Introdução
De acordo com a Política Nacional de Atenção à Saúde da Pessoa Idosa (2006) do Brasil, a abordagem a este grupo populacional deve ter em perspectiva o maior tempo possível de vida com independência, autonomia e exercício da cidadania. Para que este objetivo se concretize no contexto da Atenção Primária é necessário garantir o cuidado em rede1 de atenção à saúde, além da rede de suporte social.
O Decreto 7.508 de 28 de junho de 2011, que regulamenta o Sistema Único de Saúde (SUS), em seu Capítulo I, das disposições preliminares, define Rede de Atenção à Saúde (RAS) como um conjunto de ações e serviços de saúde articulados em níveis de complexidade crescente, com a finalidade de garantir a integralidade da assistência à saúde2.
Ao pensar na realidade do envelhecimento populacional, destaca-se a importância das RAS para a atenção à pessoa idosa. À medida que a população envelhece, a carga tripla de doenças manifestada pela concomitância de doenças crônicas, doenças infecciosas e causas externas impacta significativamente no contexto dos serviços de saúde. Nessa circunstância, os profissionais de saúde precisam estar preparados para um olhar diferenciado para a população idosa, orientado pelo paradigma da funcionalidade e na lógica da integralidade.
No sistema público de saúde a Atenção Primária em Saúde (APS) é a principal porta de entrada para o cidadão. Num recorte considerando o público idoso, as exigências para responder às suas demandas nesse nível de atenção implicam em multidisciplinaridade e interações que se constroem como desafios nas relações de poder existentes3.
Entende-se que tais interações é condição fundamental do agir profissional visando a integralidade da atenção à saúde. Interagir implica no desenvolvimento de habilidades tanto emocionais quanto sociais e de comunicação em que a equipe seja capaz de promover o cuidado por meio de relações com o cliente, a família e a comunidade.
No contexto da APS, dentre as categorias profissionais, a enfermagem tem função essencial no atendimento à demanda espontânea, na realização das ações programáticas, coletivas e de vigilância à saúde4, comprometendo-se na qualidade de vida da população no que tange às suas competências de cuidado.
Os cuidados de enfermagem na APS compreendem ações de promoção, prevenção de agravos, proteção e recuperação da saúde de pessoas que residem no território de abrangência da unidade de saúde, seja no domicílio ou noutros espaços comunitários4.
Neste sentido, as relações estabelecidas predispõem a enfermagem a interações multiprofissionais e multidisciplinares nas decisões e composição do cuidado considerando a especificidade da saúde do idoso e da enfermagem gerontológica. Trata-se de uma competência relacional, de interações constantes e entendimento de sua dinâmica perante o conhecimento em saúde do idoso na APS.
No histórico da enfermagem a relação de poder com amparo legal é que orienta o agir, atribuindo ao enfermeiro a supervisão e coordenação das atividades da equipe de técnicos de enfermagem, e de agentes comunitários de saúde4-5. No entanto, as relações de poder também perpassam pela instituição da ciência como estatuto de validação do conhecimento, sendo a cientificidade de uma disciplina o marco que valida a divisão e a especialização do trabalho, determinadas pelos saberes6. Por conseguinte, tencionam os sistemas de poder-saber e de força, não sendo novidade no contexto da saúde e na complexidade das relações na APS.
O desempenho da enfermagem nessa trama das relações disparada pela especificidade do cuidado ao idoso, objeto dessa discussão, implica em conhecimento específico e interdisciplinar. Dessa forma, reforça-se que é nas diferentes formas de relação que as pessoas/categorias profissionais se tornam sujeitos em sua cultura3, constroem sua história em determinado tempo e contexto permeada por seus conhecimentos do senso comum ou científico.
Para compreender o mundo desses sujeitos, é necessário que se compreenda as relações de poder estabelecidas a partir de sua historicidade3. Em busca de compreender a constituição do sujeito, Foucault estudou o poder, chegando à compreensão do conhecimento como um dispositivo. O poder está envolvido na existência de um conhecimento específico e também nas suas transformações por meio das relações de poder, que o tornam um dispositivo político, capaz de determinar a posição de quem o detém7. Assim, o poder não é considerado como uma realidade com características definidas ou universais, mas como relações heterogêneas em constante transformação3.
É nessa perspectiva da inserção de poderes e saberes3-6) que esse ensaio se fundamentou considerando como precípuos os construtos de Foucault para tecer a discussão sobre as relações da enfermagem para o cuidado à pessoa idosa na Atenção Primária, constituindo-se em relevante estudo que é um campo de investigação a ser mais explorado e desvelado como campo do conhecimento na APS.
Essa abordagem tem seu foco no campo das relações de saber-poder, isto é, as interações estabelecidas pela enfermagem para produção do cuidado ao idoso na APS. Ressalta-se que numa busca da literatura, encontrou-se publicações em saúde da pessoa idosa que têm enfatizado sobretudo, as políticas públicas, os fatores socioeconômicos e demográficos, os aspectos clínicos e gerontológicos, dentre outros, o que demonstra escassez dessa temática e a coloca como objeto relevante de investigação, além de considerar que hoje as pesquisas na área da atenção ao idoso na APS e envelhecimento são prioridades no que tange às repercussões nos serviços de saúde, na economia e nos modos de cuidar.
Em que pesem todas essas questões, considerando o envelhecimento, as necessidades de cuidado do idoso e o caráter generalista da formação dos profissionais da enfermagem na APS, questiona-se: como as relações da enfermagem na Atenção Primária para o cuidado ao idoso se apresentam? O objetivo deste estudo, portanto, foi compreender as relações da enfermagem no cuidado ao idoso na Atenção Primária na perspectiva do referencial teórico-filosófico de Foucault.
Metodologia
Estudo de natureza qualitativa, descritivo-analítico, que visa aprofundar na compreensão das relações da enfermagem tendo como referencial as relações de poder segundo Foucault. Foi concebido a partir de uma releitura de um excerto da tese intitulada: A rede de atenção à saúde para o cuidado à pessoa idosa na atenção Primária: um modelo teórico8, de nossa própria autoria, desenvolvido nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) do Distrito Sanitário Noroeste da Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte, Minas Gerais.
O Distrito Sanitário Noroeste é o segundo mais populoso da cidade com 236.461 habitantes cadastrados no Sistema de Informação em Saúde Municipal (SISREDEweb)9 e o primeiro em número de população com 60 anos e mais, o que equivale a 21,74% (50.767) do total de residentes, sendo aproximadamente 14% desses cobertos pela Estratégia de Saúde da Família (ESF). Possui 16 UBS, 64 Equipes de Saúde da Família (eSF), Núcleo de Ampliado de Apoio à Saúde da Família (NASF), equipes de saúde bucal e equipe de referência em Saúde Mental para as UBS.
A análise que se propôs deste excerto ocorreu entre os meses de junho e julho de 2021 a partir dos dados que foram coletados e publicados no estudo (tese), por meio de grupo focal. A amostra incluiu profissionais das UBS. Os critérios de inclusão foram: profissionais das eSF completas, tempo de atuação mínimo de um ano no Sistema Único de Saúde de Belo Horizonte (SUS-BH). Foram critérios de exclusão: profissionais integrantes de eSF com população idosa coberta inferior a 14% do total, profissional contratado pelo SUS-BH. Totalizaram-se 20 potenciais participantes, a saber: gerente de serviços de saúde (15%), nutricionista (5%), enfermeiro (25%) , técnico de enfermagem (20%), auxiliar de saúde bucal (20%), dentistas (10%), assistentes sociais (5%), médico (5%), psicólogo (5%). Desses, nove profissionais eram da enfermagem (enfermeiro, técnico de enfermagem, auxiliar de enfermagem) e oito participaram dos cinco encontros do grupo focal.
A participação da enfermagem em cada reunião do grupo focal variou entre três a sete participantes, constituídos por mulheres (100,0%), na faixa etária entre 30 e 39 anos (40%), de 40 a 49 (20%) e 50 anos ou mais (40%). Tempo médio dos encontros foi de uma hora e trinta minutos. Foram realizadas cinco sessões de grupo focal, que ocorreram em lugar privativo e mutuamente acordadas entre as partes, em salas de reunião da UBS de acordo com facilidade de deslocamento dos participantes. As datas foram estabelecidas de acordo com a disponibilidade de agendamento e orientações dos gerentes dos serviços. É importante ressaltar que o grupo focal foi realizado com equipe multiprofissional e foram segregados do material empírico os discursos dos oito profissionais da enfermagem para esta análise, sendo 4 técnicos/auxiliares (50%) e 4 enfermeiros (50%).
O convite foi feito aos gerentes da UBS e trabalhadores e antes de iniciar o grupo focal, os participantes tiveram esclarecimentos sobre o estudo, os objetivos e dúvidas foram esclarecidos. Após o aceite em participar, solicitou-se permissão para a gravação e a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido que foi lido passo a passo e cada participante recebeu uma cópia. Nessa dinâmica, iniciou-se a coleta de dados com a realização dos grupos focais, que debateram temas, constantes no seguinte roteiro orientador: a rede de atenção à saúde (ou as possibilidades) no cuidado à pessoa idosa no SUS-BH; condições em que se encontra o atendimento/acompanhamento para o cuidado à pessoa idosa no setor/unidade; a articulação do atendimento à pessoa idosa; o cuidado ao idoso e a concepção de rede de atenção à saúde; reflexão sobre reconhecimento da sociedade e da Secretaria Municipal de Saúde em relação ao trabalho que realizam os profissionais das equipes no cuidado à pessoa idosa.
O debate de cada grupo focal foi gravado em meio digital, e transcrito na íntegra, concomitantemente. Os respondentes foram identificados pelos códigos de R1 a R20, seguido da categoria profissional.
A saturação das informações delineou-se quando não surgiram novos elementos narrados pelos participantes, pois, em novos encontros os participantes repetiam informações e o problema de pesquisa já estava esclarecido. Adotou-se, ainda, para declarar a saturação dos dados, a apreciação de dois especialistas da rede SUS-BH. Assim, encerraram-se os procedimentos de coleta e o desligamento do campo.
Para esta análise dos dados utilizou-se a técnica de Análise de Conteúdo (AC), proposta por Bardin10. O material empírico coletado foi lido exaustivamente, e organizados a partir das fases da AC, quais sejam: pré-análise, exploração do material, tratamento dos resultados, inferência e interpretação. Dessa forma, encontrou-se ressonância no sistema de diferenciações, preconizado por Foucault quando os fatores extra relações humanas determinam o exercício do poder11 que permite agir sobre a ação de outros num determinado contexto e tempo. No pareamento das informações obtidas nos grupos focais e os sistemas de diferenciações, seguiu-se três premissas elucidadas por Baptista, Santos e Duarte, nesse contexto da enfermagem: “cenário é regido por normas e rotinas; o sujeito e o significado que ele atribui à determinada relação; leitura e interpretação que este sujeito faz da postura ou das ações empregadas pelo outro na dinâmica da relação” (12.
À guisa dos conceitos de Foucault no que concerne às relações de poder emergiram as seguintes categorias: suporte adequado para o cuidado ao idoso; o enfermeiro define a trajetória de cuidados ao idoso; as relações de poder-saber no atendimento ao idoso.
O projeto de pesquisa teve aprovação dos Comitês de Ética e Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais, protocolo nº 0068.0.410.203-10 e Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte, parecer nº 0068.0.410.000-10 A.
Resultados
O suporte adequado para o cuidado ao idoso
A presença do idoso no serviço é confirmada por um dos participantes e a abordagem do enfermeiro reporta ao suporte multiprofissional, ressalta o grupo operativo, a visita domiciliar como as principais ações de cuidado da enfermagem para essa clientela:
“Eu acho que (o cuidado) tem melhorado, é claro que temos as nossas dificuldades por que o número de idosos tem aumentado né, tem essa questão da família, muitas vezes, muitas não fornecem o suporte adequado, problemas sociais até, né? Até bom a presença do psicólogo (R14 Enfermeira). (...) atualmente, a gente não tá tendo (grupo) (...) porque a gente mudou, mas a gente tinha um grupo de idoso (...). Tem as visitas domiciliares aos idosos e acamados a gente faz os dois (R21 Enfermeira)”.
O suporte adequado para a enfermagem teve como um dos seus principais focos o estímulo ao cuidado com uma chamada à corresponsabilização da família. Nessa visão do cuidado é imperativo que a família tenha que participar do cuidado. Nessa visão, a participação familiar é imperativa, tendo em vista que esta é identificada como principal elo para fortalecimento do cuidado.
“Eu acho que a primeira coisa é chamar a família do idoso, inserir a família no cuidado do idoso, enquanto o idoso vier sozinho não vai ter muita diferença não. A família tem que participar do cuidado do idoso e é o que a gente observa que não acontece (R1 Auxiliar de enfermagem)”.
O enfermeiro define a trajetória de cuidados ao idoso
Ao receber o idoso no acolhimento a enfermagem procede com a oferta da APS, como por exemplo atender a queixas clinicas: curativos, imunizações, verificação de dados vitais, visita domiciliar, grupos de educação em saúde, elaboração de relatórios, faz a solicitação de insumos médico hospitalares e exames. Algumas dessas ações são realizadas entre enfermeiros, técnicos de enfermagem e Agentes Comunitários de Saúde (ACS).
“Então de um modo geral quando ele chega (o idoso) é acolhido pela equipe, no caso eu estou falando da enfermeira da equipe (R5 Auxiliar de enfermagem)”.
Ao ocupar o espaço na linha de frente da assistência, o enfermeiro direciona as ações para atender à demanda do idoso que chega ao centro de saúde. Essa linha de frente reforça o perfil do enfermeiro numa relativa posição de poder não apenas na equipe de enfermagem, mas também perante a equipe multiprofissional. O poder conferido pela competência de supervisor é perceptível e parece haver uma relação hierárquica na equipe estando o enfermeiro nessa linha de frente:
“A gente (enfermeira) define se ele (o idoso) precisa de cuidados de enfermagem ou cuidados do auxiliar, visita médica de tanto em tanto tempo, apoio do Núcleo Ampliado de Apoio à Saúde da Família (NASF) (...) ou Programa de Atenção Domiciliar, outras (R6 Enfermeira)”.
Contudo, outros profissionais participam dessa trajetória de cuidados considerando que a atenção ao idoso é multiprofissional e interdisciplinar e se fundamenta para o cuidado integral na APS, cujo processo tem uma centralidade no profissional enfermeiro.
As relações de poder-saber no atendimento ao idoso
As necessidades de cuidado inscritas na integralidade implicam numa rede articulada que dê conta das demandas e das necessidades do idoso, dos cuidadores e da família. Diante das inconsistências da rede, das fragilidades de conhecimento em saúde do idoso, do modelo assistencial as possibilidades de cuidado de enfermagem se mostram limitadas convergindo para um fluxo reducionista e unidirecional para o profissional médico, conforme os relatos a seguir:
“Eu faço trabalho com idoso no atendimento individual com a família, as avaliações dos vários testes que você tem na avaliação do idoso (...) (R7 - Enfermeira). Porque a enfermagem só pode encaminhar pro médico generalista, então a gente fica meio restrito (...)” (R2 - Enfermeira).
Discussão
Em síntese, as interações estabelecidas pela enfermagem foram descritas de forma sutil destacando o enfermeiro como figura central, constantemente presente na linha de frente das práticas assistenciais da enfermagem, quais sejam, a consulta individual com família presente, grupos, visita domiciliar e encaminhamento para o Núcleo Ampliado de Apoio à Saúde da Família e médico. Assim, o suporte ao cuidado ao idoso de alguma forma reúne a equipe multiprofissional por meio do encaminhamento que o enfermeiro realiza para amparar as necessidades identificadas do idoso em atendimento.
Não obstante, o profissional de saúde vai experimentando a complexidade em torno do trabalho em equipe que tem estreita ligação com os saberes naturalizados, presentes nas práxis de cada profissão, e com as relações de poder no sentido de que as transformações acontecem continuamente (6. Nas práticas de enfermagem pautadas em seu empoderamento são fundamentais os atributos como disponibilidade, afinidade e capacidade tanto gerencial como de liderança, interação, relacionamentos, estabelecimento de redes de contatos, enfrentamento de desafios e atração pelo novo13. Compreendeu-se, com isso, que as interações da enfermagem pressupõem estabelecimento de redes incluindo usuários, famílias, comunidade e equipe multiprofissional para constituição do cuidado.
O atendimento ao idoso na APS veio colocar o poder contido no saber da Enfermagem. Não há dúvidas de que os cuidados existem fundamentados na ciência, uso da tecnologia e da experiência humana, na propositura de interromper ou bloquear o processo patológico, retratando o modelo biomédico. Quando constatado que a demanda de população idosa vem aumentando, constata-se também que as atuais práticas da enfermagem não sustentam o cuidado específico ao idoso e que predomina a visão centrada na doença, nas consultas por demanda espontânea, visitas domiciliares, cujo motivo são as doenças crônicas e consultas de acompanhamento14. A prática guiada pela doença é favorecida nesse cenário que por sua vez, não dá a devida atenção à vivência da pessoa idosa, seus hábitos de vida, sua cultura, a relação familiar e os cuidados de que necessita visando a funcionalidade.
A discussão no âmbito das práticas da enfermagem em relação ao idoso na APS, expõe sistemas de poder que dão privilégios a alguns enquanto que para outros não mas, também contribui para novas práticas e processos que possuem potencial para transformador15. Corrobora com esta afirmação os construtos de Foucault de que saber-poder se entrelaçam mutuamente de forma que qualquer exercício de poder criando objetos de saber que se transformam no próprio saber, o que cria e confere poder num ciclo de elevada complexidade onde um é condicionante e condicionado pelo outro16.
Ao receber um idoso na APS, o enfermeiro define o itinerário de cuidado o que envolve o conhecimento técnico e científico, a equipe multidisciplinar, valorização de outros saberes, corresponsabilização da família e do cuidador. Para além disso, a enfermagem se apoia nos fluxos regulamentados, protocolos de atendimentos, nos procedimentos operacionais padrão (POP) e todo arcabouço protocolar do serviço de saúde. Em consonância com os pensamentos de Foucault esse modus operandi da enfermagem, elucida a coexistência da regulamentação institucional do trabalho e a segurança do paciente, “ambos frutos de jogos de poder e saber, constituem-se como dispositivos de poder disciplinar, por meio dos quais as relações de poder entre profissionais e pacientes se materializam”12)(17.
Destarte, o conhecimento técnico e científico é essencial para a prática do cuidado profissional e inseparável das normas regulamentares das relações profissionais, gerando um discurso admitido como verdade e descrito como uma relação de saber/poder, através da qual se pode exercer o próprio poder18) . Nesse sentido, Foucault expõe o caráter disciplinar das instituições onde os homens são regidos e suas ações conduzidas, retratando o meio pelo qual a instituição regula as relações de poder, as quais só se pode estabelecer entre sujeitos livres17.
Desse modo, destaca-se que as relações de poder não estão presentes na regulamentação institucional, mas se alinha ao conceito de micropoderes e sua capacidade de penetrar a vida cotidiana, que não se exercem acima de algo, mas no nível do corpo, atingindo-o e controlando a sua conduta e o seu comportamento19.
A liberdade dos sujeitos, fica comprometida para além do caráter disciplinar ou segregativo das instituições, ou seja, quanto maior o grau de dependência dos cuidados de Enfermagem, menor o espaço para autonomia do idoso, família e cuidador e mais evidente fica a relação assimétrica de poder20.
Nessa análise e discussão, observou-se que a “avaliação funcional” do idoso não teve ênfase nas colocações dos sujeitos, contudo, na atenção Primária ela é essencial para encaminhamentos qualificados a partir de diagnóstico, prognóstico e julgamento clínico adequados, que servirão de base para as decisões sobre os tratamentos e cuidados necessários a esses pacientes15.
O que faz do cuidado ao idoso um cuidado único na perspectiva da APS e diferenciado das outras condições crônicas é o contexto de especificidade e não uma determinação protocolar, regulatória do corpo e do comportamento. O saber da enfermagem neste sentido se encontra na capacidade de um novo saber-fazer no cuidado ao idoso na APS. Isso induz à produção de relações que escapam das armadilhas de um contexto heterogêneo de saberes como é a Atenção Primária, e favorece que a enfermagem aprimore e fortaleça as interações em rede, compreendendo que o poder circula, conforme a concepção foucaultiana21. É necessário, portanto, que se compreenda as relações de poder e de conhecimento construídas e transformadas3 na dinâmica da APS.
Considerações finais
Buscar a compreensão das relações da enfermagem no cuidado ao idoso na APS permitiu desvelar as relações de poder e conhecimento que conferem limites profissionais da categoria nas práticas cotidianas de um cuidado ainda de pouca visibilidade pela categoria.
Investir em ações educativas e intervenções de apoio para aumentar a confiança e promover o desenvolvimento de habilidades para o cuidado ao idoso, direcionar o olhar e as ações para atender à necessidade do idoso que chega ao centro de saúde, constituição de rede articulada que dê conta das demandas do paciente e família e, portanto, as possibilidades de ação e intervenção pela enfermagem ficam reduzidas à clínica em detrimento do cuidado de enfermagem em saúde do idoso.
Colocar em relevo as interações profissionais da enfermagem para o cuidado ao idoso na Atenção Primária na perspectiva de redes de atenção implica na compreensão das relações de poder, historicidade e espaços das práticas em determinado contexto. É imperativo que o enfermeiro da APS repense criticamente a sua prática profissional e neste contexto em transformação, busque transformá-la. A abordagem gerontológica, tanto no âmbito da formação como da prática profissional, é uma necessidade emergente da enfermagem no que concerne ao cuidado ao idoso na Atenção Primária.
A enfermagem, neste sentido, encontra-se perante uma enorme possibilidade de imersão no campo da gerontologia, cujo cuidado muitas vezes sobrepõe à clínica quando valoriza a integralidade na condição crônica e na doença crônica. O cuidado prestado pelo enfermeiro na comunidade provoca outra questão que vem indiretamente neste contexto, que é a gestão dos serviços de saúde. Se não houver esta compreensão e se não se apreender o significado de redes de atenção, grande será a possibilidade de se continuar a sustentar a fragmentação em detrimento de um cuidado integral planejado e interdependente que contemple a pessoa idosa.
Contudo, as múltiplas interações que emergem e/ou se consolidam nos microespaços do dia a dia para a efetivação do cuidado ao idoso e, equitativamente, como produto de múltiplas interações humanas e sociais, requer, a priori, a formação de profissionais capazes de atuar intencionalmente sobre a cultura de cuidado na Atenção Primária.
Espera-se, contribuir para o conhecimento da enfermagem em saúde do idoso na Atenção Primária e incentivar o desenvolvimento de interações mais qualificadas. E ainda, afirmem práticas de enfermagem como ações sociais que se transformem em discussões, possibilitando, no futuro, que tais reflexões sejam compreendidas como uma prática respaldada pelo poder do conhecimento da enfermagem no cenário do cuidado em saúde.
Diante da escassez de literatura sobre a saúde do idoso na Atenção Primária como uma das portas de entrada para a rede de atenção e produção do cuidado, os dados encontrados estimulam o desenvolvimento de mais estudos, a fim de consolidar os conhecimentos nesta linha de pesquisa e contribuir com políticas públicas para o envelhecimento e saúde do idoso no atendimento nos serviços de saúde.
Foram limitações desse estudo a amostra restrita com o número reduzido de profissionais da enfermagem. Por se tratar de um estudo que propôs compreender as relações da enfermagem da APS para o cuidado ao idoso somente de um distrito sanitário impossibilita generalizações e pode ter interferido nos resultados.