritos institucionais para o trabalho. Entretanto, diante de qualquer ordem normativa, seja ela mais ou menos institucionalizada, o agir humano necessariamente a renormaliza em um movimento de apropriação em contextos singulares, de modo a tornar vivível esse conjunto de normas:
O humano em atividade não cessa, portanto, de renormalizar, de arbitrar diante dos “vazios de normas” ou da inadaptação e da rigidez das normas antecedentes. Fazendo isso, ele não faz senão aumentar a variabilidade da situação inicial, afastando ainda mais a perspectiva - invivível - da padronização. Assim, através das renormalizações, produz-se a singularidade, a história. (Schwartz e Durrive 2015: 380)
Esse processo de renormalização inerente às condições do agir humano se realiza na e pela enunciação, uma vez que é na e pela linguagem que se pode recuperar os saberes e valores já mobilizados para a atividade e formalizar os novos saberes e valores resultantes do confronto com a singularidade do acontecimento. Novamente nos situamos na inextricável relação entre linguagem e trabalho, assumindo, de acordo com Faïta et al. (2010: 180), que “o dizer estrutura o fazer no espaço e no tempo”, acrescentando, já em Pessoa e Moreira (2016), que o inverso também é verdadeiro.
Desse modo, a busca por compreender os processos de renormalização próprios aos contextos laborais nos remete aos processos enunciativos, encontrando na materialidade verbal, quando ela é o produto da atividade laboral, os vestígios do debate de normas que reconfigura as normas antecedentes. A cena enunciativa compõe, então, nesse quadro teórico que constituímos para os propósitos de nossa investigação, os pressupostos que nos orientam a interpretar a inscrição, nos enunciados, das condições requeridas dos contextos laborais para a enunciação.
São considerados, então, efeitos dos enunciados as instâncias de enunciação: o par enunciador/coenunciador e as coordenadas de tempo e de espaço da enunciação. Assim, o processo de enunciação é entendido como decorrente de um posicionamento do sujeito na ordem histórico-social que o determina, ao mesmo tempo em que sua realização impõe essa ordem entre os enunciadores que a ela podem se submeter, legitimando-a, ou podem se insurgir, questionando-a e impondo nova ordem de relações.
Se são condições requeridas para a enunciação, são igualmente as condições requeridas para renormalizar a atividade, para lidar com a reserva de alternativas para o fazer, uma vez que essa reserva de alternativas é constituída pelos sentidos que esse fazer assume nos contextos, paradoxalmente, históricos (encadeados a outros sentidos) e singulares.
Tomar a palavra para realizar a atividade e, ao mesmo tempo, compreender a ordem institucional implicada pela atividade para enunciar são duas faces da mesma moeda que fazem a história do exercício laboral nas diversas esferas da atividade humana. E, ao fazer a história do exercício laboral, constitui simultaneamente a história sociopolítica que implica a todos nós.
Com base nesses pressupostos teóricos, o que se pretende neste artigo é interpretar um conjunto de textos que, produzidos no contexto laboral da atividade jurídica penal, resultaram na enunciação da Súmula 610-STF. Nele buscamos compreender o funcionamento discursivo que fundamenta a tomada de decisão jurídica que autoriza que o tipo penal derivado defina o crime de latrocínio em sua forma tentada ou consumada, conforme conteúdo normativo da Súmula epigrafada. Para tanto, perseguimos, nos textos que resultaram nessa tomada de decisão, os traços que revelam a maneira específica que uma cena enunciativa se inscreve na construção de uma representação do Estado Democrático de Direito e da Justiça e seus desdobramentos na atividade jurídica penal cotidiana.
Para o exercício punitivo, quando determinada a culpabilidade do réu, a norma prescritiva que rege os procedimentos a adotar, entre eles o estabelecimento da dosimetria da pena a ser cumprida, está constituída no CPB. A formulação dessa norma é resultante de um processo laboral de natureza essencialmente enunciativa realizado pelo poder legislativo do Estado. Dado o seu caráter prescritivo, essas normas estão em situação de desaderência do cotidiano do trabalho jurídico penal cotidiano, cujas decisões devem ser fundamentadas, tendo por sustentação jurídica essa prescrição. De acordo com nossos pressupostos teóricos, o exercício laboral cotidiano no campo jurídico penal constitui necessariamente outras normas que, se formuladas em aderência com os acontecimentos singulares que são objeto de um processo penal, podem assumir novo estatuto no ordenamento jurídico, dado o expediente da jurisprudência, que passa a operar um novo movimento de desaderência das normas, efetivando, assim, um cruzamento entre normas que se complementam, se regulam ou se confrontam. É esse cenário de controvérsia jurídica no cruzamento entre normas antecedentes que se situa nossa investigação, conforme já expresso em seção anterior. Uma norma estabelecida pelo expediente da jurisprudência é considerada em confronto aberto com uma norma prescrita oficial. O questionamento sobre esse confronto entre normas é apresentado por Moreira et al. (2019), posições também aqui já apresentadas. Nossa contribuição para esse debate consiste em apresentar como argumento o estatuto das práticas discursivas na configuração dos processos sociais que se movimentam permanentemente no curso da história, seja para possibilitar a irrupção de uma nova ordem, seja para a manutenção da ordem vigente. O que será que temos como movimentos na cena enunciativa no contexto laboral do campo jurídico penal?
4. O funcionamento discursivo implicado na constituição da Súmula 610-STF
O latrocínio constitui um crime contra o patrimônio, tipificado no art. 157, §3º, II, do CPB como roubo qualificado pelo resultado morte. O tipo penal determinado é assim definido no caput do art. 157: “Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência.”, cuja pena de reclusão varia entre 4 a 10 anos e multa. Nos incisos I e II do terceiro parágrafo deste artigo, expressa-se, respectivamente, que: “Se da violência resulta lesão corporal grave, a pena é de reclusão, de 7 (sete) a 15 (quinze) anos, além de multa; se resulta morte, a reclusão é de 20 (vinte) a 30 (trinta) anos, sem prejuízo de multa”. Portanto, a penalidade para a subtração de patrimônio alheio é inflada, se no curso da ação ilícita a vida é ameaçada ou ceifada.
Essa qualificação é entendimento imprescindível para compreender os questionamentos aqui formulados sobre a Súmula 610-STF, na continuidade dos questionamentos propostos por Moreira et al. (2019), já que a principal discussão nas fundamentações dos HCs que conduziram à decisão do STF expressa na Súmula 610 é em torno da dosimetria da pena de uma sentença penal que puna o resultado morte involuntária da vítima ocorrida no curso de uma ação ilícita, conscientemente dirigida à realização de um roubo. Nessa hipótese, observamos que a conduta praticada pelo agente produz lesão a bens jurídicos distintos, o patrimônio e a vida da vítima, tutelados pelo Direito Penal (Roxin 2018):
01- Se tal entendimento não é doutrinariamente perfeito, no que tange aos delitos complexos, é, entretanto, a orientação que, na prática, melhor atende à exigência de maior gravame punitivo, quando o bem maior, vida, é lesado, tornando-se irrelevante a ocorrência do dano patrimonial, sempre desejado no latrocínio. (HC nº 56.817/SP, fls. 03-04, grifo no original)1
O crime de latrocínio é sempre referenciado na fundamentação das decisões dos HCs como um crime complexo, cuja unidade não pode ser fragmentada:
02- Hoje, entretanto, predomina o entendimento de que, sendo o latrocínio um crime complexo, que não pode ser cindido, estará o mesmo caracterizado desde que se consume o crime-meio, ou seja, o homicídio. (HC nº 56.704-5/SP, fls. 02 - 03)2
Considerando-se os posicionamentos assumidos nessas fundamentações, a complexidade dessa articulação entre o tipo determinado roubo e o tipo derivado homicídio consiste em uma relação escalar que gradua a gravidade das condutas no curso da ação ilícita. Por essa razão, reitera-se, na fundamentação das decisões, que a gravidade do homicídio, ou sua tentativa, justifica a qualificação de latrocínio, garantindo-se que a punição pela conduta ilícita seja a maior possível:
03- É relevante notar que o próprio Código Penal, ao definir o latrocínio, dá especial ênfase à violência contra a pessoa, abstraindo, nessa parte, se houve ou não efetiva lesão patrimonial.
(...)
Constata-se, prima facie, no exame desse dispositivo legal, a preocupação em se reprimir com maior rigor o crime de roubo tendo em vista a maior ou menor gravidade da lesão provocada contra a vítima, em sua integridade pessoal.
E por esse motivo, não cuidou a lei de distinguir, para efeito de tipificação do crime de latrocínio, houvesse ou não o agente criminoso se apropriado definitivamente do bem patrimonial objetivado quando do uso da violência. (HC nº 56.704-5/SP, fl. 04, grifo no original)
No entanto, embora na superfície enunciativa se mencione uma relação vida X patrimônio que estabelece a primazia daquela sobre este, na cenografia discursiva mobiliza-se uma relação valorativa mais complexa entre esses dois polos, tão complexa quanto a interpretação do fato jurídico em causa para a determinação de uma sentença. Isso está indiciado nos posicionamentos assumidos em relação à vida daqueles implicados no fato jurídico, seja na posição de vítima, seja na posição de réu. A insistência em compreender os efeitos de sentido implicados na relação entre vida e patrimônio, que fundamentam as decisões judiciais em tela, se justifica em razão da comparação que surge no texto do Recurso Criminal 1322, utilizado no HC nº 56.817/SP a título de jurisprudência:
04- Se assim não for, consagrar-se-á o ilogismo de se punir um homicídio qualificado muito mais severante do que um homicídio praticado como meio para a consumação de um delito patrimonial, o que repugna à consciência jurídica”. (RCr. 1322, Rel. Min. Antônio Heder). (HC nº 56.817/SP, fls. 03-04l)
Que escala está implicada nessa fundamentação que defende gravidade maior para um crime cometido como meio para a consumação de um delito patrimonial do que um crime cometido finalisticamente contra a pessoa, senão a defesa de uma equivalência de valor entre a vida e a propriedade privada, quiçá a inversão de prioridades? Corroborando este argumento, encontramos no HC nº 56.704-5/SP a defesa para uma punição mais rigorosa nos seguintes termos:
05- O latrocínio é mais rigorosamente apenado do que os demais crimes exatamente para proteger a pessoa humana contra os assaltantes à mão armada que diuturnamente causam vítimas em todo o território nacional. (HC nº 56.704-5/SP, fl. 03)
Nos termos de uma cenografia que constitui a representação ideal de um Estado Democrático de Direito, uma punição mais severa contra o crime de latrocínio é justificada em termos de proteção da pessoa humana, cuja vulnerabilidade consiste na sua condição de proprietária de um patrimônio potencialmente ameaçado. Tal condição assim recuperada naturaliza a situação de desigualdade social como status quo que desumaniza de diferentes formas aquelas e aqueles cuja vulnerabilidade se estabelece justamente pela insuficiência material das condições básicas da vida. Nesse cotejo, entre vida e patrimônio, aquela tem valor se constituída na base deste. Essa relação escalar para a punição de um crime contra o patrimônio que ameaça também a vida passa a ser um parâmetro constituído no exercício laboral-enunciativo cotidiano no campo jurídico distinto do parâmetro baseado em uma relação finalisticamente orientada, conforme desenvolvida por Hans Welzel (2010), que fundamenta o atual CPB, assim como é também um dos pilares do novo anteprojeto de Código Penal, em tramitação no Congresso Nacional, conforme afirmam Moreira et al. (2019). Adotando-se como critério a relação finalisticamente orientada, estabelecido nas prescrições do judiciário, a articulação entre o tipo determinado (roubo) e o tipo derivado (homicídio) se estabelece na condição de atribuir-se, ao tipo determinado, o dolo da ação potencialmente ilícita. Desse modo, quando o roubo se exaure na tentativa e ocorre a morte da vítima como resultado derivado da conduta conscientemente dirigida à subtração de coisa alheia móvel, os conceitos de preterdolo e o crime qualificado pelo resultado são
recursos técnico-operativos empregados para dar conta de situações que os conceitos de dolo e culpa, por si sós, são insuficientes para promover a relação imputativa, sem violar o princípio da responsabilidade subjetiva adotado no ordenamento jurídico pátrio (Moreira et al. 2019: 83).
Entendemos, na perspectiva discursiva e ergológica em que se sustenta este artigo, que, nas fundamentações dos julgamentos dos HCs, evidencia-se um debate de normas baseado em valores, que conduz à renormalização da atividade no campo jurídico, aqui reconhecida na mudança de parâmetros adotados para o estabelecimento das sentenças referentes ao crime doloso tipificado no art. 157 do CPB, fundamentadas por uma presunção que é apresentada, pelos agentes do Estado, como uma verdade irrefutável:
06- A lesão à pessoa, evidentemente, sobrepõe-se à lesão patrimonial, e ninguém de bom senso pode negar essa verdade. (HC nº 56.704-5/SP, fl. 03)
Nessa tensão entre as prescrições e os gestos de renormalização, os valores que sustentam a adoção dos prescritos não parecem ser suficientes ou apropriados para atender a uma certa ética jurídica. Nesse caso, apela-se para valores considerados condizentes com a atividade singular que se realiza. Nesse percurso, vai-se conformando um entendimento hegemônico sobre a exclusão dos condenados pelos crimes contra o patrimônio na forma de encarceramento prolongado, em que os réus são alvos de “todo tipo de discriminação e reprovação, com total respaldo social para isso.” (Borges 2019: 21):
07- “É evidente o dolo com que agiu, premunindo-se de grande número de armas para efetuar o furto de que dependeria a prática de um outro assalto. (depoimento de fls. 23/24). Não titubeou o acusado em atirar contra a vítima (seu depoimento de fls. 18/20) mesmo estando ela sendo alvejada por Isaias, e na refrega e na fuga, descarregou totalmente sua arma, e tão frio se demonstrou na fuga, que ainda levou o revólver que ficara na pasta de Isaias. Após o fato não titubeou em ocultá-lo, até mesmo dos parentes do comparsa abatido, mantendo-os em erro para ocultar sua própria responsabilidade. Sua vileza se demonstra ainda pelo fato de levar uma dupla vida, ocultando sua vida de crimes sob aparência de uma vida trabalhosa e familiar (vide os docs. de fls. 108 a 111 v.). A intensidade de seu dolo é grande e demonstra ser o denunciado indivíduo de alto grau de periculosidade, pois se propõe a efetuar um furto, com arma de fogo, e não titubeia em dela fazer uso, para assegurar a impunição.” (fls. 19 a 20). (HC nº 57.420 - 3/RJ3, fls. 02-03).
08- Concluiu condenando o réu, ora impetrante, “como incurso no art. 157, parágrafo 3º do Código Penal, à pena de dezessete (17) anos de reclusão e à multa de seis cruzeiros, devendo o mesmo pagar ainda as custas processuais e a taxa judiciária legal. Tendo em vista seus antecedentes, de natureza social, a sua personalidade, os motivos e as circunstâncias do crime que praticou, e a suposição de que volte a delinqüir, aplico-lhe, outrossim, dada a sua periculosidade, a medida de segurança consistente em internação durante pelo menos um ano, em instituto de trabalho, de re-educação ou de ensino profissional (arts. 76, 77 e 93, nº II, letra a do Código Penal).” (fl. 21). (HC nº 57.420 - 3/RJ, fls. 02-03)
Nas narrativas que reconstituem os fatos, os réus são descritos por meio de traços que acentuam um caráter hediondo, valendo-se os agentes do Estado de adjetivações carregadas de presunções sobre o perfil dos réus e de modalizações que orientam para uma assunção irrefutável dos argumentos relacionados. Filiada ao paradigma etiológico constituído no campo da criminologia (Morais 2019)4, a sentença condenatória do réu, referenciada no voto do Habeas Corpus nº 57.420 - 3/RJ, atribui as causas do crime a “fatores biopsicológicos, numa visão a-histórica e a-crítica da sociedade” (Morais 2019: 34), na qual se ontologiza o criminoso como indivíduo absolutamente nefasto ao convívio social. Outro traço dessa exclusão é a forma como alguns réus são denominados no curso do processo penal, desapossados de toda individualidade e segurança jurídica, ao serem denominados pelo termo “comparsas”. Nos estudos desenvolvidos por Rusche e Kirchheimer (2004), há uma clara demonstração de que, nem todos são igualmente vulneráveis ao poder punitivo do Estado, pois, o exercício desse poder é orientado por estereótipos, que incrementam a estigmatização dos segmentos sociais marginalizados e etiquetados, nos quais se encontra o “ladrão”, o “ladravaz”, o “assaltante”, o “meliante”, o “delinquente” o “bandido”, em suma, o “criminoso”.
A exigência de encarceramento prolongado como medida protetiva para aqueles que detém o patrimônio desvirtua-se da fundamentação jurídica do CPB, que no processo dessas renormalizações passa a assumir o fundamento da exclusão como ordenamento social. As razões para uma sentença penal baseada em parâmetros diversos daqueles que fundamentam o CPB se desdobram em uma presunção da periculosidade do réu determinada aprioristicamente pelas condições da estrutura social da qual é parte oprimida. Assim a população prisional tem seus direitos violados:
A sociedade é compelida a acreditar que o sistema de justiça criminal surge para garantir normas e leis que assegurarão segurança para seus indivíduos. Mas, na verdade, trata-se de um sistema que surge já com uma repressão que cria o alvo que intenta reprimir. A realidade do sistema de justiça criminal é absolutamente diversa de garantir segurança, mas um mecanismo que retroalimenta insegurança, e aprofunda vigilância e repressão. (Borges 2019: 56)
As circunstâncias que caracterizam o ato ilícito são todas da ordem da individualidade dos réus: sua vilania, sua periculosidade, sua frieza.
Esse modo de configurar o contexto da ação ilícita, circunscrevendo-o ao escopo de uma ação individual, resultante de uma intenção malévola, adequa-se ao tipo de solução que se defende: o encarceramento prolongado, o alijamento, a divisão social entre “a pessoa humana e os assaltantes à mão armada” (HC nº 56.704-5/SP, fl. 03). Zaffaroni (2001), ao abordar a instrumentalidade do Direito nas relações de dominação constituída na sociedade moderna, observa, na direção do que aqui discutimos, que o direito permeia todas as esferas da atividade humana, repercutindo nas relações intersubjetivas, políticas, econômicas, familiares, trabalhistas, e patrimoniais, submetendo os indivíduos a um sistema de regulamentação jurídica, com fim de estabilizar as relações de dominação constituídas em uma sociedade marcada pelas contradições das condições materiais de existência. Portanto, em todos os ramos do Direito estão inscritos mandamentos proibitivos ou destinados a controlar os conflitos que afetam os interesses das classes dominantes.
Nesse sentido, o autor destaca que a natureza jurídica da sanção penal, associada ao sofrimento do ambiente prisional, diferencia o Direito Penal dos demais ramos do Direito, revelando-o como um importante instrumento de controle social excludente.
As renormalizações, ao serem validadas no curso de processos penais, podem ganhar a força de uma nova prescrição mediante o expediente da jurisprudência. A reiterada retomada dessa decisão singular, no contexto de uma controvérsia jurídica, como no caso sob análise, pode chegar à elaboração formal de um prescrito, como a Súmula 610-STF. A força dessa vinculação real observa-se no modo como são tratadas as decisões dissonantes no contexto dessa controvérsia:
09- De início, o paciente não foi identificado. Por isso, não foi incluído na ação penal intentada contra seus comparsas, que vieram a ser condenados, pela sentença de fls. 41, como incursos no art. nº 157, § 3º, do Código Penal, mas que obtiveram, em grau de apelação, a anulação do decisório de primeiro grau, por entender, a 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que, tendo sido consumado o homicídio, desfigurado resultara o latrocínio, firmando-se, por conseguinte, a competência do júri.” (HC n.º 56.171-3/RJ, fls. 01-02)
Ao se reportar à revisão da sentença em instância recursal, o relator a considera como erro/equívoco:
10- Assim, o erro em que incidiu o colegiado julgador da apelação formulada em prol dos comparsas do impetrante não pode ser invocado a favor deste, pois a atenção ao princípio da isonomia não vai ao ponto de lhe conferir o benefício de se ver alcançado pelo mesmo equívoco. (HC n.º 56.171-3/RJ, fl. 03)
Se a proteção à vida é fundamento para justificar a rigorosa punição de crimes contra a pessoa, a proteção à vida deveria ser igualmente condição sine qua non para a existência do sistema de justiça criminal, pela observação rigorosa do Princípio da Igualdade Processual, garantindo que, para ambas as partes envolvidas em uma ação penal, houvesse a observação rigorosa de direitos estabelecidos em lei.
Afinal, a garantia de direitos de toda/todo cidadã/cidadão está entre as principais formas de proteção à vida.
No entanto, na cena enunciativa que constitui a atividade jurídica, no julgamento dos HCs em tela no STF, fica demonstrada e validada a força peremptória do direito constitucional à propriedade como pressuposto para o acesso ao direito à proteção jurídica. Esse traço estruturante do sistema jurídico que associa o direito à vida ao direito à propriedade, alinhado a racionalidades capitalistas, é a condição por meio da qual foi possível reduzir, no Brasil, a vida humana à mera propriedade privada, no sistema escravista até o final do século XIX. Consoante Silva (2017), era do argumento ao direito à propriedade que se valiam os ruralistas para retardar a abolição no país ou para, diante da sua iminência, obter do Estado indenização:
O prudente e pragmático Paulino de Sousa queria, ao menos, garantir a colheita de uma supersafra antes de ter de passar a pagar pelo trabalho de seus camponeses. Barganhava. Exagerava os perigos para tentar colher alguma ajuda oficial.
A abolição feria, segundo a ótica dos escravistas, o sagrado princípio da propriedade privada. O defensor da iniquidade podia apresentar-se humildemente como um legalista cioso do cumprimento da Constituição:
É inconstitucional porque ataca de frente, destrói e aniquila para sempre uma propriedade legal, garantida, como todo direito de propriedade, pela lei fundamental do Império entre os direitos civis de cidadão brasileiro, que dela não pode ser privado, senão mediante prévia indenização do seu valor. (Silva 2017: 36-37)
Diante desse quadro histórico, não se pode deixar de denunciar o cruzamento das condições de produção dos discursos capitalista e racista que geram efeitos nas enunciações no campo jurídico ainda na contemporaneidade. Borges (2019: 42) afirma que o “debate sobre justiça criminal no Brasil não pode jamais prescindir da questão racial como elemento pilar, inclusive para a instalação dessa instituição no país”. Da infame condição de propriedade de produtores rurais, as/os mulheres/homens negras/negros, ontem escravizadas/escravizados, hoje sofrem também violentamente os efeitos de um sistema de justiça criminal que aprofunda desigualdades étnico-raciais e socioeconômicas. Borges (2019) denuncia a profunda conexão entre o sistema de justiça criminal e o racismo:
Além da privação de liberdade, ser encarcerado significa a negação de uma série de direitos e uma situação de aprofundamento de vulnerabilidades. Tanto o cárcere quanto o pós-encarceramento significam a morte social desses indivíduos negros e negras que, dificilmente, por conta do estigma social, terão restituído o seu status, já maculado pela opressão racial em todos os campos da vida, de cidadania ou possibilidade de alcançá-la. (Borges 2019: 21)
A inobservância de direitos estabelecidos no ordenamento social para a garantia de um Estado Democrático de Direito somente reforça a cisão social entre sujeitos cujas vidas importam mais que outras.
Com base em verificação das penas privativas de liberdade aplicadas às condutas que violam os bens jurídicos, pode-se concluir que há um descompasso entre as penas aplicadas aos crimes contra a vida e contra o patrimônio, pois, nestes, as sanções penais são mais elevadas, ainda que praticados sem violência à pessoa. No CPB, a pena para o roubo é de 4 a 10 anos de reclusão5. Todavia, se na prática deste crime, involuntariamente, o agente mata a vítima, a pena varia de 20 a 30 anos de reclusão. Isso significa que há um aumento de 16 anos na pena mínima e 20 anos na pena máxima. Nota-se, nesse caso, que o aumento da pena é superior à própria pena estabelecida para o homicídio doloso, que é de 6 a 20 anos de reclusão. Ainda que praticado em sua forma mais hedionda, tal como qualificado por motivo torpe ou paga, a pena mínima seria de 12 anos. A defesa do direito à propriedade mais uma vez é argumento fundamental para aprofundar “o fosso e a fossa entre proprietários e despossuídos de tudo.” (Silva 2017: 37).
5. Considerações finais
A discussão sobre o funcionamento discursivo que sustenta as decisões jurídicas em relação ao crime de latrocínio em sua forma tentada ou consumada, conforme conteúdo normativo da Súmula 610-STF, conduziu-nos a problematizar os efeitos de sentido acerca de dois bens jurídicos tutelados pelo Direito Penal: a vida e o patrimônio. A tessitura de uma rede de relações entre os enunciados produzidos no contexto do trabalho jurídico nos permitiu dar visibilidade ao processo complexo e desigual como os valores acerca desses bens jurídicos são constituídos nas práticas discursivas e laborais determinantes de um ordenamento histórico-social marcado pela racionalidade do modelo capitalista e do preconceito racial.
Esse percurso teórico-analítico reforça um posicionamento no campo das ciências que se ocupam da atividade humana que defende o ininterrupto movimento de (re)ordenamento histórico-social cujas bases são relações de estabilidade/instabilidade constituídas por meio da disputa de valores e saberes e das consequentes relações de poder delas derivadas.
Ao abordarem, respectivamente, as origens do sistema penitenciário na Europa e nos Estados Unidos, entre os séculos XVI-XIX, Melossi e Pavarini (2006) demonstram a estreita relação entre o processo de formação social capitalista e a constituição do moderno sistema punitivo, evidenciando, que, cada modo de produção desenvolve o seu próprio modo de punição, uma vez que o modo como se pune os indivíduos pela prática de um crime se desenvolve paralelamente ao modo de produção da vida social, expresso pelo grau de desenvolvimento das forças produtivas e das relações sociais de produção, nas quais se manifestam o desenvolvimento do mercado, as relações de poder e as lutas de classes.
Sendo assim, as considerações em torno do funcionamento discurso implicado no contexto laboral jurídico penal não se configuram como recuperação histórica de decisões pretéritas, mas como investimento histórico de provocação das bases de um ordenamento jurídico contemporâneo que gera efeitos deletérios àquelas e àqueles que são alvo de sentenças condenatórias de restrição de liberdade, outro bem jurídico tutelado pelo Direito Penal cujo valor inestimável deve ser preservado para todo e qualquer cidadão.
Se os princípios em que se sustentam as sentenças jurídicas não estão desvinculados das relações de estabilidade/instabilidade em permanente movimento no (re)ordenamento social, cada situação singular em que uma sentença é proferida é parte constituinte do jogo de forças na tensão entre a manutenção e a transformação das condições sociais de existência/resistência. Essa atividade, portanto, não se constitui apenas como ação técnica de operação das normas do Direito, mas, como toda atividade, uma conduta com implicações éticas e políticas, de modo que a reflexão sobre suas condições e seus efeitos deve ser também parte do exercício laboral jurídico.
Por sua vez, se o exercício laboral jurídico é um exercício enunciativo, a compreensão das implicações éticas e políticas da atividade no campo jurídico passam por incluir nessa dimensão reflexiva os efeitos das e nas práticas discursivas.
Voltando ao conteúdo normativo da Súmula 610-STF, objeto sobre o qual conduzimos a discussão neste artigo, sua revisão necessária apontada por Moreira et al. (2019) é parte desse imperativo técnico, ético e político que deve orientar o exercício laboral jurídico. O aprofundamento a que nos propomos aqui das razões pelas quais essa revisão se torna necessária orienta para a defesa de que esse imperativo técnico, ético e político exige uma conjunção de visadas disciplinares sobre a atividade humana. Todo esse esforço se coloca a serviço de denunciar e de superar injustiças e desigualdades, próprias a uma racionalidade capitalista e racista predominante nas ordens institucionais a que estamos subordinados e que não podem continuar sendo ignoradas. Desse modo, entendemos que nosso artigo se soma a iniciativas também contemporâneas de provocar discussões urgentes sobre pautas relevantes para uma transformação da ordem social em bases mais democráticas.