1. Introdução
<Romper a + infinitivo é uma construção que focaliza o ‘começo’ da situação denotada pelo predicado cujo núcleo é a forma verbal de infinitivo.
Este valor, o “inceptivo”, não lhe é, contudo, exclusivo. Com efeito, (i) <começar a + infinitivo> e <principiar a + infinitivo>, (ii) <desatar a + infinitivo>, <deitar a + infinitivo>, <largar a + infinitivo>, <deitar-se a + infinitivo>, <botar-se a + infinitivo> e <desandar a + infinitivo>, (iii) <entrar a + infinitivo> e <entrar + gerúndio>, (iv) <pegar a + infinitivo>, (v) <meter-se a + infinitivo>, (vi) <pôr-se a + infinitivo>, <ficar a + infinitivo>, <ficar + gerúndio> e <quedar-se a + infinitivo>, (vii) <recomeçar a + infinitivo>, (viii) <passar a + infinitivo>, (ix) <começar por + infinitivo>, <começar + gerúndio> e <principiar por + infinitivo>1 são as outras vinte e uma construções que também o partilham, prototipicamente. Deste conjunto, há algumas que estão amplamente documentadas (à cabeça, <começar a + infinitivo>), outras consideravelmente (por exemplo, <desatar a + infinitivo>), outras pouco (<meter-se a + infinitivo>) e outras, ainda, muito pouco (é o caso da construção sob escopo: <romper a + infinitivo>).
Por conseguinte, constitui objetivo deste estudo indagar as especificidades da construção, para o que – com base num corpus constituído por material linguístico autêntico, recolhido quase2 exclusivamente em textos literários (e apenas em quatro, mas de diferente autoria), do séc. XX – convoco argumentos vários, tanto de natureza estrutural quanto sintático-semântica. Ou, por outras palavras, e mais precisamente: da explicitação do(s) seu(s) significado(s), do seu caráter mais perifrástico ou menos perifrástico, das possíveis restrições de seleção e, por fim, apresentar os resultados, focalizando, numa breve discussão-síntese, o que ressalta deveras relevante da análise aqui levada a efeito3.
2. Do(s) significado(s): prototípico e específico
Quando abordei esta matéria pela primeira vez, concretamente: que me ocupei de perífrases verbais inceptivas, e em particular da construção sob análise, foi este o texto que escrevi, após a apresentação do corpus-paradigma:
“Romper + a + inf. faz parte de um grupo de construções perifrásticas (as outras são deitar + a + inf., pegar + a + inf., desatar + a + inf. e largar + a + inf.) que se caracteriza por apresentar um paradigma bastante defectivo na norma e ainda por expressar, digamos assim, ‘ingressão abrupta’ de uma ação verbal mais do que o valor aspectual que estamos a estudar. Porém, como a seguir se verá, algumas distinguem-se entre si por coocorrerem preferentemente com este ou aquele tipo de verbos e não com outros. Assim, por exemplo, a perífrase de que estamos a tratar coocorre numa percentagem elevada (cf. os exemplos) com verbos do tipo de gemer, chamar, chorar, ladrar, falar. Em menor percentagem, todavia, também pode coocorrer com outro(s) tipo(s) de verbos: contar, etc.”
(Barroso, 1994: 125)
É evidente que o conteúdo desta citação continua no essencial válido. Contudo, um novo olhar sobre o mesmo objeto constitui por si só uma atualização de relevância, na medida em que contribui para aprofundar o seu conhecimento. É o que vou fazer - pelo menos, tentar.
Dado que <romper a + infinitivo> focaliza o ‘início’ da situação denotada pelo predicado cujo núcleo é a forma verbal de infinitivo, estamos na presença de uma construção aspetual inceptiva ou (diz-se também) de fase inicial. Este é, pois, o seu significado prototípico, o que todas as construções elencadas na introdução partilham sem exceção.
Porém, entre outras propriedades de igual pertinência, distingue-se por lhe acrescentar o(s) significado(s) específico(s) ‘de forma repentina ou brusca’4 e/ou, por vezes, a existência de uma ‘certa contenção prévia’ por parte da entidade referida pelo sujeito5.
O que acabo de afirmar pode ser confirmado, de modo cabal, nas ocorrências que constituem o corpus6 em análise, cujos enunciados (1), com Sujeito animado humano, (2), com Sujeito animado não humano, e (3), com Sujeito nulo, têm, neste momento, a mera função de o ilustrar.
1.1. «A D. Fúfia, que há muitos anos está morta por dizer mal, que nunca se atreveu a dizer mal, e que, quando ia a dizer mal, dizia logo bem de toda a gente, rompe agora a abocanhar todos os ridículos, todos os orgulhos, todas as vaidades: - O que isto consola!…»
8.1. «Um instante Carlos receou que elarompesse a ladrar. Mas a cadelinha, de repente, namorara-se dele, deitada já na cadeira, de patas ao ar, descomposta, abandonando o ventrezinho às suas carícias.»
2.3. «Estávamos calmamente a tomar um café na esplanada e a conversar quando, de repente, rompeu a chover de tal maneira forte, que não tivemos tempo de nos retirar enxutos.»
Para além disso, e no que respeita ao maior ou menor grau de gramaticalização da construção, bem como ainda à sua combinatória e/ou restrições de seleção, as secções que se seguem, por aí se operar com o devido detalhe, explic(it)am e completam aquela outra abordagem (Barroso, 1994).
A propósito do corpus e respetiva organização, impõe-se este esclarecimento: os enunciados que aparecem no corpo do texto, numerados de 1. a 30., são na sua grande maioria imediatamente seguidos de uma outra indicação numérica constituída por um algarismo em negrito, o da esquerda, seguido de outro ‘em não negrito’, o da direita. O primeiro, que teoricamente vai de 1 a 24 (Barroso, 2007: 133-151), indica/significa o ‘tempo verbal’ (simples ou composto) em que a construção aparece; o da direita, o número de ocorrências desta construção em cada tempo verbal, com a finalidade de documentar, sempre que possível, incluindo a ‘pessoa-número’, sobretudo propriedades de natureza sintático-semântico-lexical, a informação que de facto é relevante para a descrição da construção.
Desta feita, e neste corpus, temos ocorrências da construção <romper a + infinitivo nos seguintes tempos verbais: 1. ‘presente’ do ‘indicativo’, 2. ‘pretérito’ ‘perfeito’ do ‘indicativo’, 4. ‘pretérito’ ‘imperfeito’ do ‘indicativo’, 5. ‘pretérito’ ‘mais-que-perfeito’ do ‘indicativo’, 8. ‘pretérito’ ‘imperfeito’ do ‘conjuntivo’ e 12. ‘infinitivo’ ‘pessoal’.
3. Da definição estrutural: perífrase e verbo semiauxiliar
Dado que a construção que se está a descrever é praticamente sempre tratada como perífrase verbal, faz todo o sentido convocar os critérios habitualmente usados para, perante uma sequência no mínimo de duas formas verbais, se poder aquilatar se se está na presença de uma perífrase ou de um grupo verbal, seja este uma expressão feita, seja uma combinação sintática de dois ou mais verbos pertencentes a orações diferentes.
Tais critérios são exclusivamente (ou quase) de natureza sintático-semântica. É nesta base que operam, para o português, por exemplo, Gonçalves e Costa (2002) e, ainda, Raposo (2013). Com efeito, e de acordo com as primeiras (Gonçalves e Costa, 2002), tendo em consideração estes nove critérios,
(i) impossibilidade de coocorrência com orações completivas finitas,
(ii) impossibilidade de substituição do domínio encaixado por uma forma pronominal demonstrativa,
(iii) impossibilidade de coocorrência de duas posições de Sujeito,
(iv) passivas encaixadas sem alteração do significado básico da ativa correspondente,
(v) impossibilidade de ocorrência do operador de negação frásica no domínio não finito,
(vi) ocorrência dos complementos pronominalizados (cliticizados) em adjacência ao verbo auxiliar,
(vii) não seleção do Sujeito,
(viii) coocorrência com qualquer classe aspetual de predicados verbais e
(ix) impossibilidade de ocorrência de modificadores temporais que afetem apenas a interpretação do domínio não finito,
concluem que <ter e haver + particípio passado> são os únicos verbos auxiliares do português ou, usando uma expressão sua (Gonçalves e Costa, 2002: 97), “os auxiliares puros do Português”, porque cumprem todos os requisitos usados para a sua determinação, e que a auxiliaridade “é um fenómeno gradual, no sentido em que, entre os verbos tipicamente auxiliares e os não auxiliares (ou principais), existe um conjunto de verbos cujo comportamento oscila entre o dos primeiros e o dos segundos.” (Gonçalves e Costa, 2002: 49). Os demais (de passiva, temporais, modais, aspetuais), tradicionalmente auxiliares, são considerados pelas autoras como ‘semiauxiliares’, exatamente por não cumprirem o pleno dos critérios cujo elenco acabei de apresentar. Por seu turno, o segundo (Raposo, 2013: 1231) faz esta outra apresentação das propriedades dos verbos auxiliares, colocando à cabeça as de índole semântica, básicas para o autor, no sentido de que estão na origem das demais (duas, assinaladas com as primeiras letras do alfabeto em maiúscula: A e B), seguindo-se-lhes as de natureza sintática (seis, e procedendo talqualmente: C, D, E, F, G e H), de modo discriminado:
(A): Os verbos auxiliares não selecionam argumentos
(B): Os verbos auxiliares podem ocorrer com verbos impessoais em orações simples
(C): Os verbos auxiliares não selecionam orações subordinadas finitas introduzidas pelo complementador que
(D): Os verbos auxiliares não se combinam com um verbo no infinitivo flexionado
(E): Quando o complemento do verbo pleno de uma perífrase verbal é um pronome clítico, este pode ligar-se ao verbo auxiliar
(F): Uma frase ativa transitiva contendo uma perífrase verbal tem o mesmo significado básico da sua contraparte passiva
(G): As frases com perífrases verbais admitem a construção passiva pronominal concordando o verbo auxiliar com o complemento direto da frase ativa correspondente
(H): A negação frásica incide (apenas) sobre toda a perífrase verbal
Depois de as descrever, exemplificando sempre, apresenta, em jeito de síntese, a sua lista de verbos auxiliares do português (Raposo, 2013: 1254-1255), os que exibem, conjuntamente, as propriedades (A), (B) e (H): ter + pp (o auxiliar perfeito), ser + pp (o auxiliar passivo), estar (a) (o auxiliar progressivo), ficar (a) e ir + infinitivo, considerando os demais como verbos semiauxiliares, por exemplo (todos semiauxiliares aspetuais): andar (a), chegar (a), começar (a), continuar (a), passar (a), tornar (a) e voltar (a).
Tomando em consideração o que acaba de ser explicitado, prossiga-se com a aplicação dos seguintes testes (ou provas), que nos vão permitir constatar a manifestação simultânea dos traços ‘semiauxiliar’ de romper a e ‘perifrástico’ de <romper a + infinitivo>:
Teste 1: A forma verbal não finita (o infinitivo) não pode ser substituída nem por um ‘pronome demonstrativo’, como pode ver-se confrontando (5) com (4), nem por um ‘nome de significado análogo’7 (cf. (6) com (4)), nem por uma ‘oração completiva finita’ (cf. (7) com (4)).
4. 4.1. «(...) e quando tentava elevar-se às conversações que ouvia, rompia a chamar ladrões aos republicanos, a celebrar os tempos de D. Isabel, a sua gracia, o seu salero - sendo muito conservadora como todas as prostitutas.»
5. * «(...) e quando tentava elevar-se às conversações que ouvia, rompia aisso (ladrões aos republicanos), aisso (os tempos de D. Isabel, a sua gracia, o seu salero) - sendo muito conservadora como todas as prostitutas.»
6. * «(...) e quando tentava elevar-se às conversações que ouvia, rompiaà chamada (de ladrões aos republicanos), à celebração (dos tempos de D. Isabel, a sua gracia, o seu salero) - sendo muito conservadora como todas as prostitutas.»
7. * «(...) e quando tentava elevar-se às conversações que ouvia, rompia aque chamavam ladrões aos republicanos, aque celebravam os tempos de D. Isabel, a sua gracia, o seu salero - sendo muito conservadora como todas as prostitutas.»
Teste 2: A forma verbal não finita da construção não pode ser focalizada na ‘estrutura enfática de relativo’ (cf. (9) com (8)).
8. 8.1. «Um instante Carlos receou que ela rompesse a ladrar. Mas a cadelinha, de repente, namorara-se dele, deitada já na cadeira, de patas ao ar, descomposta, abandonando o ventrezinho às suas carícias.»
9. * «Um instante Carlos receou que ela a ladraré ao querompesse. Mas a cadelinha, de repente, namorara-se dele, deitada já na cadeira, de patas ao ar, descomposta, abandonando o ventrezinho às suas carícias.»
Teste 3: O infinitivo é a forma verbal responsável pela ‘seleção do Sujeito’, bem como de ‘outros complementos’ (caso existam), e não a forma finita do semiauxiliar romper a (cf. (10), de Sujeito nulo, vazio de conteúdo semântico, pois chover, verbo meteorológico, não seleciona argumentos; (11) com (12), de sujeitos animados, respetivamente humano vs. não humano; (13) com (14), complemento não preposicionado vs. preposicionado).
10. 2.3. «Estávamos calmamente a tomar um café na esplanada e a conversar quando, de repente, Ørompeu a chover de tal maneira forte, que não tivemos tempo de nos retirar enxutos.»
11. 5.1. «Egarompera logo a contar o seu caso - enquanto Craft, sem espanto nem exclamações, ia preparando metodicamente sobre a mesa três grougues de conhaque e limão.»
12. * «A lobarompera logo a contar o seu caso - enquanto Craft, sem espanto nem exclamações, ia preparando metodicamente sobre a mesa três grougues de conhaque e limão.»
13. 5.1. «Ega rompera logo acontar o seu caso - enquanto Craft, sem espanto nem exclamações, ia preparando metodicamente sobre a mesa três grougues de conhaque e limão.»
14. «Egarompera logo afalar do seu caso - enquanto Craft, sem espanto nem exclamações, ia preparando metodicamente sobre a mesa três grougues de conhaque e limão.»
Teste 4: Os (pronomes) clíticos (só) ocorrem pospostos ao infinitivo (cf. (15) e (17)). Em adjacência à forma finita do semiauxiliar romper a, produzem estruturas agramaticais (cf. (16)) ou, no mínimo, estranhas (enquanto falante nativo, é isso que sinto) (cf. (18) e (19)).
15. 2.2. «Olhávamos para baixo à espera que ela saísse. E quando enfim saiu, Miguel rompeu a chamá-la. Ela trilou dois dedos sintéticos no ar a responder.»
16. * «Olhávamos para baixo à espera que ela saísse. E quando enfim saiu, Miguel rompeuaa chamar. Ela trilou dois dedos sintéticos no ar a responder.»
17. 12.1. «Seria só questão de inesperadamente romper a falar-lhe da Y, sem sequer a identificar, tratando apenas de tentar descrevê-la, (...).»
18. ?? «Seria só questão de inesperadamente romper-lhe a falar da Y, sem sequer a identificar, tratando apenas de tentar descrevê-la, (...).»
19. ? «Seria só questão de inesperadamente lheromper a falar da Y, sem sequer a identificar, tratando apenas de tentar descrevê-la, (...).»
Teste 5: A submissão da perífrase em análise à prova da passivização, se não for agramatical, resulta bastante estranha – é o que o confronto de (21) com (20) documenta.
20. 1.1. «A D. Fúfia, que há muitos anos está morta por dizer mal, que nunca se atreveu a dizer mal, e que, quando ia a dizer mal, dizia logo bem de toda a gente, rompe agora a abocanhar todos os ridículos, todos os orgulhos, todas as vaidades: – O que isto consola!…»
21. ??? «Todos os ridículos, todos os orgulhos, todas as vaidades rompem agora a ser abocanhados pela D. Fúfia, que há muitos anos está morta por dizer mal, que nunca se atreveu a dizer mal, e que, quando vai a dizer mal, diz logo bem de toda a gente: – O que isto consola!…»
4. Descrição sintático-semântica
Entremos, agora, na secção que reputo de nuclear, uma vez que é aqui que se investigam as possíveis restrições de seleção que afetam a construção, tanto as que dizem respeito ao verbo semiauxiliar (ser defetivo, nesta qualidade, em determinados tempos, aspetos, modos) quanto, particularmente, as respeitantes ao auxiliado (aquele, o semiauxiliar, restringe muito frequentemente o tipo de verbos com que se pode combinar para construir perífrases, sobretudo por razões que se prendem com a classe aspetual8 deste último, o verbo principal).
No que concerne às propriedades morfossintáticas do semiauxiliar, o corpus mostra a sua coocorrência com tempos de significado aspetual ‘imperfectivo’, como o presente e o pretérito imperfeito do indicativo, em particular ((22) e (23), de leitura progressiva), e ‘perfectivo’, como o pretérito perfeito simples (24).
22. 1.2. «A senhora põe-se ao piano, rosna uma coisa sobre piedra e sepultura, e rompe a gemer num gemido que não findava: Ã-ã-ã-ã-ã-ah…»
23. 4.1. «(...) e quando tentava elevar-se às conversações que ouvia, rompia a chamar ladrões aos republicanos, a celebrar os tempos de D. Isabel, a sua gracia, o seu salero - sendo muito conservadora como todas as prostitutas.»
24. 2.2. «Olhávamos para baixo à espera que ela saísse. E quando enfim saiu, Miguel rompeu a chamá-la. Ela trilou dois dedos sintéticos no ar a responder.»
Quanto às propriedades sintático-semânticas, deve afirmar-se que o corpus documenta de forma inequívoca a combinação de <romper a + infinitivo> com a classe aspetual de predicados que denotam situações dinâmicas, durativas e não delimitadas, isto é, atividades (Vendler, 1967) ou, de acordo com outra terminologia, processos (Moens, 1987), como uma compulsação do mesmo rapidamente o corroborará.
Agora, porém, e por forma a que se possa ilustrar o que acabo de dizer, cf. (25), e (26) - simples exemplos.
25. 4.1. «(...) e quando tentava elevar-se às conversações que ouvia, rompia a chamar ladrões aos republicanos, a celebrar os tempos de D. Isabel, a sua gracia, o seu salero - sendo muito conservadora como todas as prostitutas.»
26. 12.1. «Seria só questão de inesperadamente romper a falar-lhe da Y, sem sequer a identificar, tratando apenas de tentar descrevê-la, (...).»
Em relação às outras classes aspetuais de predicados que também denotam situações dinâmicas e durativas, mas delimitadas, ou seja, accomplishments (Vendler, 1967) ou processos culminados (Moens, 1987), por um lado, e de curta ou nenhuma duração, achievements (Vendler, 1967) ou culminações e pontos (Moens, 1987), por outro lado, apesar de ser possível a sua coocorrência com a construção sob análise, estão como é natural infimamente documentadas: (27) ilustra a primeira tipologia e (28), a segunda; a última tipologia, com predicados que denotam situações pontuais (como “A Joana rompeu a espirrar”), não está documentada no corpus. É, contudo, gramatical, mas de leitura iterativa.
27. 2.1. «Perguntei pela Clara. Respondeu: she’s around, somewhere. E depois rompeu a cantar: somewhere over the rainbow. Um filme musical.»
28. 2.2. «Olhávamos para baixo à espera que ela saísse. E quando enfim saiu, Miguel rompeu a chamá-la. Ela trilou dois dedos sintéticos no ar a responder.»
Relativamente à última classe aspetual de predicados, os estados, em ambas as terminologias (Vendler, 1967 e Moens, 1987), que descrevem situações não dinâmicas, não podem, por essa mesma razão, combinar-se com a construção inceptiva sob escopo (esta marca o início de uma situação eventiva, não estativa). Por último, esta nota reflexiva, bem curiosa: das dez ocorrências de <romper a + infinitivo> constituintes do minicorpus que me serviu de base para este estudo, duas são com chamar (transitivo direto na primeira ocorrência do corpus e transitivo indireto + predicativo na segunda) e as restantes com abocanhar, gemer, cantar, chover, celebrar, contar, ladrar e falar, o que parece ser um claro indicador da preferência do semiauxiliar por um determinado grupo de auxiliados9.
Atentando na relação de auxiliados do parágrafo precedente, verificar-se-á que os há monoargumentais, isto é, de um só lugar, que selecionam um único argumento, externo (ou interno), com a relação gramatical de Sujeito (gemer, ladrar); verbos meteorológicos, de zero argumentos (chover); e transitivos, de dois (ou mais) argumentos, quase todos com argumento interno com a relação gramatical de Objeto Direto (abocanhar, cantar, chamar1, celebrar, contar), exceto chamar2, com “dois argumentos internos”, se assim se pode dizer: um com a relação gramatical de Objeto Indireto e o segundo com a de Predicativo do Objeto Indireto, e, por fim, um com a relação gramatical de Oblíquo (falar de)10.
Os auxiliados monoargumentais do corpus (29) e (30) expressam eventos de causa interna, ou seja, eventos cuja produção se deve a alguma propriedade inerente ao único argumento do verbo, e não à intervenção de um agente, de um instrumento ou, até, de alguma força da natureza ou de qualquer outra circunstância (García Fernández, 2006: 232).
29. 1.2. «A senhora põe-se ao piano, rosna uma coisa sobre piedra e sepultura, e rompe a gemer num gemido que não findava: Ã-ã-ã-ã-ã-ah…»
30. 8.1. «Um instante Carlos receou que ela rompesse a ladrar. Mas a cadelinha, de repente, namorara-se dele, deitada já na cadeira, de patas ao ar, descomposta, abandonando o ventrezinho às suas carícias.»
O alcance da afirmação acima pode ver-se particularmente bem pelo confronto de verbos de mudança de estado (não documentados no corpus), um de causa interna (ex.: amadurecer, em Após vários dias de calor, a fruta amadureceu) e outro de causa externa (ex.: abrir(-se), em A janela abriu(-se)), cuja combinação com <romper a + infinitivo> resulta, por isso, em estruturas, respetivamente, gramatical (Após vários dias de calor, a fruta rompeu a amadurecer) e agramatical (*A janela rompeu a abrir(-se)).
5. Resultados (e breve discussão)
Um primeiro resultado da investigação aqui levada a cabo diz respeito ao facto de a construção <romper a + infinitivo>, de fase inicial, não poder coocorrer com predicações que denotam estados, tão-somente com as que denotam eventos.
Um segundo, marcante, prende-se com o facto de a construção, de fase inicial, <romper a + infinitivo> mostrar uma grande solidariedade com um grupo tendencialmente concreto de verbos, mais especificamente das seguintes áreas semânticas: 1. atividade física, ou reação física ou emotiva não delimitada (abocanhar, gemer, falar, chamar, celebrar, contar, ladrar); 2. interpretação (cantar); 3. fenómenos meteorológicos (chover).
Por fim, e em jeito de discussão-síntese: o número consideravelmente elevado de construções inceptivas tem a sua razão de ser: especialização na manifestação da inceptividade sui generis, idiossincrasia que releva não só do(s) significado(s) específico(s) mas também da combinatória sintático-semântica da construção. Neste estudo, ficámos a conhecer tanto um(uns) quanto a outra para a construção inceptiva <romper a + infinitivo>.
6. Conclusão
A construção sob escopo, pode afirmar-se, apresenta duas restrições de relevância efetiva: uma respeita ao número relativamente restrito de verbos com que pode coocorrer e a outra concerne ao tipo de verbos selecionados pelo semiauxiliar: os que pertencem ao campo semântico de “emissão de sons humanos”, de notória predominância.