Apresentação
O objetivo deste texto é relatar as atividades do Projeto para História do Português Brasileiro, no período de 1988 a 2022. Trata-se de mais um projeto coletivo de pesquisa, modalidade de fazer ciência que tem sido frequente na Linguística Brasileira.
1. Motivações do Projeto para a História do Português Brasileiro
A Linguística Histórica tinha perdido espaço durante o período mais forte de atuação do Estruturalismo e do Gerativismo, movimentos basicamente a-históricos. Chegou-se mesmo a anunciar sua morte, dado o forte impacto dessas teorias que se preocupam em depreender o funcionamento sistêmico de uma língua ou formalizar uma teoria geral da linguagem sem se ater às etapas dos processos de mudança.
É verdade, entretanto, que, mesmo no interior dessas teorias, algumas vozes anunciavam a presença da “velha senhora”. No quadro do Estruturalismo, lembrem-se as pesquisas de A. Martinet sobre a Fonologia diacrônica, no do Gerativismo, a teoria dos Princípios e Parâmetros de Noam Chomsky. No Brasil, foi profética a voz de Tarallo (1984), que proclamou o renascimento da “fênix”, excelente metáfora para uma ciência que retorna sempre. Nos anos 1980, sem que tivesse havido uma combinação prévia, três respeitadas linguistas fizeram renascer a Linguística Histórica no domínio da língua portuguesa:
(a) Clarinda Maia, da Universidade de Coimbra, com seus estudos sobre o Galego-Português: Maia (1986); ver também Maia (2022);
(b) Rosa Virgínia Mattos e Silva, da Universidade Federal da Bahia, com seu estudo sobre o Português trecentista, a que se seguiu o Programa de História do Português: Mattos e Silva (1989);
(c) Mary Kato, na Universidade Estadual de Campinas, juntamente com Fernando Tarallo, quando focalizaram o Português Brasileiro em trabalho apresentado em um congresso internacional: Kato e Tarallo (1988). Eles deram início a um projeto de história do português brasileiro, de que surgiram várias teses e ensaios, já publicados: Roberts e Kato (1993), Galves et al. (2019). Ver também Kato et al. (2023).
O quadro desenhado acima me motivou a propor a criação de um projeto coletivo de pesquisas, tendo por objetivo, inicialmente, historiar o Português de São Paulo: Castilho (1998). O Programa de Pós-Graduação em Filologia e Língua Portuguesa da Universidade de São Paulo aprovou essa proposta em 1995.
Contrariamente ao que pode parecer, a proposta nada tinha de “patriotismo estadual”, pois o Projeto História do Português Paulista (PHPP) deveria reconstituir o percurso histórico do português paulista, que representa o primeiro momento de lusitanização do Brasil, iniciado em 1532, na cidade litorânea de São Vicente. Outras motivações do PHPP eram:
(a) Retomar a tradição das pesquisas em Linguística Histórica da Universidade de São Paulo.
(b) Buscar as raízes diacrônicas dos fenômenos descritos pelo Projeto NURC (1970-1988) e pelo Projeto de Gramática do Português Falado no Brasil (1988-2006).
(c) Repercutir as atividades do PROHPOR e aquelas que resultaram do “casamento” entre a gramática gerativa e o variacionismo laboviano, patrocinado por Mary Kato e Fernando Tarallo na Universidade Estadual de Campinas, ambos nos anos 1980.
Após intensa troca de correspondências com pesquisadores eventualmente interessados, realizou-se, em São Paulo, o I Seminário do Projeto para a História do Português Paulista, em 1997: Castilho (1998). Nessa ocasião, por iniciativa dos participantes, o projeto regional assumiu uma dimensão nacional, mudando-se sua designação para Projeto para a História do Português Brasileiro (PHPB). O “para” foi uma sugestão oportuna de Mattos e Silva, que nos advertia sempre sobre a enormidade do empreendimento.
Os pesquisadores do PHPB decidiram, igualmente, abrir-se à cooperação internacional. Em especial, buscou-se interagir com os romanistas alemães, com financiamento da CAPES e do DAAD (cf. o acordo de cooperação em Alkmin 2002b). Com isto, os pesquisadores frequentaram seminários dirigidos por Brigitte Schlieben-Lange, Eberhardt Gaertner, Konstanze Jungbluth, Johannes Kabatek, Wulf Oesterreicher. Ao mesmo tempo, vários pesquisadores brasileiros seguiram para a Alemanha, construindo parcerias científicas de importância para o PHPB: ver o capítulo de Ataliba T. de Castilho intitulado O Relatório de Blaubeuren, publicado em Hora e Silva (2010).
Especialistas portugueses foram igualmente convidados, ministrando seminários aos pesquisadores do PHPB: Ivo Castro, Augusto Soares da Silva, Clarinda Maia, Esperança Cardeira. Na Galícia (Universidade de Santiago de Compostela), foi convidada Rosário Álvarez.
Os pesquisadores assim organizados promoveram uma verdadeira revolução científica no interior da Linguística Histórica brasileira, focalizando agora a România Nova, uma tarefa específica dos linguistas que vivem nesta parte do mundo.
2. Agenda do PHPB e formas de atuação
O PHPB desenvolve suas pesquisas a partir da seguinte agenda: (1) organização do corpus, (2) mudança gramatical, (3) processos de organização textual, (4) mudança social.
2.1. Organização do corpus
Uma das primeiras tarefas do PHPB, desde sua criação, foi levantar e organizar um corpus diacrônico que fundamente as análises linguísticas. Atualmente, o corpus diacrônico do PHPB compreende o Corpus Mínimo comum e o Corpus Diferencial.
O Corpus Mínimo Comum reúne materiais de mesma natureza já levantados pelas equipes. Esse corpus conta com redatores brasileiros ou de naturalidade não identificada, mas com produção em redes de escrita no Brasil.
O Corpus Diferencial compreende corpora complementares para controle contrastivo em relação ao Corpus Mínimo Comum: textos escritos por portugueses e por brasileiros em gêneros textuais diversos.
Esses corpora podem ser consultados nos sites abaixo:
Em reunião realizada em João Pessoa em 1º. de junho de 2010, a Comissão de Corpus discutiu a pauta composta pelos itens acima.
Foram contrastados os levantamentos feitos por Afrânio Barbosa no volume História do Português Brasileiro (Barbosa, 2010) com o Corpus Geral do Projeto Nacional PHPB (versão de junho de 2009) e com a proposta de José da Silva Simões e Verena Kewitz, feita em forma de comunicação oral no VIII Seminário do PHPB em João Pessoa.
Procurou-se buscar uma convergência entre as propostas, levando também em consideração as contribuições do Grupo de Trabalho de História Social feitas durante o referido seminário.
A partir dessas considerações, discutiu-se a viabilidade de distribuir a coleta de materiais, respeitando a disponibilidade e representatividade das tipologias textuais em cada uma das 11 regiões que compunham o Projeto PHPB à altura. Nesse sentido, a opção foi de compor três conjuntos de textos divididos da seguinte maneira:
(a) Corpus comum mínimo - manuscritos;
(b) Corpus comum mínimo - impressos;
(c) Corpus comum diferencial.
O grupo decidiu que seria dada prioridade na coleta dos dois primeiros conjuntos, para atender à agenda de análises. Parece ser consenso que esses dois conjuntos são de fácil acesso nos arquivos para coleta e edição ou já estão editados por algumas equipes, facilitando, assim, o trabalho de coleta e edição desses materiais pelos novos integrantes do Projeto (Alagoas e Rio Grande do Norte).
A Tabela 1 discrimina as tipologias textuais que compõem cada um dos conjuntos (a, b, c):
Dada a dificuldade de encontrar inventários e memórias/relatos históricos e diários históricos de viagem em todas as 11 regiões, optou-se por transferir todos eles para o Corpus Comum Diferencial. Os entremezes e outros textos teatrais e os inquéritos orais (NURC) também serão considerados no corpus comum diferencial, haja vista a restrição da existência das memórias em arquivos públicos e de inquéritos orais NURC em algumas capitais. Observou-se que, para o futuro, seria interessante prever a coleta desses materiais para incrementar o conjunto de textos para as análises.
Em vista da dificuldade de ampliar o corpus comum mínimo para os séculos XVI e XVII, optou-se por restringir a coleta dos materiais aos séculos XVIII, XIX e XX.
A partir da proposta acerca do número de palavras a serem coletadas por tipologia textual, foi decidido o seguinte:
(a) Segmentação dos séculos em dois períodos de 50 anos: 1a e 2a metades;
(b) Número de palavras por tipos de textos em cada uma das metades dos séculos.
Dada a dificuldade de levantar grandes quantidades de textos da variada tipologia para os séculos pretéritos, decidiu-se que seriam levantadas 5.000 palavras para cada tipo de texto por cada período de 50 anos.
Ficou acordado que serão organizadas fichas sociolinguísticas que atendam às necessidades de cada tipo de documento, conforme as reflexões pontuadas ao longo das apresentações das equipes de História Social e de Linguística de Corpus.
Sugere-se que seja adaptada a ficha catalográfica proposta pelo Prof. Afrânio Barbosa (cf. Barbosa, 2010: 53), da qual farão parte fatores como informações sobre o letramento dos escribas, critérios objetivos de erudição como o registro ou estilo do escriba (em especial os latinismos; cf. Barbosa, 2006), ampliação das categorias sociais (grau de parentesco ou hierarquia social entre os escribas ou interlocutores).
O seguinte siglário rotulará os textos a serem recolhidos, composto pelos seguintes itens: como em [C 18 1 AI ___]:
(a) as primeiras letras referem-se ao gênero textual: carta (C), peça teatral (TEA), memória histórica (M), anúncio (A), inquérito do Projeto NURC (D2SP-330);
(b) o primeiro número refere-se ao século;
(c) o segundo número indica a 1a ou 2a metade do século em questão;
(d) a notação em letras indica o documento de origem e
(e) o último campo poderá indicar uma categoria específica de maior precisão e controle do pesquisador.
No interior das equipes, os pesquisadores selecionaram tópicos da agenda do projeto, apresentando os resultados em Seminários Nacionais, em número de 11, até agora. À semelhança do que ocorrera com o Projeto Gramática do Português Culto Falado no Brasil, os textos assim apresentados foram debatidos, reescritos, e publicados na série indicada na seção 2.
2.2. Pesquisas sobre mudança gramatical e organização textual. Novos tópicos
As pesquisas sobre mudança gramatical levarão em conta perspectivas teóricas sócio-funcionais e formais.
As pesquisas sobre a diacronia da organização textual levarão em conta a Teoria das tradições discursivas.
Posteriormente, foram acrescentados novos tópicos de pesquisa: Semântica diacrônica, História do Léxico.
2.3. Forma de atuação: os seminários nacionais
No interior das equipes, os pesquisadores selecionarão tópicos da agenda do projeto, apresentando os resultados em Seminários Nacionais, em número de 11, até agora.
À semelhança do que ocorrera com o Projeto Gramática do Português Culto Falado no Brasil, os textos assim apresentados foram debatidos, reescritos, e publicados nas séries relacionadas nas Tabelas 3 e 4.
3. Equipes regionais do PHPB
A organização das equipes regionais do PHPB teve início a partir do I Seminário do PHPB e foi se ampliando ao longo dos últimos 25 anos do projeto, sendo integradas atualmente por mais de 200 pesquisadores de várias universidades brasileiras.
Dadas as dimensões continentais do Brasil, esse empreendimento não se realizou ao mesmo tempo. Em 2019, a lista dos coordenadores estava organizada como na Tabela 2.
4. Seminários nacionais e suas atas
As decisões e os resultados dos onze seminários nacionais realizados, com exceção do 11º, foram registrados em livros e/ou atas, lançados de 1998 a 2013, detalhados na Tabela 3.
*Alkmin (2002a) - **Lobo et al. (2006) - ***2013 - IX Seminário, Maceió AL, 2013:1 -
5. Seminários regionais e suas atas
Algumas equipes regionais também realizaram seminários, dos quais resultaram os volumes constantes da Tabela 4.
6. Consolidação dos resultados
Por ocasião do VII Seminário Nacional, apresentei a proposta de consolidar os resultados até então obtidos numa série própria, que começou então a ser preparada, ocorrendo sua publicação entre 2018 e 2022: ver Tabela 5:
*Castilho (2018a) - **Castilho (2019)
Como se pode ver por essa agenda fixada ao longo dos últimos 25 anos, todos os sistemas que compõem uma língua natural foram aí considerados: Gramática, Léxico, Discurso e Semântica. Essa agenda fez do PHPB um dos empreendimentos mais exitosos sobre a România Nova.
Logo no começo do projeto, e ao longo do seu desenvolvimento, algumas questões de base foram observadas. No início, ainda não se tinha mesmo uma reflexão muito desenvolvida sobre a periodização do PB, o que viria a aparecer em Schmiedt-Riese (2002). Também seria necessário refletir também sobre a própria expressão Português Brasileiro, tarefa que Coelho e Santos da Silva (2018) realizaram por nós.
7. Produção científica do PHPB de 1988 a 2013
A produção do PHPB, classificada de acordo com as agendas de pesquisas mencionadas anteriormente, vem quantificada na Tabela 6:
A partir desse quadro é possível notar que os pesquisadores do PHPB introduziram novas pautas na Linguística Histórica Brasileira, como é o caso da Linguística do Texto, das Tradições Discursivas e da Semântica Diacrônica. Esse quadro mostra, igualmente, que 32% dos textos se concentraram em questões teóricas, de maneira bastante desigual no interior da agenda do projeto. Mesmo assim, são resultados notáveis em termos da linguística brasileira, pouco afeita até aqui às questões epistemológicas.
Pode-se perceber que há certa desigualdade no tratamento da agenda. Quase metade das pesquisas se concentraram no sistema da Gramática, o que era de se esperar, dada a tradição dessa área. Uma percepção mais equilibrada da história do PB demandará, entretanto, mais pesquisas sobre os demais sistemas linguísticos.
Não se incluem nesta observação, naturalmente, os resultados obtidos na área de Semântica, pois essas pesquisas tiveram início há apenas 4 anos, o que representa 1/5 do tempo utilizado pelos pesquisadores das demais áreas. Em segundo lugar, observa-se a grande contribuição dos pesquisadores no levantamento do corpus necessário às pesquisas: 23%. Sem essa atividade, as pesquisas qualificadas no quadro não teriam sido desenvolvidas.
A Tabela 7 detalha a produção referente ao item “mudança gramatical”, dividida pelas subáreas do sistema gramatical:
A Tabela 7 aponta, igualmente, para um desequilíbrio nas pesquisas sobre o sistema gramatical, com a predominância da Sintaxe, que ficou com 342 textos em seu total, com forte preferência pelo estudo das classes de palavras.
8. Reflexões teóricas sobre a mudança linguística
O PHPB fomentou algumas reflexões teóricas sobre o campo da Linguística Histórica, a fim de situar os estudos desenvolvidos no projeto de pesquisa nacional e regionais. Os três principais textos com esse tipo de informação são Oesterreicher (2012), Castilho (2018b) e Faraco (2018)
9. Conclusão
A partir da revisão da produção do PHPB, nota-se que a continuação dos trabalhos dependerá fortemente da preparação teórica dos pesquisadores, sobretudo no domínio da Romanística. Os coordenadores dos volumes que integram a série História do Português Brasileiro deram-se conta disso, ao preparar os originais para publicação. Tais deficiências precisarão ser sanadas na continuação dos trabalhos.
Outro ponto a considerar, na dimensão latino-americana, é que o PHPB busque interagir com os seguintes projetos da ALFAL: Projeto 3, História do Português Brasileiro, Projeto 4, România, e Projeto 18, História do Espanhol da América. Essas ações assegurariam uma ampliação dos interesses científicos do PHPB.
Este informe foi redigido com esse objetivo.
In Memoriam
Alguns colegas nos deixaram enquanto trabalhavam no PHPB. O volume inaugural da série História do Português Brasileiro (Castilho, 2018a) traz uma homenagem singela a esses queridos colegas, citados abaixo:
(a) Rosa Virgínia Mattos e Silva (cf. o texto “In Memoriam Rosa Virgínia Mattos e Silva”, de Tânia Lobo e Mailson Lopes, presente em Castilho 2018a, pp. 97-119);
(b) Clélia Cândida Spinardi Jubran (cf. o texto “In Memoriam Clélia Cândida Spinardi Jubran”, de Ataliba T. de Castilho, presente em Castilho 2018a, pp. 120-127);
(c) Klebson Oliveira (cf. o texto “In Memoriam Klebson Oliveira”, de Ana Sartori, presente em Castilho 2018a, pp. 128-142).