1. Território
O nosso agora, enquanto coletivo, é adverso. Vivemos um presente de instabilidade que sacode nossas certezas, desperta estranhezas, angustias e pode acordar “monstros”. Tudo o que está vivo se move em suas múltiplas camadas individuais e coletivas e sabemos: as crises são indissociáveis do viver. Somos todos submetidos às irrupções assombrosas e pulsantes bem aventuradas ou adversas - do desconhecido, da realidade-; como neste momento diante da pandemia do COVID-19. Fomos levados a nos reinventar em nosso cotidiano e em nossos ofícios, gestos e comportamentos de forma a nos cuidarmos e sermos solidários. Mais do que nunca precisamos de literatura e é um privilégio tê-la como companhia e também poder compartilha-la.
As crianças são incansáveis aprendizes, ingressam no universo simbólico muito cedo quando lhes oferecemos condições necessárias: afeto, alimento e histórias. No momento atual, nas famílias é frequente que os adultos estejam assoberbados com múltiplos papeis e tarefas, preocupados com a sobrevivência, angustiados, por vezes calados e encolhidos. A linguagem pode ter se empobrecido e/ou se tornado excessiva. A convivência é intensa e nem sempre é fácil nem para os adultos e tão pouco para as crianças e jovens.
As crianças e os bebês costumam nos convocar a “cantar” o cotidiano, a falar com elas, contar histórias, mostrar e apresentar o mundo. Elas sentem a instabilidade dos adultos. Muitas vezes, falamos de nós e de nossos medos quando os ninamos, nos ninamos em conjunto. As crianças nos convidam para conversar e brincar, nos pedem para nomear aquilo que desconhecem e querem compartilhar suas experiências, descobertas e emoções. Para elas também essa travessia requer adaptações. Elas nos tiram as máscaras em todos os sentidos- concreto e simbólico- e estranham nosso silencio ou destempero. É incrível a potência dos bebês. Tenho acompanhado bebês que além dos pais só veem adultos de máscara, apesar disto eles não param de se comunicar com os olhos, com gestos, ficam ligados nos sons, nas melodias da linguagem e com frequência retiram a máscara dos pais para ouvir sua voz e ver seus lábios, enfim interagem intensamente. Conversar com as crianças com e através da literatura pode ser uma linda oportunidade para tentarmos nomear este momento tão desafiador.
2. Introdução
Nos sonhos (escreve Coleridge) as imagens figuram as impressões que pensamos que causam; não sentimos horror porque uma esfinge nos oprime, sonhamos uma esfinge para explicar o horror que sentimos... (Borges, 2005)
Criamos a esfinge no sonho, no mito, para explicar, elaborar algo que nos assusta e parece incontrolável, nos diz Borges; a partir do momento em que somos capazes de brincar no nosso pensamento, de brincar simplesmente, nos lançamos na criação ou na busca de representações, criamos ficções que possam nos abrigar, explicar, aquilo que sentimos; o mundo, o viver… A literatura é uma tentativa de nomear o inominável, de nomear o que não conseguimos dizer com a linguagem comum. A literatura, portanto, nos constitui, é criação nossa - humana e universal- diante de uma necessidade de expressão, de elaboração, de construção de sentidos, enfim, invenção poderosa e necessária à nossa sobrevivência psíquica. (Pereira Leite, 2005).
A literatura é um talento e um direito humano. Talvez sejamos a única espécie animal que “poema”, que cria, diz, representa e escreve narrativas. Assim fazendo inscreve uma possibilidade para nomear o assombro, o deslumbramento e o desconhecido. É fundamental compartilhar e fomentar esta capacidade poética entre gerações e grupos.
A Literatura se manifesta de múltiplas formas e aqui a estou utilizando em seu sentido mais amplo que compreende todas estas manifestações: as criações poéticas, ficcionais ou dramáticas, que encontramos nos diferentes níveis de uma sociedade e nas diferentes culturas (do folclore, lenda, chiste até às formas mais complexas das produções escritas das civilizações).
Trago exemplos, vivências com crianças, jovens e escritores e seus livros em uma exploração literária diversificada. Nestas o “reconhecimento”, o encontro, espaço de convivência, de resistência (resiliência) e quiçá a elaboração, estiveram presentes e do meu ponto de vista foram possíveis graças a esta linguagem que nos humaniza e abriga.
Quando lemos estamos em companhia de algo maior, que talvez corresponda à dimensão de nossa inquietude: o belo, o sútil, o encantador, a surpresa, o medo, o desconhecido; estes momentos enfim, onde nos vemos abalados, tocados por um detalhe, e que reacendem nossa capacidade de humor, de estética e de pensar. Na experiência da leitura literária como nos relembra Freud somos particularmente maleáveis, a narrativa “pode desviar nossos processos afetivos de uma direção e orientá-los para outra, e pode obter do mesmo material efeitos diversos” (Freud, 1919/2010). Quando lemos para ou com os outros este campo se amplia e se torna mais complexo. Michele Petit (2008) no diz que os textos lidos abrem um espaço em ruptura com a situação dos participantes e reavivam a atividade psíquica, o pensamento, as palavras e as interações dessas pessoas, devolvendo-lhes ecos da parte mais profunda delas próprias.
Como no trabalho analítico novas construções, redes, relações, itinerários de pensar surgem em conjunto.
Proponho aqui um recorte a partir desta área intermediária ou de transição, área onde o texto continua dentro e fora de nós para além das intenções, construções do imaginário original sonhadas pelo autor. Um espaço privilegiado e fértil, um espaço associativo onde podem apresentar-se temores, descobertas, encontros, enfim identificações, fantasmas, projeções, etc. Meu convite é observar e pensar a partir desta experiência o que é diferente do que se faz em uma exploração direta de uma obra. Este é, um espaço que permite uma circulação maior, creio eu, o ir e vir entre o mundo interno e o externo de nós mesmos e também na relação às nossas referências sociais e culturais. Um ativo espaço secreto e, portanto, transgressor de criação capaz de ser revelado pela literatura e outras linguagens artísticas.
Sabemos que a literatura é um lugar onde através do imaginário, de uma técnica e do projeto de artistas, escritores e poetas apresentam-se muitos cenários, representam-se e agem muitas emoções e encontramos cenas e situações humanas por vezes indizíveis. Michèle Petit (2019) em seu livro Ler o mundo afirma que ler ou escutar ler em voz alta, serve para abrirmos espaços onde a fabulação, o pensamento e a possibilidade de sonhar um futuro é possível. Afirmação que compartilho pois em situações extremas percebemos que a própria estrutura que o texto possui propõe um deslocamento do presente que torna isto possível, de repente despertamos e nos desprendemos da angústia podendo suportar, pensar e suplantar o momento presente que nos aflige e empobrece. São narrativas que nos fazem companhia e ativam nossa capacidade criativa. Recordo uma vez em que fazíamos uma intervenção de leitura em uma UTI de um hospital pediátrico em São Paulo. Uma mãe estava sentada ao lado de seu filho jovem em coma. Propusemos a ela uma leitura, ela aceitou e, quando a história acabou, emocionada perguntou: -Você acha que posso ler para ele também? Me disseram que era bom falar com ele, que ajuda, mas já não sei mais o que falar e me entristeço, e ouvir esta história me fez bem. ¿Pode deixar alguns livros?
Todorov em Introdução a Literatura Fantástica nos sinaliza delimitações entre o Inquietante o Fantástico e o Maravilhoso; ele apresenta o Fantástico como um gênero que tende a misturar-se com o Inquietante e o Maravilhoso distinguindo-se destes pelo seu caráter evanescente. Sendo assim ele ocupa o tempo presente onde leitor e personagem hesitam sobre a probabilidade real do ocorrido para logo compreender sua improbabilidade. Próprio ao Inquietante seria a certeza que as leis de realidade permanecem intactas e permitem explicar os fenômenos descritos, “neste o inexplicável é reduzido a uma experiência prévia, e remetendo assim ao passado” (Todorov, 2017). O maravilhoso por sua vez requer a possibilidade de admitirmos novas leis da natureza, só assim poderíamos explicar os fenômenos que nos surpreendem, incluem seres mágicos ou imaginários e, como nos fala de um fenômeno jamais visto, nos lança talvez em um tempo futuro. Estas são construções artificiais que fazemos para pensar e analisar a literatura e de certa forma se afastam do que vivenciamos, quando lemos estas obras ou lidamos com nossas angústias, não conseguimos criar assim categorias tão definidas. Freud também nos traz o inquietante como algo que remeteria ao passado; ele o descreve “como aquela espécie de coisa assustadora que remonta ao que é há muito conhecido, ao bastante familiar.” (Freud, 1919/2010) ele utiliza a palavra Das Unheimliche para referir-se ao inquietante e através de uma análise detalhada de diferentes fatores que podem transformar algo amedrontador em inquietante, como a preocupação com a morte, vivência tão ativada neste momento pela percepção de nossa vulnerabilidade durante esta pandemia, por exemplo. Ele nos apresenta o que para ele seria a natureza secreta do inquietante: sendo todo afeto de um impulso emocional transformado em angústia pela repressão, o elemento angustiante seria algo reprimido que retorna (sendo de pouca importância se ele originalmente era angustiante ou carregado de outro afeto). Sendo assim pois, o inquietante (Unheimliche) não seria algo novo à psique, mas sim algo que alheou-se à ela através da repressão...” o inquietante seria algo que deveria permanecer oculto mas que reaparece.
Freud nos convida a estabelecer uma distinção entre o inquietante que é vivenciado e aquele que é imaginado. Ele nos sinaliza que o inquietante da literatura é bem mais amplo que o das vivências, ele abrange todo este e ainda outras coisas, que não sucedem nas condições da vida pois o reino da fantasia, tem como premissa de sua validade, o fato de seu conteúdo não estar sujeito ao real e, além disto, o de estar submetido à complexidade criativa e imaginária de cada indivíduo: seus autores e leitores.
Proponho três situações, três contextos bem diferentes e de qualquer modo também eu faço aqui um recorte artificial para podermos refletir.
3. Cena 1: Le chants de baleines
“Há muito, muito tempo atrás; conta a avó de Lili, o oceano era povoado de baleias tão altas quanto colinas e tão serenas quanto a lua. Eram as criaturas mais maravilhosas que poderíamos imaginar” Desde então, Lili sonha em ver as baleias e de escuta-las cantar.
Djmel tem cinco anos, vem com sua mãe e seus irmãos para uma consulta no ambulatório de pediatria, eu não o conheço. Entre os livros dispostos sobre o tapete ele escolhe imediatamente, «O Canto das Baleias». Eu acho, ele me diz que é a Lua com os animais eu lhe respondo sim é a lua, as baleias e uma menina que se chama Lili. Djmel continua a me fazer perguntas e me leva assim a contar-lhe a história enquanto vou colocando meus livros sobre o tapete. Na página em que aparece a concha ele me pergunta o que é isto? Minha explicação lhe deixa surpreso, pergunto se ele quer que eu leia o livro, ele aceita mas é chamado para a consulta, quando retorna estou lendo para outra criança Celine (4 anos) e assim que finalizo Djmel me traz novamente «O Canto das Baleias» e começamos a lê-lo os três...uma conversa se instala em torno destas enormes criaturas que não mordem (¿não nos comem?) parece que estamos construindo uma nova ideia sobre destes animais em conjunto Celine me diz em segredo que ela já viu Baleias uma vez que ela estava na praia com seu Pai (eu lhe digo que ela tem muita sorte pois Baleias são difíceis de serem vistas) Djmel continua a pontuar a leitura com questões...ele fica um pouco inquieto, agitado...como é que se as baleias, tão grandes, não nos comem? E ele me mostra a boca da baleia. Na página seguinte nós passamos bastante tempo pensando na palavra “pier” (pontão). Logo em seguida Celine me diz, esta história parece com o chapeuzinho vermelho tem uma vovó, uma menina pequena (e eu penso, e animais misteriosos e grandes que podem nos comer). Na página seguinte a “Concha” novamente e os dois me perguntam o que é, eu tenho dúvidas se Celine realmente não sabe e pergunto a ela, ao que me diz:” - algo que o mar trouxe”. Sim, eu respondo, uma Concha.
Na história aparece o Tio da menina e Djmel me diz:- ele é malvado.
O tio Frederico é malvado pois vem interromper o tempo de sonho, o tempo da “revêrie” de Lili. Tio Frederico é malvado porque na Narrativa ele é violento como as vezes podem ser os adultos zangados. E Djmel é sensível a isto.
É frequente que os adultos não suportem que apresentemos para as crianças o imaginário, algo que não se refere à realidade concreta da vida deixar a criança imaginar o seu próprio medo, brincar com ele, confrontar-se com o desconhecido e encontrar uma forma de “poiesis” que acolha sua inquietude. Isto é imprescindível para que ela possa desenvolver-se plenamente. Muitas vezes a criança tem mais medo de sua própria autonomia, do que dos monstros dos contos com cuja violência, voracidade etc. podem se identificar, ou que podem representar seus temores objetos “maus” internalizados, fantasias de abandono, etc. As crianças necessitam deste tempo de brincar aparentemente “inútil”, com o imaginário e com a literatura em sua qualidade maior e necessitam da companhia de um adulto para acompanhá-las. “Tio Frederico” comete este equívoco, esquece o quanto o brincar é coisa séria, para além de prazerosa, ele subestima a transmissão entre gerações do gesto humano, do conhecimento e da cultura e qualifica de bobagens a “poiesis” narrativa, subestima enfim o quanto o brincar e a leitura de literatura nos auxiliam a nos construir como seres humanos capazes de aprender, situar-se na nossa própria história e na história no seu sentido mais amplo. E Djmel, que se agita, percebe o interesse destas histórias e da companhia para explorá-las.
Não por acaso, talvez nestes tempos estranhos que estamos a viver, mais uma vez somos levados a defender e a recorrer às artes, às letras e à ciência como presença obrigatória no cotidiano de todos e, principalmente das crianças e jovens, assim como a presença de adultos amorosos e competentes capazes de transmiti-las. É um desafio, mas enquanto ouço as crianças e jovens em meu consultório nestes tempos pandêmicos me surpreende a quantidade de indicações literárias, de filmes, músicas e séries que recebo, a borda de minha agenda se enche de livros que quem sabe lerei um dia e que eles querem compartilhar comigo. Também me surpreende uma grande quantidade de jovens que voltaram suas leituras preferidas da infância. “-Patrícia o que importa são as pessoas, o caminho da vida são as pessoas!”, me diz um jovem! Estamos em falta do encontro e da possibilidade de flanar e encontrar o acaso e neste momento as artes têm se revelado companhia necessária e território de encontro.
Loris Malaguzzi nos fala do Assombro, aquele deslumbramento que sentimos, compartilhamos todos, ele nos diz ser aquele que inclui “um sentido solar... de plenitude, de Eros, de festa que a criança consegue, quando certos acontecimentos geram assombro, ou quando se dá conta de estar frente a uma espécie de discrepância, de pequena voragem, ou em um tipo de vertigem. A brincadeira de esconde - esconde, por exemplo, é extraordinariamente estética. Aparentemente simples, porém a aparição do “outro” aquele distinto de mim, provoca arrepios nas costas, risadas, como pode provocar uma peça musical, basta um gesto ou um olhar nosso para que se possa potencializar o assombro de uma criança ou reduzir (Malaguzzi, 1988). Como maravilha e encantamento pode apresentar-se de repente de forma simples como para Djmel e Celine diante da concha, ou do pontão que nunca viram antes. Para Pedro, um menino de 11 anos que reencontro depois de um ano de atendimentos virtuais à distância, a própria vivência de estar ali, parece deslumbra-lo. Ele “flana” na sala, comenta todas as obras de arte que vê em detalhes; de repente percebo que ele observa através da janela a árvore que se balança com a brisa. Pergunto com o que ele está intrigado e ele me responde sorrindo: - que bonito, ela se mexe como o efeito “shaders” do meu jogo mas é ainda mais bonito. O Assombro é uma emoção complexa, delicada e forte que, paradoxal, contém em si a noção de deslumbramento e estranhamento bem como de admiração. Esta emoção sutil que nos põe alertas, a procurar significados do que vemos, sentimos ou reconhecemos e que, sim, é estranha e inquietante, mas nos instiga e acolhe.
Percebemos nesta vinheta Celine e Djmel na exploração da criação destes artistas, desta dupla narrativa, escrita e pictórica. Onde o texto literário é impulsionado pelas imagens, imagens que dizem e escondem, preservando com sutileza e sofisticação o mistério e o precioso universo onírico que se desprende. Teria mesmo Lili ouvido o canto das baleias. ¿Baleias tão altas quanto colinas existem? A Narrativa sinaliza o espaço ficcional (há muito muito tempo atrás), um desconhecido inquietante, intrigante, mas também revela diversas situações e emoções intensas tão presentes na vida das crianças. Emoções estas vivenciadas, sentidas ou desejadas por elas (a criança encontra fora dela uma representação de sua emoção e isto também pode ser inquietante); pode revelar medo de sua manifestação e das consequências desta. A literatura revela e dá forma àquilo que até então parecia inominável, que poderia permanecer secreto, oculto, mas irrompe...
4. Cena 2 - Tokyo Gho
Em Agora não Bernardo (McKee, 2019) um conto moderno fantástico para crianças pequenas, assim como no Manga Tokyo Gho que vou utilizar abaixo, as bordas ficcionais da narrativa estão bem delimitadas, claramente está colocada a improbabilidade de tal situação porém, em ambos, a proximidade quase crua da metáfora proposta, com situações angustiantes vivenciadas pelas crianças e jovens incomoda, inquieta e intriga (principalmente os adultos). São narrativas que permitem um distanciamento pela delimitação ficcional e também pela improbabilidade de seus personagens serem reais. Porém elas se aproximam fortemente de vivências inomináveis e assustadoras e nos permitem falar delas; estão presentes elementos que borram bordas de uma realidade aceitável e se aproximam dos fantasmas, está presente a ambivalência, o medo, a clivagem de sentimentos, o duplo, fantasias violentas e vorazes e de invisibilidade, enfim o sentimento de estranho.
Ana 18 e Paula 15 anos - este é um relato ficcional; novamente faço recortes e aproximações artificiais para trazer alguns elementos da presença do inquietante na literatura e dos ecos destes no espaço da análise. Com Ana iniciamos a análise na inquietude e na estranheza, áreas dissociadas e conversas de poucas palavras truncadas, delicadas, olhares fugidios. Um mal-estar contínuo fazia parte de suas falas e se instalava na sessão e concretamente na sala. Já Paula, falante, mas muito triste e tensa fisicamente, relata seu constante mal-estar, seu desconforto enorme com seu corpo, mas também de estar e ser, relacionar-se com amigos, com a família. Paula sente-se inquieta com o futuro, preocupada, me diz:- teremos futuro? Terei futuro? Como darei conta do futuro? E o mundo sobreviverá?.“ Ana sente-se inquieta, principalmente sofre com o seu corpo, corpo que não reconhece como seu e que a assusta, esta disforia de gênero que pressente, - como tenho este corpo? Ana reconhece-se transexual e isto a alivia. Esta percepção que a acalma. Ser, era frequentemente associado à perda do amor. Ana gostaria de descobrir uma causa orgânica para este sentir.
Ana e Paula são inteligentes e muito consistentes intelectualmente e também bastante talentosas, pertencem à mesma geração. Porém são também muito distintas entre si e isto é importante deixar claro, se as trago em conjunto aqui é simplesmente porque, em suas análises, a literatura foi um território mediador importante e enriquecedor de nosso trabalho e além disto o lugar de preferência de acolhimento e refúgio em suas infâncias e adolescências seja através da leitura de livros, quadrinhos, Mangás, Animes e Filmes, como também de suas criações. Em suas estantes prevalecem temáticas e narrativas juvenis, mas também clássicos e narrativas adultas como os Contos da Aia e os livros de Games of Trones que se avizinham das Crônicas de Narnia, Harry Potter, etc..
Com ambas a literatura foi um território de encontro consigo mesma, com seu mal-estar e com a análise e/ou analista. Os Animes, os Mangás, os filmes, Romances juvenis de superação, os Romances adultos fantásticos ou não... mas enfim na literatura em suas múltiplas formas e formatos (povoados de palavras e imagens, violência, sexualidade e poesia) tornam-se territórios de reconhecimento de afetos e de possibilidades de reconhecimento entre nós nestas narrativas, personagens e situações que por vezes eram estranhos e inquietantes (para mim), eram atraentes, “fofos” e até familiares em sua duplicidade (Familiar - heinlich, inquietante unheinlich). E em algum lugar pareciam retratar, demonstrar elas mesmas à procura de sua identidade. Poderiam ser em nossas conversas para além da metáfora também espaços que propiciavam a elaboração e a vivência de medos e desejos.
Escolho das preferências em comum de Ana e Paula um Mangá que muito “frequenta” meu consultório entre os jovens e, também, se destaca em sua categoria e gênero (descobri quando fui a uma exposição de quadrinhos no MIS de São Paulo): «Tokyo Gho» (Ishida, 2018).
Em Tokyo Gho o personagem preferido e o herói principal é Ken Kaneki, um jovem universitário tímido e muito estudioso, que é atraído por Rize Kamishiro, uma ávida leitora como ele. No entanto Rize não é exatamente quem ela parece ser, e esse infeliz encontro empurra Kaneki para as profundezas do mundo estranho dos Ghouls. Ken transformou-se um híbrido após um transplante de órgãos, um híbrido de Humano e Ghouls. Como na maior parte dos Mangás os personagens são jovens e um certo erotismo é claro e presente nos desenhos. O que em si já me intriga... o que atrairia tanto estas jovens que se dizem tão sem interesse pelas relações sexuais, por namoros ou qualquer tipo de aproximação mais ativa da sexualidade erógena?
Mas voltemos a Tokyo Gho; Os Ghouls são seres que parecem iguais aos Humanos por inúmeras características; semelhanças que transcendem a aparência física e somam a esta característica subjetivas e emocionais. São outros seres vivos idênticos aos humanos, mas que se alimentam somente de humanos crus e que se transformam em seres bizarros quando muito zangados ou excitados. O acidente fatal que levou Ken a tal transplante ocorreu justamente quando este resolve aceitar o convite de Rize, por quem se sente muito atraído e está apaixonado. Ao final do encontro Ken descobre que Rize era uma Ghoul justamente no momento quando ousa abraçá-la e, em meio a um grande esforço e com muito desconforto, ela começa a devorá-lo. Ele é salvo por um acaso, uma viga desprende-se de uma construção e a mata; ao serem socorridos Ken, que sobreviveu, é levado para o hospital e recebe os órgãos daquela que queria devorá-lo. Então, com este corpo transformado e cheio de novas e estranhas necessidades Ken Kaneki começa transtornado, desconfortável e inconformado com seu novo e inevitável existir. Esta mudança corporal lhe impõe novas necessidade vitais e um desejo destruidor, impulsivo e violento que ele recusa em uma luta constante. Para sobreviver Ken necessita de se alimentar de outros humanos, como administrar as transformações em seu corpo, como lidar com a náusea de tudo que lhe nutria e lhe era conhecido até então lhe causa? ¿Como ficam suas relações?
Paula adora Ken não perde um episódio e compra todas as revistas que chegam as bancas, desenha e reproduz as cenas e os personagens, são desenhos fortes, sangrentos, sombrios e inquietantes de diversos tamanhos, estes alarmam a mãe que vê e teme que sejam sinais de algo grave: desorganização ou depressão. Ana pesquisa doenças raras na internet e desenha quadrinhos onde os personagens sofrem e vivem transformações decorrentes destas doenças mas, com soluções semelhantes às de Ken, de alguma forma, reparatórias e conciliatórias com a dualidade de seus desejos e identificações. Elas têm consciência porém de que isto possa parecer bizarro aos outros e apesar de excelente qualidade de seus trabalhos os esconde. Sem conhecer a trama de Tokyo Gho a princípio os desenhos de Paula me impressionavam por sua expressividade, aspecto sanguinário e desesperado. Ao ler finalmente o Mangá reencontro o desconforto de Paula, apesar da ausência de sua sofisticação, e os elementos estranhos dos quadrinhos de Ana. A história aparentemente fantástica me incomoda, me causa estranheza e inquietude por suas soluções aparentemente fáceis, cruas e a tradução possível e quase explicita que se poderia fazer com a enorme transformação pulsional que a entrada na adolescência traz. Estas jovens aparentemente “assexuadas”, procurando se esconder atrás de roupas e casacos largos e longas camisetas, encontram- se nesta vivência hibrida de Ken onde o desejo mais primário é contido em um esforço enlouquecedor, estéril e abafador porque poderia ser assassino e estranhamente aniquilador (principalmente dos afetos e das relações conhecidas). Ken é um bom jovem e mais do que isto legítimo, não escolheu este destino e nem esta transformação, isto lhe foi imposto; tão pouco escolheu esta solidão inicial que agora se amplia neste sentimento de não pertencimento a dois universos o seu de origem e este outro ao qual ninguém pertence, a não ser aqueles que estão também em transformação, nem é desta espécie mais e nem da outra totalmente. Se como gênero literário é fantástico e improvável de realidade, de todo modo apresenta-se de maneira inquietante, seja para seus próprios personagens que se assemelham física e emocionalmente a outra espécie, percebem sua estranheza e reivindicam sua legitimidade pois necessitam dela cruamente para sobreviver; seja pela metáfora fácil que se impõe com a vivência da puberdade.
5. Cena 3: Tenho Medo
“É tão grande o silêncio que se ouve o murmurar do vento entre as árvores. Tudo está escuro. Apenas umas poucas estrelas fazem companhia à lua no céu. Eusébio não consegue dormir. Está com medo” (Da Coll, 2013).
Para concluir trago uma terceira cena agora do lado dos escritores e editores, é um exemplo duro, onde a realidade das vivências na Colômbia com as casas invadidas pelas milícias, o sequestro dos jovens, grupos familiares inteiros tendo de ser deslocados, onde a guerra cola na narrativa ficcional infantil e torna real o pior fantasma de Eusébio. Desta realidade vivida por todos adultos e crianças surge a necessidade do autor e de seu editor de reescrever uma nova versão onde possam também constar estes medos reais, onde apesar destas angústias infantis ligadas a separação, ao silencio da noite, possamos também nomear mesmo, que protegidos pelo espaço ficcional da narrativa, eventos reais e temíveis com os quais convivemos.
Tenho Medo de Ivan da Coll é um pequeno livro (Da Coll, 2006), um álbum ilustrado onde narrativa pictórica e escrita se sobrepõe e completam, é simples e sofisticado ao mesmo tempo. Ele tem duas versões, gosto das duas e as considero excelentes.
Seus personagens são animais, o que permite uma configuração de conto infantil, um distanciamento necessário e possibilita a delimitação da história para as crianças. Poderíamos dizer que aqui estamos falando de angústias infantis: dos medos de dormir, de sonhar, de se separar, dos “monstros que podem ter lá fora na noite” e nos nossos sonhos e pesadelos. Nas duas versões encontramos o pequeno Eusébio que tem medo de dormir... e precisa da companhia de seu amigo Ananias. Eusébio nomeia todos os monstros; aqueles com chifres, os transparentes, os que voam em vassouras, os que se escondem no escuro, os que cospem fogo... “-Entendo, lhe diz Ananias”, que lhe tranquiliza explicando que todos estes também sentem medo, não conseguem se divertir, que também não gostam de sopa e nem de tomar banho, que se sentem sozinhos e não conseguem ficar tranquilos com os barulhos e Eusébio pergunta: ”- É verdade?; -Claro que sim.”, lhe responde Ananias, tranquilizando-o e lhe explicando estes territórios inquietantes e por vezes ambíguos, que são o desconhecido, a imaginação e o medo de separação, entre outros. Na segunda versão, a história se transforma para incluir cenas com cores vibrantes, que apesar da representação simbólica dos desenhos coloca as crianças realmente em contato com eventos da atualidade. Sem nomeá-los diretamente o autor introduz uma dimensão ética: introduzido o mal-estar e o silêncio que a guerra trouxe através de duas frases e das ilustrações:- Não conseguem se divertir como bons amigos, -Para eles a tranquilidade não existe! Ficam assim delimitados territórios entre os personagens e surge a possibilidade de nomear, brincar e imaginar saídas também para estes medos reais, para a percepção do sofrimento e silêncio dos adultos diante do terror, dá lugar ao real e à violência, mas trazendo-a através de uma representação simbólica. Nesta narrativa temos o encontro do inquietante, das fantasias mais sombrias infantis representadas ao lado do inquietante disruptivo e violento das vivências reais do presente. Ambos os livros continuam a ser editados e fazem sucesso entre as crianças.
Maria Emília López em seu livro «Um Mundo aberto - Cultura e primeira infância» (López, 2018) traz uma vinheta da leitura de «Tenho Medo» (a versão mais recente) em um grupo de crianças de 2 a 3 anos. As professoras, ao lerem o livro, apesar de terem gostado ficam inquietas, principalmente com uma ilustração em que um monstro rouba o filho de um pai que se vê impotente e apesar do filho lhe estender os braços não pode fazer nada. Esta cena não é resolvida nem pelo texto e nem pela imagem seguinte. Na primeira leitura para as crianças isto aparentemente passou desapercebido, na segunda porém uma menina diz: - Olha o filhinho está sendo roubado! Todas as crianças então comentam a cena preocupadas. Os professores escutam as crianças conversarem e as acompanham em suas reflexões, até que um menino que é apaixonado por este livro diz:” - Não se preocupem podemos devolvê-lo!” e faz com as mãos o gesto de pegar o filho que havia sido raptado, para devolvê-lo para o pai. A partir deste dia as crianças incluem à leitura que a professora faz, de «Tenho Medo», esta frase e este gesto.
Vemos através da vinheta a importância de propormos temas intensos e difíceis às crianças. A importância de termos autores que tragam estes temas intensos e que hajam adultos que possam compartilha-los e acompanhar as crianças nestas leituras; a importância destes momentos de trocas e vivência conjunta entre gerações.
A relação entre os adultos e as crianças e os adolescentes é submetida a grandes mudanças. Estas repousam em conflitos necessários, vividos na lida entre as exigências do prazer e da autonomia e as exigências da realidade. O equilíbrio da criança e do adolescente é construído com base nestas diferentes experiências. O universo dos livros, contos, da literatura, fala muito sobre isto, conhecimento colocado a prova através dos tempos por muitas crianças, jovens e adultos.
6. Conclusão
Freud em seu texto «Transitoriedade», vê na desesperança do poeta uma revolta psíquica contra o luto de imaginar que a fruição e a beleza possam ser transitórias, ele nos diz “- Superado o luto, perceberemos que nossa elevada estima dos bens culturais não sofreu com a descoberta de sua precariedade. Reconstruiremos tudo... talvez em terreno mais firme de modo mais duradouro do que antes...” (Freud, 2016/2010). Já há quase dois anos em meio à maior pandemia de nossa época, temos trabalhado e acompanhado pessoas, trocado com colegas de vários campos do conhecimento, assistido e participado de diferentes encontros virtuais para conversar, compartilhar, ver e ouvir artistas, trabalhar. Lá fora, no espaço público, em meu país com tantas dificuldades, mas também na América latina e outros lugares do mundo, identifico situações inquietantes, indignas, injustas e até promovedoras de horror e desesperança; as desigualdades sociais se ampliam e se acirram, me parece. Nossas ações em campo estão bastante reduzidas e sobrevivendo sob variadas restrições. Porém, de esforços individuais e grupais, vejo surgir inciativas audazes e lindas, na criação de caminhos para a realização de nossos ofícios. Ações em prol das crianças e jovens, da educação, da saúde e da cultura; mas também na direção daqueles que estão sendo mais atingidos por esta enorme crise sanitária e política. Isto me leva a pensar para além da tristeza e do medo e enxergar que continuamente, apesar da repetição, vamos reconstruindo e inventando enquanto pessoas e grupos. Somos seres fabulosos nesta capacidade de se reinventar e por isto quis trazer, através destes relatos, destes autores: protagonistas de todas as idades, a importância de nosso ofício, da criação de espaços de escuta, que deem voz às pessoas.
Acompanhar estas novas gerações é mergulhar em um mundo muito surpreendente, rápido, diverso, rico e complexo. Neste sentido evidencia-se a importância da arte e da cultura na infância e juventude. Esta experiência com muitas linguagens, signos, referências e sentidos. No que diz respeito a isto o livro de literatura juvenil é uma plataforma maravilhosa que nos oferece múltiplas possibilidades, nos ampara e acolhe as crianças. Para atravessar estes tempos difíceis é necessário nos assentar em nosso repertório humano e lembrar de ouvir as pessoas. Temos que acolher este presente, investigar para fomentar a possibilidade de sonhar com um futuro possível, juntos.
Quis lembrar a força da literatura enquanto linguagem mediadora das angústias e da “poiesis” do ser humano. Através dela e destes múltiplos olhares acompanhados daqueles das crianças e jovens, é possível sinalizar e expressar deslumbramentos, fazer descobertas e conquistas; revelar temores, maravilhas e horrores que a realidade apresenta; mas também encontrar um mundo de repertório vasto e generoso. A riqueza e a palpitação do viver em cada interlocutor, comunidade, cultura revelam-se. “Intercâmbio necessário que traz e traça uma atualização em nossa própria contemporaneidade e constrói e sinaliza balizas neste mundo aparentemente sem bordas para e dentro de cada pessoa... Nesse exercício de escuta verdadeira e sensível em relação ao assombro revelado pelas crianças, e por todos nós neste momento, vamos descobrindo caminhos, apontados por esses investigadores incansáveis que elas são, que se colocam, na maioria das vezes, em uma relação muito íntegra com o mundo” (Pereira Leite, 2018).
A meu ver desta forma investiremos na movimentação necessária que nos permitirá viver em um mundo mais solidário com novas possibilidades de nos abrigar.