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Lingüística

versión On-line ISSN 2079-312X

Lingüística vol.39 no.2 Montevideo dic. 2023  Epub 18-Oct-2023

https://doi.org/10.5935/2079-312x.20230019 

Artigo

A NEGAÇÃO EXISTENCIAL NAS LÍNGUAS NATIVAS DO BRASIL

LA NEGACIÓN EXISTENCIAL EN LENGUAS INDÍGENAS DE BRASIL

THE EXISTENTIAL NEGATION IN NATIVE LANGUAGES OF BRAZIL

Marize Mattos Dall'aglio Hattnher, Concepção, Levantamento de dados, Análise e a redação do artigo1 
http://orcid.org/0000-0002-8797-4160

Monielly Serafim, Concepção, Levantamento de dados, Análise e a redação do artigo2 
http://orcid.org/0000-0002-6739-3799

Vítor Henrique Santos da Silva, Concepção, Levantamento de dados, Análise e a redação do artigo3 
http://orcid.org/0000-0003-4649-2170

1Universidade Estadual Paulista/Câmpus de São José do Rio Preto, marize.hattnher@unesp.br

2Universidade Estadual Paulista/Câmpus de São José do Rio Preto, monielly.serafim@unesp.br

3Universidade Estadual Paulista/Câmpus de São José do Rio Preto, vitor.silva@unesp.br


Resumo

As chamadas “construções existenciais” são comuns a várias línguas do mundo, ainda que possam ter formas e funções bastante diversificadas. Entre essas línguas, verifica-se a presença de um tipo específico de marcador, que afirma a não existência de um elemento.

Esse fenômeno, chamado de “negação existencial”, difere de um caso de negação de predicado, em que uma marca simples de negação torna a sentença negativa. O presente trabalho analisa a negação existencial em 21 línguas nativas do Brasil, verificando i) a relação entre a forma de expressão da negação existencial (lexical ou gramatical) e a forma da marca da existência positiva; ii) a sobreposição entre existência, localização e posse. Entre outros resultados, foi possível mostrar que, ainda que um paralelismo formal entre existência e inexistência não seja obrigatório, o estatuto gramatical da forma de expressão da negação existencial sempre pressupõe o estatuto gramatical da construção existencial.

Palavras-chave: negación existencial; localización; posesión; lenguas indígenas; tipología

Resumen

Lo que se denomina "construcciones existenciales" es común a varias lenguas del mundo, aunque tenga formas y funciones muy diversificadas. En estas lenguas se encuentra un tipo específico de marcador que indica la inexistencia de un elemento.

Este fenómeno, denominado "negación existencial", difiere de la negación de predicado, en que una marca simple de negación torna la frase negativa. Este trabajo analiza la negación existencial en 21 lenguas indígenas de Brasil, para verificar i) la relación entre la forma de expresión de la negación existencial (léxica o gramatical) y la forma de la marca de la existencia positiva; ii) la superposición entre existencia, localización y posesión. Entre otros resultados, se demostró que, aunque no es obligatorio un paralelismo formal entre existencia y no existencia, el estatuto gramatical de la forma de expresión de la negación existencial siempre presupone el estatuto gramatical de la construcción existencial.

Palabras clave: negação existencial; localização; posse; línguas indígenas; tipologia

Abstract

The so-called “existential constructions” are common to several languages around the world, although they can have quite different forms and functions. Among those languages, a specific type of marker that affirms the non-existence of an element is verified.

This phenomenon, called “existential negation”, differs from a case of predicate negation, in which a simple negation turns the sentence into a negative one. The present work analyzes existential negation in 21 native languages of Brazil, verifying i) the relationship between the existential negation form of expression (lexical or grammatical) and the form of positive existence marker; ii) the overlap between existence, location and possession. Among other results, it was possible to show that, although formal parallelism between existence and non-existence is not mandatory, the grammatical status of the expression of existential negation form always presupposes the grammatical status of the existential construction.

Keywords: existential negation; location; possession; indigenous languages; typology

1. Introdução

Ainda que com usos bastante diversificados, é possível identificar, em uma análise translinguística, construções que, nos termos de McNally (2012: 1829), são normalmente empregadas “para expressar uma proposição sobre a existência ou a presença de alguém ou algo”, as chamadas “construções existenciais”, como em (1) e (2):

1 Ofayé (Silva, 2012: 74)

tegi ta- ϕwa: akəhat ənke

assim 1pl existir poucos prs.narr

‘Assim, nós somos poucos agora.’

2 Matsés (Fleck, 2003: 966)

tsësio-bo ic-e-c

velho.homem-pl ex2-nonpst-ind

‘Há homens antigos presentes.’

Em (1), a existência é afirmada por meio de um verbo lexical que indica a existência do sujeito; já em (2), a existência é expressa pela cópula ic.

Analogamente, também é possível identificar um tipo específico de construção que afirma a inexistência de algo, como no seguinte exemplo.

3 Kotiria (Stenzel, 2013: 425)

~bari+ré chéa ~badía+ra ~dí+a

1pl.inc+obj comida neg.ex3+vis.impf.2/3 dizer+ass.prf

“’Não há comida para nós’, ele disse.”

Em (3), observa-se a presença de um verbo estativo inerentemente negativo que significa “inexistir”. Segundo Stenzel (2013: 202), a negação existencial é uma característica comum das línguas tukano orientais, sendo possível encontrar verbos estativos cognatos também nas línguas desano, tuyuca e tukano.

É importante frisar que a negação existencial se configura como um tipo específico de construção, que afirma a não existência de um elemento, e difere, portanto, de um caso de negação de predicado, em que uma marca simples de negação torna o enunciado negativo, como se vê em (4):

4 Kanoê (Bacelar, 2004: 249)

u-ro-e tsi ni-k-e-re masaka-o atso-ni

comer-CLV-NLZ ter 3-NEG-DECL-AUX Aikanã-POSS aldeia-OBL

‘Não há comida na aldeia dos Aikanã.’

A diversidade de formas de expressão e de sentidos da negação existencial leva a alguns questionamentos: i) a negação existencial ocorre apenas em línguas que têm marcas morfológicas para a afirmação positiva da existência? ii) existe relação entre a forma de expressão da negação existencial (lexical ou gramatical) e a forma da marca da existência positiva na língua? iii) a sobreposição entre existência, localização e posse, frequente nas construções existenciais, também ocorre na negação existencial?

Para responder a essas questões, analisamos uma amostra inicial composta por 60 línguas nativas do Brasil, dentre as quais 21 marcam a negação existencial. A discussão dessas línguas neste trabalho está organizada da seguinte maneira: na seção 2, retomamos brevemente alguns estudos que discutem as construções existenciais, para situarmos o fenômeno da indicação da negação existencial; na seção 3, discutimos a composição da amostra e os parâmetros de análise da expressão da negação existencial; na seção 4, ilustramos os tipos de combinatória entre formas de expressão da existência e da inexistência presentes na amostra e, na seção 5, fazemos algumas generalizações sobre esses tipos; na seção 6, apresentamos brevemente a análise da superposição da expressão da negação existencial com os valores de localização e posse; na seção 7, mostramos três línguas em que os marcadores de negação existencial se encontram em processo de lexicalização; e, por fim, apresentamos algumas considerações finais.

2. A expressão da existência e da negação existencial

A indicação da existência é comumente tratada no âmbito da localização e da posse, por serem consideradas relações similares. A esse respeito, Hengeveld (1992: 96-97) afirma que, em diversas línguas, os predicados existenciais são predicados locativos em que a localização não é expressa. Por essa razão, o autor considera as predicações existenciais como um subtipo das locativas. Langacker (2009: 98) também mostra que, em muitas línguas, a expressão da posse é feita por predicados de localização ou predicados existenciais. Conforme veremos, essa sobreposição de valores também pode ser encontrada com a negação existencial.

Um predicado existencial pode ser negado por uma negação padrão, conforme mostramos em (4), em que um marcador de negação inverte a polaridade de uma predicação (no caso, a afirmação da existência de comida), tornando o enunciado negativo. A negação existencial, entretanto, difere da simples negação da predicação, na medida em que ela afirma a inexistência de uma entidade ou de um evento. De acordo com Seydi (2020: 648)

The most important semantic feature of negative existentials is that they predicate the absence of an entity in a very categorical way rather than negate its existence. This means it is not the opposite of existential categorically. It is the only absence of existence. In other words, negative existentials eliminate the existence of what is presupposed to exist4.

Esse tipo de negação, segundo Veselinova (2013), é extremamente comum translinguisticamente, sendo possível encontrar semelhanças semânticas, morfossintáticas e na origem do existencial negativo. A autora afirma que o existencial negativo pode ser usado com um grande número de outras funções, como a indicação de ênfase, de tempo, de privativo, entre outras, além da indicação de posse e localização, também presente nos existenciais afirmativos.

Dada a sobreposição entre localização e existência, Veselinova (2013) verifica que há uma tendência translinguística de existenciais negativos utilizados em sentenças locativas negarem categoricamente a existência de uma entidade. Essa situação é diferente da negação de uma localização, em que se pressupõe um contraste: no caso de não há um livro sobre a mesa, por exemplo, a presença da entidade é negada em um determinado lugar, mas há a pressuposição de um contraste, indicando que há um livro em outro lugar. Há ainda, de acordo com a autora, línguas em que um existencial negativo não pode ser usado para negar predicações locativas, sugerindo que a codificação da negação existencial, nessas línguas, é ainda mais aparente, como é o caso do turco.

Em relação a semelhanças morfossintáticas entre os existenciais negativos, Veselinova (2013) afirma que normalmente esses itens não se enquadram em classes morfológicas mais amplas, sendo necessário separá-los em uma classe de palavras própria

Quanto à origem dos existenciais negativos, a autora aponta que geralmente eles resultam i) de um processo de coalescência, ii) da combinação de um marcador de negação e de um item lexical que é parte da construção existencial, ou iii) de reanálise de um item de sentido negativo.

A respeito dos processos de mudança de que participam os existenciais negativos, Croft (1991) os inclui no Ciclo da Negação Existencial, em que existenciais negativos dão origem à negação padrão. O autor considera que é possível identificar, em estado sincrônico, os seguintes padrões envolvendo a negação verbal e os existenciais negativos:

Tipo A: A negação da predicação existencial é feita por um marcador de negação

Tipo B: A negação do predicado existencial é feita por um marcador exclusivo de negação existencial

Tipo C: Há um predicado de negação existencial idêntico ao marcador de negação verbal.

Há ainda três tipos intermediários em que existe variação entre as formas A~B, B~C e C~A, o que indica a direcionalidade da mudança da seguinte maneira:

A>B: em que surge o existencial negativo;

B >C: em que o existencial negativo se torna o negador verbal;

C>A: em que um novo padrão existencial emerge, “restaurando uma construção negativa+existencial ‘regular’” (Croft, 1991: 6, tradução nossa)5.

Croft (1991) considera o estágio B~C o passo mais importante para confirmar sua hipótese de direcionalidade. Com relação ao estágio B~C, ele mostra que a mudança pode acontecer de várias maneiras: i) o existencial negativo é usado no lugar do marcador de negação verbal; ii) o existencial negativo é usado para reforçar o marcador de negação verbal; iii) o marcador de negação existencial substitui o de negação verbal apenas em parte do sistema gramatical de uma língua (para negar certos tempos ou aspectos, por exemplo). Em certa medida, algumas dessas sobreposições são encontradas também no trabalho de Veselinova (2013), embora a autora não se dedique ao estudo da mudança diacrônica.

3. Composição da amostra e critérios de análise

Com o objetivo de descrever a negação existencial em línguas indígenas brasileiras, identificamos, no material descritivo disponível de 60 línguas (gramáticas, teses e dissertações), a descrição consistente do fenômeno da negação existencial em 21 línguas, provenientes de 10 famílias distintas e uma língua isolada, distribuídas segundo a classificação proposta por Rascov (2020). As línguas analisadas aparecem sublinhadas na Figura 1:

Figura 1 Classificação das línguas em famílias e troncos (elaborado pelos autores) 

FAMÍUAS LÍNGUAS

Tronco Macro-Jê

Ofayé

Rikbaktsá

apinaié, kainqánq, kayapó., krahô, akwén

ofayé

rikbaktsá

Tronco Tupi

Arikem

Mawé

Ramarama

Tuparí

Tupi-Guarani

kariti ána

mawé

káro

tuparí, wayoró

asuriní de Tocantins, araweté, quajá, guarani mbyá. kaapor, kamaiurá, kayabí, kokáma, nheenqatú, tenetehára

Outras famílias linguísticas

Arawák

Bororo

Karib

Pano

Tukano

Arawá

Naduhup

Nambikwara

Txapakúra

Yanomámi

Guaikurú

Mura

apurinã, baré, méhinaku, tariana, terena

bororo

aparaí. hixkaryana, tiriyó, wai-wai, wayana

matís, matsés, shanenáwa, yamináwa

desano, kotiria, cubeo, pirá-tapuya, tukano

jarawara, kulina, paumarí

dâw, hup, nadëb, yuhúp

mamaindê; sabanê

warí'

sanumá, yanomami, yanomán

kadiwéu

pirahã

Isoladas

Isolada

kanoê, kwazá, trumai

No material descritivo das demais línguas, ou não encontramos menção à expressão da xistência e/ou da inexistência; ou, se a encontramos, não foi possível determinar a natureza lexical ou gramatical do(s) elemento(s); ou a inexistência não apresenta uma marca específica, porque a língua faz uso apenas da negação oracional para negar um predicado existencial, como em (4).

A fim de responder às perguntas de pesquisa elencadas na seção 1, analisamos a expressão da existência e da negação existencial nas 21 línguas da amostra de acordo com os seguintes parâmetros:

a) Forma da negação existencial:

A negação existencial pode ser expressa por itens lexicais, como um verbo ou um advérbio. Além disso, a negação existencial também pode ser expressa por itens gramaticais, como um afixo, um verbo cópula ou uma partícula gramatical.

b) Forma de expressão da existência

Para verificar se a expressão da negação existencial é determinada pelo tipo de construção existencial presente na língua, identificamos também a forma de expressão da existência, se lexical ou gramatical.

A expressão lexical da existência pode ser feita por verbos existenciais ou por advérbios; a expressão gramatical da existência pode ser feita morfologicamente, por meio de afixos, cópula, partículas, ou sintaticamente, por uma ordenação de constituintes específica, por justaposição de sintagmas e por padrões particulares a predicações não verbais existenciais/locativas/possessivas.

c) Sentidos adicionais da negação existencial: ausência de localização e de posse

A fim de verificar se, nas línguas da amostra, é produtivo o uso da negação existencial em outras funções, como ausência de localização e posse, nós nos atentamos à possibilidade de as marcas analisadas indicarem também esses sentidos. Veselinova (2013) atesta, em seus dados, que localização e posse são umas das funções mais comuns que os existenciais negativos também expressam, daí nosso interesse em descobrir se as línguas de nossa amostra funcionam de maneira semelhante.

O cruzamento entre os critérios (a) e (b) são suficientes para responder se a negação existencial ocorre apenas em línguas que têm marcas morfológicas para afirmar a existência e se há relação entre a forma da negação existencial (lexical ou gramatical) e a forma da marca da existência positiva. Já o critério (c), ao mostrar se há possibilidade de superposição de sentidos, contribui para corroborar ou não uma afinidade semântica já apontada em trabalhos anteriores.

4. A expressão da existência e da inexistência

4.1. Tipo 1: línguas com expressão gramatical da negação existencial

A forma mais frequente de expressão da negação existencial, na amostra analisada, é por meio de uma marcação gramatical. Identificamos 10 línguas em que a negação existencial se expressa gramaticalmente e, em todas elas, a afirmação da existência também se faz por meios gramaticais. No entanto, há certa variação nos marcadores que essas línguas empregam para veicular ambas as funções, podendo a negação existencial ser expressa:

a) por afixos

Em wayána (Tavares, 2005), há um “adverbializador existencial”, o qual se trata de um sufixo que se prende a radicais nominais para indicar a existência de uma entidade:

5 Wayána (Tavares, 2005: 385)

mïwu-ppe ehiike

sangue-ex.advr porque

‘Porque havia sangue (naquilo).’

De forma análoga, o sufixo -mna indica a inexistência de uma entidade, como mostra o exemplo em (6):

6 Wayána (Tavares, 2005: 388)

lome ïmë-mna

mas fazenda-neg.ex

‘Mas não (havia) fazenda.’

b) por cópula

O matsés (Fleck, 2003) ilustra línguas em que a afirmação da existência e a afirmação da inexistência podem ser feitas por meio de cópulas. Os exemplos a seguir apresentam o uso mencionado:

7 Matsés (Fleck, 2003: 966)

tsësio-bo ic-e-c

homem.velho.pl ser-nonpst-ind

‘Há homens velhos presentes. [presente histórico].’

8 Matsés (Fleck, 2003: 966)

dunu nidëb-o-sh nëid ted ic-o-sh que-onda-sh

nome neg.ex-PST-3 este todos.os.que ser-pst-3 dizer-dist.pst-3

“‘Não há um Dunu (entre meu povo), estes (os seguintes) são todos os que existem’, ele disse. (subsequentemente, lista os nomes).”

Em (7), para indicar que uma entidade existe, um falante de matsés emprega a cópula ic-; por outro lado, em (8), para afirmar que algo não existe, usa nideb-.

O yanomán, além de dispor de cópulas para afirmar a existência (9) e a inexistência (10) de uma entidade, ainda apresenta outra estratégia gramatical para expressar a existência (11), que, segundo Ferreira (2017), é formalmente uma predicação atributiva, feita a partir de uma derivação por meio de ni= [...] =pë:

9 Yanomán (Ferreira, 2017: 458)

yokoto ahate =hami ware kiki= ku =a

pântano perto =obl queixada cln:coletivo= ex =post

‘Os queixadas estão perto da lagoa.’

10 Yanomán (Ferreira, 2017: 539)

kama a thuwë =pë ma =o paxi =o =wei

3 3sg= mulher =vblz neg.ex =stv ser.óbvio =stv =nmlz

‘A esposa dele não existe [...] (isto é, ‘Ele não tem esposa’).’

11 Yanomán (Ferreira, 2017: 458)

hei pata u= ni= yuri =pë

este grande cln:lÍquido= v.ptc= peixe =vblz

‘Existem peixes neste rio’ (Lit. “Este rio está ‘peixado’”).

c) por partículas

O tiriyó (Meira, 1999), assim como as outras línguas mencionadas, marca, por meios gramaticais, a afirmação da existência e da inexistência. No entanto, diferentemente do matsés e do yanomán, usa partículas para expressar os dois sentidos, como mostram os exemplos (12) e (13):

12 Tiriyó (Meira, 1999: 544)

tüka tëërë

tabaco ex

‘Há tabaco.’

13 Tiriyó (Meira, 1999: 544)

kana wa-ken

peixe neg.ex-cont

‘Não há peixes.’

O hup (Epps, 2008), como o tiriyó, expressa gramaticalmente a inexistência por meio de uma partícula, p ; por outro lado, a marcação da existência é feita pela cópula ní.

14 Hup (Epps, 2008: 385)

?ám=?íp -ĩy tih?

2sg = pai ex-dyn 3sg

‘Seu pai está aqui?’

15 Hup (Epps, 2008: 738)

tíyiˇ? poˇg ˇ

homem grande neg.ex

‘Não há homem grande.’

O hup mostra que existência e inexistência não precisam necessariamente ser marcadas pelo mesmo tipo de elemento morfológico, o que responde nossa segunda pergunta de pesquisa.

d) Marcação sintática

Além dos três subtipos exemplificados até aqui, definidos a partir da natureza morfológica do elemento que marca a inexistência, apresentamos, em uma categoria à parte, línguas em que a existência é marcada por meio sintáticos e a inexistência, por uma marca morfológica gramatical. A presença dessas línguas na amostra responde nossa primeira pergunta de pesquisa, e mostra que, apesar de frequente, um paralelismo formal entre existência e inexistência não é necessário.

O apinajé é um exemplo de língua que marca sintaticamente a existência por meio de um sintagma locativo seguido de um sintagma nominal normalmente acompanhado de um quantificador, como pi ‘apenas’, em (16):

16 Apinajé (Oliveira, 2005: 248)

go kaprε ə̄ na rõr=ko pč

água ao.longo loc rls babaçu=canteiro apenas

‘Há babaçu ao longo da margem do rio.’

Já a negação pode ser expressa por amrakati, forma exclusiva para expressar a negação existencial (17).

17 Apinajé (Oliveira, 2005: 248)

pičo=rə̄ rərə=rε na já=ri amrakati

planta=flor amarelo=dim rls aqui neg.ex

‘Não há flores amarelas por aqui.’

O kamaiurá também exibe um comportamento similar: as predicações existenciais contêm um nome na função do que Seki (2000) chama de “sujeito de verbo descritivo” e um sintagma adverbial (18), e as construções de inexistência contêm a partícula anite (19).

18 Kamaiurá (Seki, 2000: 164)

wararuwijaw-a pcm

cachorro-N lá

‘Lá tem cachorro.’

19 Kamaiurá (Seki, 2000: 164)

anite ipira a'e -p

neg.ex peixe dist-loc

‘Lá não tem peixe.’

4.2. Tipo 2: línguas com expressão lexical da negação existencial

Quando a negação existencial é expressa lexicalmente, duas combinatórias foram encontradas no córpus:

a) expressão lexical tanto da negação existencial quanto da existência positiva

Este tipo diz respeito a línguas em que há verbos lexicais para indicar a existência e a inexistência. Wayoró (Nogueira, 2019) ilustra essa configuração, já que o verbo irregular mbiro indica existência (20) e o verbo ‘ am indica a inexistência (21).

20 Wayoró (Nogueira, 2019: 165)

amẽko vermelho ngwendap mbiro

onça vermelho tamanduá existir

‘Tem onça vermelha, tamanduá.’

21 Wayoró (Nogueira, 2019: 170)

mãkatxi... ndeke emõ ‘am

mãkatxi... 3sg emph inexistir

‘Mãkatxi (abacaxi), esse mesmo não tem/existe (palavra em Wayoro).’

Chama atenção, em algumas línguas desse tipo, o fato de os verbos que indicam existência e inexistência apresentarem certas restrições quando comparados a outros da mesma língua. Em wayoró, por exemplo, Nogueira (2019) afirma que mbiro não recebe vogal temática nem marcas de tempo, além de não haver coocorrência entre esse verbo e o morfema causativo; sobre ‘ am, a autora explica que o verbo não recebe vogal temática nem marcas de tempo, não ocorre com prefixos e clíticos pessoais nem aceita morfema de negação. Restrições semelhantes são observadas em kulina (Dienst, 2014), em que o verbo que indica a existência (22), ani, apesar de fazer acordo de número e gênero, por aceitar sufixos, não ocorre com prefixos de pessoa ou classes nominais. Aparentemente, o mesmo não se aplica para o verbo que expressa inexistência, nowe (hi)ra- 23).

22 Kulina (Dienst, 2014: 234)

abi ani i

meu/seu.pai existir-decl.m

‘Tenho pai.’

23 Kulina (Dienst, 2014: 235)

bani nowe Ø-ra-hari

carne inexistir 3-aux-nar.m

‘Não há carne.’

b) Negação existencial lexical e expressão existencial sintática

A indicação lexical da negação existencial também pode ocorrer em línguas em que a indicação da existência é feita por uma estratégia sintática, como é o caso do krahô:

24 Krahô (Miranda, 2014: 173)

ko ita ø-kham ro?-ti

água dem r1-loc sucuri-intens

‘No córrego existe sucuri.’

25 Krahô (Miranda, 2014: 172)

ko ø-kham ro?-ti j-amrẽa

água r1-loc sucuri-intens r1-neg.ex

‘No córrego não existe sucuri.’

Como se observa em (24), não há marca morfológica para indicar uma predicação existencial. A codificação da existência é feita por meio da justaposição de um sintagma locativo e um sintagma nominal, enquanto a negação existencial se expressa pelo advérbio amrẽarε.

5. Tipos de línguas identificados

A descrição da negação existencial feita até aqui procurou observar também as formas de construção existencial presentes nas línguas, tendo em vista nosso objetivo de verificar se a forma da negação existencial é afetada, de algum modo, pela forma de expressão da existência afirmativa. Para discutir essa questão, após apresentarmos, na Tabela 1, as combinatórias encontradas nas línguas da amostra, sintetizamos, na Tabela 2, as possibilidades de combinação identificadas.

Tabela 1 Formas de expressão da existência e da inexistência nas línguas analisadas (elaborado pelos autores) 

Lingua Existência gramaticalmente marcada Existência lexicalmente marcada
Inexistência gramatical Inexistência lexical Inexistência lexical Inexistência gramatical
Apinajé + - - -
Desano + - - -
Hup + - - -
Kamaiurá + - - -
Matis + - - -
Matsés + - - -
Tiriyó + - - -
Trumai + - - -
Wayana + - - -
Yanomán + - - -
Dâw - + - -
Kotiria - + - -
Krahô - + - -
Tuparí - + - -
Kulina - - + -
Sanurná - - + -
Warí' - - + -
Wayoró - - + -

Tabela 2 Combinação entre marcas gramaticais e lexicais da existência e da inexistência (elaborada pelos autores) 

Tipos Combinatória TOTAL
Tipo I existência gramatical + inexistência gramatical 10
Tipo II existencia gramatical + inexistencia lexical 4
Tipo III existência lexical + inexistencia lexical 4
*Tipo IV existência lexical + inexistência gramatical 0
TOTAL 13

Na Tabela 1, estão ausentes três das 21 línguas que possuem uma marca específica de negação existencial, a saber, kokáma, guajá e nheengatú. Ainda que essas línguas disponham de existenciais negativos, eles concorrem com outra alternativa para afirmar a inexistência de algo, que é a simples negação do predicado existencial. Nas três línguas, as construções concorrentes existem devido a processos de mudança linguística, principalmente o que é descrito como lexicalização. Tendo em vista que o guajá, o kokáma e o nheengatú dão espaço para uma interessante discussão sobre o surgimento de marcas de negação existencial, assim como sobre a especialização de diferentes estratégias que indicam inexistência, essas línguas são analisadas separadamente na seção 7. Feita essa ressalva, e considerando as possibilidades de combinação entre as marcas lexicais e gramaticais da existência e da inexistência, chegamos aos seguintes tipos de língua:

Os resultados da Tabela 2 mostram que, das quatro combinatórias possíveis, apenas três se verificam na amostra: quando a existência é marcada gramaticalmente, é possível que a negação existencial se expresse tanto gramatical quanto lexicalmente; por outro lado, quando a existência é codificada lexicalmente, a negação existencial é necessariamente veiculada por meios lexicais.

A ausência de línguas que expressam lexicalmente a existência e gramaticalmente a negação existencial está de acordo com a assunção de que uma noção positiva é menos marcada que uma noção negativa (Seydi, 2020). Em línguas como o krahô, a existência pode ser expressa pela simples justaposição de sintagmas, não exigindo qualquer tipo de marca morfológica. Se, por outro lado, a negação existencial fosse expressa por justaposição de sintagmas, e a existência exigisse o uso de um elemento lexical (o que seria uma possibilidade hipotética para o tipo IV), a assunção mencionada anteriormente estaria contrariada, pois morfologicamente a noção negativa seria menos marcada do que a positiva.

Outra configuração hipotética do tipo IV seria o uso de elementos gramaticais, como afixos ou partículas, para marcar a negação existencial, e de um elemento lexical, como um verbo, para marcar a existência. No entanto, considerando o que se sabe sobre outros fenômenos linguísticos, isso seria incomum, já que há uma prioridade dos sentidos positivos sobre os negativos, como ilustra o estudo de Hengeveld et al. (2007) sobre ilocuções. De acordo com os autores, se uma língua apresenta uma ilocução negativa, como a proibitiva ou a desortativa, essa língua necessariamente apresenta a contraparte positiva dessa ilocução (que seriam a imperativa e a hortativa, nesse caso). O contrário, porém, não é válido: é perfeitamente possível que uma língua marque as ilocuções positivas sem que haja meios especializados para expressar as ilocuções negativas. Essa restrição corrobora o fato mais geral de que o sentido negativo pressupõe o positivo, um fator que é relevante para a gramática das línguas.

Veselinova por outro lado, defende que a existência de uma marca de negação existencial especializada não está condicionada à existência de uma marca gramaticalizada da existência:

Observe that the occurrence of a special negative existential does not necessarily correlate with the occurrence of a grammaticalized affirmative existential. Rather, it is fully possible for a language not to have a grammaticalized existential construction, but to exhibit a special expression for the negation of existence6. (Veselinova, 2013: 117)

Apesar de aparentemente contraditórios, nossos resultados e os da autora podem ser conciliados: de fato, pode haver uma marca morfológica da negação existencial sem que haja uma marca morfológica da existência, como acontece no apinajé e no kamaiurá. No entanto, a indicação da existência por meios sintáticos, como justaposição de sintagmas ou padrões de ordenação específicos, pode ser considerada um mecanismo gramatical de expressão dessa noção. Portanto, ao menos nas línguas de nossa amostra, uma marca morfológica da negação existencial não pressupõe uma marca morfológica da existência; por outro lado, o estatuto gramatical da construção de negação existencial pressupõe o mesmo estatuto da construção existencial.

6. Relação entre a negação existencial e a expressão de localização e posse

Em relação aos sentidos de localização e posse, verifica-se que, assim como ocorre com as construções existenciais (Langacker, 2009; Hengeveld, 1992; Veselinova, 2013), as formas de expressão de negação existencial também podem indicar negação locativa e negação de posse, como se observa em várias línguas da amostra:

Tabela 3 Relação entre negação existencial, localização e posse (elaborado pelos autores) 

Língua Superposição entre negação existencial e
localizaçao posse
Apinajé + -
Desano - +
Kotiria - +
Matsés + +
Dâw (+) -
Krahô + -
Wayoró + +

Esse é o caso, por exemplo, da língua apinajé (Oliveira, 2005), em que as construções existenciais positivas e negativas são semelhantes às construções locativas, sendo a única diferença o fato de o verbo ser dispensado nas construções locativas. Os únicos elementos necessários são a localização e o referente localizado, que vem tipicamente acompanhado pelo existencial negativo amrakati, como se vê em (26):

26 Apinajé (Oliveira, 2005: 248)

pičo=rə̄ rərə=rε na ja=ri amrakati

Planta=flor amarelo=dim rls aqui neg.ex

‘Não há flores amarelas por aqui.’

A mesma aproximação entre os valores semânticos de existência e localização pode ser observada em matsés, em que a forma nibëd pode ser usada para indicar existência negativa ou localização negativa (27). A única diferença entre essas construções é que, na negação existencial, a localização não precisa ser especificada.

27 Matsés (Fleck, 2003: 965)

actiacho-n-quio isan nibëd-e-c

floresta.de.planície.de.inundação-loc-aug espécie.de.palmeira neg.ex-non.past.ind

‘Nas verdadeiras florestas de planície de inundação, não há palmeiras isan.’

Fleck (2003: 968) observa que, apesar dessa superposição, a cópula indicadora de negação existencial também pode aparecer sozinha, como mostra (28b), no diálogo abaixo:

28 a Matsés (Fleck, 2003: 968)

ada debi ic-e-c

uncert Davy estar-non.past-ind

‘O Davy está lá?’

b nibëd-e-c

neg.ex-non.past-ind

‘Ele não está.’

Nogueira (2019: 170) faz uma interessante observação sobre o existencial negativo ‘ãam em wayoró, explicando que o verbo tem uso monoargumental quando indica existência negativa (29) e uso biargumental quando indica posse (30):

29 wayoró (Nogueira, 2019: 172)

o-ngõ 'ãam

1sg-criação inexistir

‘Não há minha criação.’

30 wayoró (Nogueira, 2019: 170)

en ngoyoto ´ãam nẽ

você feijão inexistir interr

‘Você não tem feijão?’

Como se observa, a negação existencial mantém a mesma relação com a semântica da localização e posse que mantêm as construções existenciais. Nossos dados, nesse sentido, corroboram os achados de Veselinova (2013), que já havia atestado tais superposições entre negação existencial e ausência de posse e localização em sua análise. De um modo geral, pode-se dizer que, em algumas línguas, afirmar que uma entidade está localizada em algum lugar ou que pertence a alguém significa assumir a existência dessa entidade. Da mesma forma, a expressão da negação existencial se superpõe à expressão da ausência de localização e de posse. Essas relações também podem ser entendidas como pistas do processo de mudança pelos quais passam várias formas de expressão da existência.

7. Línguas em processo de mudança

Como mostramos, as línguas diferem na forma de expressão da existência e da não existência. Em relação à não existência, é possível identificar línguas que apresentam um marcador de negação utilizado para negar diversos tipos de predicado, incluindo o existencial, e línguas que apresentam um recurso especializado, geralmente um item gramatical, para a expressão da inexistência. No entanto, em algumas daquelas em que a negação existencial é codificada lexicalmente, os materiais consultados mencionam que esses elementos são fruto de um processo de lexicalização em que se juntam um operador de negação e um item lexical.

Conforme mostramos anteriormente, Croft (1991) identifica três tipos de negação:

  • Tipo A: A negação da predicação existencial é feita por um marcador de negação

  • Tipo B: A negação do predicado existencial é feita por um marcador exclusivo de negação existencial

  • Tipo C: Há um predicado de negação existencial idêntico ao marcador de negação verbal.

Esses tipos são ilustrados, respectivamente, em (31), (32) e (33):

31 Araweté (Solano, 2009: 242)

ina nanĩ tʃipẽ

neg abacaxi um

‘Não tem um abacaxi.’

32 Krahô (Miranda, 2014: 174)

panẽr Ø-khãm j-amrẽarε

panela r1-loc r2 neg.ex

‘Na panela, não existe (algo).’

33 Sanumá (Autuori, 2019: 296)

Totolima=a=nö huwisa=há amatosilemö a=wani=ao ma=o=ma

Totolima=3sg=erg ontem=obl jeju 3sg=depr=comer neg.ex=stv=pst

‘Totolima não comeu jeju (peixe) ontem.’

Dos estágios intermediários em que há variação entre as formas A~B, B~C e C~A, interessa-nos, nesta seção, o estágio intermediário em que há variação A~B.

Na amostra, há três línguas que apresentam essa variação: guajá, kokama e nheengatu. Em guajá, a negação de um predicado existencial pode ser feita por meio do circunfixo n(V)=...7, assim como acontece com outros tipos de predicação, ou pela chamada “partícula-predicado”8na’ax .

34 Guajá (Magalhães, 2007: 246)

na=kwarahý-

neg = sol-neg

‘Não tem sol.’

35 Guajá (Magalhães, 2007: 247)

na'axí kwarahý-a

neg.ex sol-n

‘Não tem sol.’

A similaridade entre as duas marcas indica que o marcador existencial negativo deriva de um predicado negado; entretanto, Cruz afirma não haver dados sincrônicos para atestar qual o predicado base.

No caso do kokama, Vallejos Yopán (2010) afirma que é possível negar a existência por meio da partícula de negação tima, que antecede o verbo emete ‘existir’, ou pela forma temente:

36 Kokama (Yopán, 2010: 446)

tima emete ta maninpiara

neg existir 1sg.m hook

‘There is not my hook [I can’t find my hook].’

37 Kokama (Yopán, 2010: 446)

temente irara=uy pe=ka

neg.ex canoe=pas1 port=loc

‘There were no canoes at the port.’

As duas formas podem ocorrer alternativamente e, de acordo com Vallejos Yopán (2010), não há motivações aparentes que justifiquem o uso de uma ou outra forma.

Por fim, Cruz (2011: 365) afirma que o nheengatú permite a negação do existencial (383838), porém esse recurso é raro na fala, já que os falantes privilegiam a negação das construções existenciais por meio de uma construção com o verbo ver negado (39).

38 Nheengatú (Cruz, 2011: 454)

ti=aikue patawa ike

neg=ex fruta.bacaba aqui

‘Não tem bacaba aqui.’

39 Nheengatú (Cruz, 2011: 456)

kuxima relogiu ti=ya-maã

antigamente relógio neg=1plA-ver

‘Não havia relógio antigamente’ (Lit.: ‘Antigamente, relógio, não víamos’).

É importante diferenciar essas línguas em que as estratégias para expressão da negação da predicação e para a expressão da inexistência são igualmente intercambiáveis (embora uma possa ser mais frequente que outra, apresentando um estágio de lexicalização mais avançado) das línguas em que cada estratégia só é permitida em um contexto específico.

Conforme mostramos anteriormente, o Apinajé permite que a negação da existência seja realizada por meio da forma amrakati, como mostra o exemplo (26), repetido em (404040404040). A língua também permite que a negação da existência seja realizada pelo clítico negativo ket que aparece em posição final nas orações.

Essa marcação, contudo, só pode ser utilizada em um contexto em que o sintagma nominal núcleo do predicado existencial é modificado por uma oração relativa, como mostra (41).

40 Apinajé (Oliveira, 2005: 248)

pičo rə̄ rərə=rε na já=ri amrakati

planta=flor amarelo=dim rls aqui neg.ex

‘Não há flores amarelas por aqui.’

41 Apinajé (Oliveira, 2005: 250)

[n mod]

kɔt=mə̄ [go kagrɔ] ket

ainda água quente neg

‘Não existe água quente ainda.’

Embora haja a possibilidade de utilizar o clítico de negação, essa situação é restrita a um único contexto. O mesmo acontece em wayoró, em que se marca a inexistência por ãam (42), e, apenas em contextos de modalidade irrealis, é que o sufixo de negação -ap pode ocorrer com o existencial mbiro (43).

42 Wayoró (Nogueira, 2019: 170)

mãkatxi ndeke emõ ãam

mãkatxi 3sg enf inexistir

‘mãkatxi (abacaxi), esse mesmo não existe (palavra em Wayoró).’

43 Wayoró (Nogueira, 2019: 168)

txi-ndet-ng-a-p mbiro-ap nẽ

1pl.incl-dar.nome-vzr-vt-nmlz ex-neg irr

‘Nós ainda não existíamos’ (Lit. ‘Ainda não havia nos dado nome’).

Essa situação difere das línguas identificadas anteriormente, isto é, do guajá, kokama e nheengatú, em que a alternância do marcador de negação e do marcador de negação existencial não apresentam restrições de contexto de ocorrência. Se, por um lado, em apinajé e em wayoró, as duas formas de negação estão especializadas em contextos linguísticos específicos, por outro, em guajá, kokama e nheengatú as formas para expressão da inexistência são itens lexicais em concorrência com a forma de negação gramatical das predicações da língua.

8. Considerações finais

Como visto, os recursos para expressar a negação existencial são bastante variados nas línguas da amostra, podendo ser expressos a partir de afixos, cópulas, partículas e verbos lexicais. A esse respeito, a análise das línguas revela que o mesmo tipo de recurso morfológico pode ser usado para indicar ambos os sentidos (“cópula x cópula”/matsés; “partícula x partícula”/matís, etc.), mas também que a combinatória de estratégias distintas é possível (“cópula x partícula”/hup; sintaxe x partícula/kamaiurá, etc.).

Ainda a respeito da diferença na expressão da existência e da negação existencial, observa-se que línguas com expressão gramatical da existência podem expressar a negação existencial tanto por estratégias gramaticais (hup, desano, tiriyó, entre outras) quanto lexicais (dâw, krahô, tupari), embora a expressão gramatical da negação existencial sempre pressuponha a expressão gramatical da existência. Já as línguas que têm expressão lexical da existência apresentam apenas negação existencial também lexical (kulina, sanumá, warí e wayoró). Além disso, embora a existência possa ser expressa por meio de padrões sintáticos, sem nenhum recurso morfológico específico, a negação existencial necessariamente apresenta um recurso morfológico.

Em relação aos sentidos de localização e posse, verifica-se que, assim como ocorre com as construções existenciais, as formas de expressão de negação existencial também podem indicar negação locativa e negação de posse, como ocorre, por exemplo, em wayoró (Nogueira, 2019) e em matsés (Fleck, 2003).

Por fim, mostramos que há línguas em que a emergência de uma marca de inexistência acontece por meio de um processo de lexicalização, conforme prevê Croft (1991).

NOTA:

Este texto ha sido aceptado para publicación por el único Director-Editor de la revista, Adolfo Elizaincín, quien ha actuado de acuerdo a lo establecido en la “Declaración de comportamiento ético" de la revista Lingüística https://www.mundoalfal.org/sites/default/files/revista/Declaracion_comp_etico.pdf), primer párrafo del capítulo “Obligaciones del Director-Editor". A esta declaración deben adherir, explícitamente, el Director-Editor, los árbitros y los autores.

1Uma versão inicial deste trabalho foi apresentada durante um encontro do Workshop Internacional de Tipologia Linguística, atividade realizada dentro do Projeto 25 da ALFAL, em janeiro de 2022. janeiro de 2022.

2Em todas as glosas, padronizamos a indicação gramatical de existência como EX, não ignorando que, em outros contextos, a partícula ou afixo marcada como existencial pode ter outros sentidos, como o de localização ou posse.

3Nas glosas, a indicação lexical da negação existencial foi padronizada de três maneiras: “inexistir” para verbos lexicais; “neg.ex” para outras classes de palavras lexicais; e “NEG.EX” para palavras gramaticais.

4A característica semântica mais importante dos existenciais negativos é que eles predicam a ausência de uma entidade de uma maneira muito categórica, em vez de negar sua existência. Isso significa que não é categoricamente o oposto de existencial. É unicamente a ausência da existência. Em outras palavras, os existenciais negativos eliminam a existência daquilo que se pressupõe existir (tradução nossa).

5Cf. Original: “restoring a ‘regular’ negative+existential construction” (Croft, 1991: 6).

6Observe-se que a ocorrência de um existencial negativo especial não necessariamente se correlaciona à ocorrência de um existencial afirmativo gramaticalizado. Em vez disso, é perfeitamente possível que uma língua não tenha uma construção existencial gramaticalizada, mas que apresente uma expressão especializada para a negação da existência (tradução nossa).

7O mesmo circunfixo está na base da formação de outra partícula-predicado cujo sentido é o de “não encontrar” (naha’új).

8São partículas, porque são invariáveis; e são predicados, porque exigem um argumento no papel de So.

NOTA:

A concepção, o levantamento de dados, a análise e a redação do artigo foram realizadas pelos três autores igualmente.

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Recebido: 31 de Janeiro de 2023; Aceito: 15 de Março de 2023

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