Introdução1**
A investigação exaustiva das análises normativas sobre a escravidão dos negros, feitas por escolásticos dos séculos 16-18, é um projeto recentemente iniciado e sem prazo para terminar2. Com efeito, muito foi feito no tocante ao estudo da recepção das ideias de Aristóteles sobre a escravidão natural - retomadas na primeira metade do século 16, no intuito de sustentar mecanismos de conquista territorial e de propriedades, em geral, dos ameríndos. A descrição e a interpretação da recusa, por intelectuais como Francisco de Vitoria O. P. (1483-1546), Domingo de Soto O. P. (1494-1560), Bartolomé de Las Casas O. P. (1474-1566) e José de Acosta S. J. (1540-1600), da condição de escravos por natureza aos aborígenes do Novo Mundo foram feitas com bastantes detalhes. No entanto, a carga ideológica - além dos aspectos econômicos - e os elementos morais e jurídicos da escravidão dos negros africanos, nos legados escritos de escolásticos pré-modernos, são, ainda hoje, conhecidos de forma muito fragmentária e deveras lacunar.
A partir de sua posição de catedrático da Universidade de Évora (Portugal), no final do século 16, na qual se destacou como expositor e intérprete da teologia e da filosofia prática de Tomás de Aquino, foi Luis de Molina S. J. (1535-1600) o primeiro autor a considerar de forma circunstanciada o tema da escravidão negra (De iustitia et iure I, tract. II, disp. 32-40). As suas nove disputationes sobre o assunto, de cunho rigorosamente normativo, marcam a discussão sobre escravidão dos negros com a conjunção de três aspectos: (i) o debate em torno da licitude da servitus no domínio do direito das gentes e civil, (ii) a convicção de que o eixo de análise da escravidão está na justiça comutativa (a venda, a compra e a propriedade de escravos ou, em suma, a negociação de escravos) e (iii) a percepção de que, indo além do âmbito público da justiça do tráfico de escravos, o locus definitivo de realização da ação justa, dando forma a um caráter justo, havia de achar-se na consciência reta dos agentes implicados3.
A contribuição de Molina serviu de referência para muitos autores depois dele. Isso não foi diferente no tocante a Diego de Avendaño S. J. (1594-1688), que, atuando no Vice-Reino do Peru, produziu um texto denso sobre o comércio de escravos negros, constante no Volume I do seu Thesaurus indicus (1668), e que teve significativa repercussão. Avendaño, porém, ao evocar motivos distintos, até mesmo de natureza não normativa, em favor da condição de escravidão dos africanos (ligados ao costume, à cultura, a convenções, a urgências políticas, ao projeto católico nas Índias, etc.) e associá-los ao probabilismo moral, tanto sintetiza discursos em evidência ou padrões opinativos sobre a legitimidade da escravidão dos negros, no século 17, quanto oferece materiais para a compreensão da emergência de uma ideologia de que faz da transação e da posse de escravos negros uma conjunção de normalidades. Em resumo: tem-se no Thesaurus I de Avendaño elementos que, se reconstituídos em detalhes, lançam luzes aos múltiplos componentes de uma ideologia que convenciona a condição de escravos dos negros, ideologia essa que se constitui e se fixa justamente à época de Avendaño. Para entender esse processo, as críticas de Francisco José de Jaca O. F. M. Cap. (c. 1645-1689) ao conjunto de sentenças oferecido por Avendaño talvez apontem para nexos ignorados ou despercebidos na pesquisa histórico-conceitual sobre a escravidão negra. Se postos a descoberto, porém, esses nexos podem ajudar na compreensão, no campo da licitude moral e legal, de consciência e pública, da cultura ou mesmo do sistema político e social de escravidão que se manteve até fins do século 19. A rejeição, por Jaca, da moral probabilista de Avendaño oferecida e aplicada para as questões de consciência em torno da negotiatio e da possessio de escravos ganhou expansão por parte de Epifanio de Moirans O. F. M. Cap. (1644-1689)4, que escreveu sobre o tema quase à mesma época que Jaca. Jaca e Moirans produziram reflexões teológico-filosóficas valiosas sobre a escravidão dos africanos. De fato, convém analisá-las em conjunto e comparativamente.
Crítica da escravidão negra e probabilismo: Diego de Avendaño
No relato de Avendaño sobre o tráfico e a posse, nas Índias do Ocidente, de escravos trazidos da África5, encontra-se, antes de mais nada, uma síntese cuidadosa dos mais importantes pareceres normativos sobre o assunto no século 17 - sobretudo dos pareceres escritos por autores jesuítas. O texto de Avendaño teve muitos leitores e foi, é claro, objeto de debate6. Embora existam leituras que fazem de Avendaño um pensador que condenou de forma explícita e inequívoca o tráfico de escravos7, e inclusive simpliciter a escravidão como instituição8, a aparente ambiguidade de seu texto, sobretudo em função das ideias probabilistas em sua filosofia moral9, traz obstáculos ao intérprete - ainda que Avendaño critique de modo notório o contractus de escravos10. Ao examinar a passagem principal de Avendaño sobre o tópico, ou seja, Thesaurus indicus I, tit. IX, cap. XII, § 8, nota-se que o parágrafo inclui (i) descrições das conclusões relatadas por outros autores jesuítas (Tomás Sánchez (1550-1610), Luis de Molina, Fernando Rebello (1546-1608), Esteban Fagúndez (1577-1645), etc.), e também (ii) as determinações do próprio Avendaño, com opiniões tanto contra quanto a favor do dito comércio11.
Avendaño, emulando o que Molina et alii já haviam feito, acima de tudo vincula «a transação (contractus) de escravizados etíopes (africanos) « 12à inspeção da consciência. Os diversos elementos de uma commutatio são objeto de análise moral. Uma vez que a posse de escravos através de compra constitui um tipo de contrato, esse mesmo deve ser justo13. Avendaño trata da licitude dos atos dos contratantes. No cerne do debate sobre a escravidão negra está a inspeção da consciência moral dos contratantes. Em última análise, a retidão da consciência dos envolvidos se remetia à convicção da justiça dos títulos de escravidão14. Embora Avendaño passe a limpo posicionamentos de muitos outros teólogos jesuítas, enfocarei aqui, para não cair em repetições, a sua síntese descritiva e avaliativa dos relatos de dois autores: Tomás Sánchez e Luis de Molina15.
Os termos discutidos por Avendaño são os de um comércio, uma transação, uma comutação existente, em que contractus encerra basicamente duas situações: compra-e-venda e posse de escravos africanos16. Não se trata inicialmente de criar ou formular leis sobre esse contrato, mas de discutir a sua legitimidade normativa levando várias áreas de interesse em consideração (política, econômica, jurídica, etc.) - tanto em normas quanto em práticas -, dado que os católicos ibéricos comumente praticavam o comércio e a posse de escravos, na Europa e nas Índias. O debate sobre a correção moral do contrato deve influir em leis e práticas, sobretudo em práticas, as quais, com todas as suas circunstâncias, mais diretamente tocavam o foro de consciência, ao qual os teólogos, como confessores ou pelo menos instrutores de confessores, tinham acesso.
É deveras revelador que, desde o começo, Avendaño fala desse contrato como coisa «perigosa para as consciências cristãs». Por meio de «regras da justiça», é difícil «encontrar a plena segurança» nessa transação. Ao afirmar isso, Avendaño não expressa um posicionamento: ele apenas situa o tema no âmbito do inseguro e, nisso, do perigoso para a consciência. Há, por certo, que deliberar e ouvir autoridades17. Por isso mesmo, Avendaño busca pareceres escritos e se deixa instruir, sobretudo, por Sánchez, Molina, e Rebello, sempre indicando as suas obras. Como um todo, além dos últimos autores, é verdadeiro que Avendaño lê com atenção e explicitamente menciona em seu texto, como base que deveria bastar «para que se divulgue (ou: declare) algo»18 acerca da matéria, também os seguintes autores: Tomás de Mercado O. P. (c. 1525-1575), Martín de Azpilcueta (c. 1491-1586), Pedro de Navarra, Francisco García, Fernando de Castro Palao (Ferdinandus de Castro-Palao S. J. (1583-1633)), Juan Bautista Fragoso S. J. (1559-1639), Esteban Fagúndez e, ainda, Juan de Solórzano Pereira (1575-1655)19.
O primeiro autor considerado por Avendaño é o teólogo andaluz, especialista em moral e casuística, Tomás Sánchez20. Avendaño descreve diretamente seis pronunciamentos que revelam as sentenças de Sánchez sobre o caso do comércio de escravos21: (i) Sánchez classifica como injusta a contractatio em questão; sendo ela um erro relativo a uma comutação, restituição é exigida. Sánchez defende o seu ponto alegando que os «títulos de escravidão» em geral (em muito maior quantidade) são injustos - só alguns poucos escravizados o seriam com justiça, mas isso é indistinguível entre os capturados e negociados22. (ii) A justiça dessa transação dependeria da verificação dos títulos e da constatação de que há escravos com justiça, pelos mercadores. Para Sánchez, essa situação de verificação ideal é «moralmente impossível» e, ademais, a «diligência» dos mercadores é «completamente superficial»23. (iii) Sánchez já pode dizer, com base em (i) e (ii), que os mercadores que adquirem «em grande número» os africanos «miseráveis» trazidos da «Etiópia» ou, no caso, África negra «pecam mortalmente» e a restituição lhes é uma obrigação - excetuando-se se fazem «diligência» e estão certos do «justo título do cativeiro»24. Curiosamente, essa margem de possibilidade é deixada em aberto, ao mesmo tempo em que é considerada algo que, na prática, não pode ser alcançado. (iv) A partir do quarto ponto, a perspectiva de Sánchez muda: ele se posiciona sobre a transação de compra e posse por parte de um terceiro (minha expressão): depois do vendedor na África, depois do mercador que comprou do vendedor da África, agora alguém que compra desse mercador. Seguem valendo (i) e (ii) - e em tese a primeira parte de (iii) -, para quem compra escravos de mercadores que trazem os produtos da África. A partir daqui, contudo, «depois (...) de uma ou outra venda feita (os compradores e possuidores) não estão obrigados a tal diligência, porque já não é possível que seja conhecido em função de qual título (o escravo) se fez cativo, e dessa maneira a diligência seria inútil»25. A situação parece ser a de vendas e posses a partir do terceiro comprador que, por sua vez, revendeu para um quarto elo da cadeia.
Como dito, Sánchez propõe sentenças em que o agente já é um elo distante na cadeia de compra e posse de escravos. (v) Afirma que »o que compra um ou outro de boa fé, ainda que sobrevenha posteriormente uma dúvida, se, porventura, tenha sido capturado justamente, não está obrigado a dar-lhe liberdade, se, feita a diligência, não puder depreender a verdade, porque na dúvida a condição do possuidor é a melhor) « 26. O possuidor, aqui, é o comprador. Seja como for, (vi) se a compra é com »má fé« ou »dúvida sobre o título de cativeiro«, o agente »peca mortalmente«. Sánchez aceitaria findar »a dúvida por razões prováveis«; mas, se isso não há, a restituição da liberdade é obrigação. Em caso de posse com má fé a preferência do direito recairá sobre o outro: »o próprio etíope, que tem o direito natural e a posse da sua liberdade«. Sánchez faz, contudo, uma curiosa limitação, aqui: o dito é válido a menos que o comprador adquira de alguém que »tenha tido boa fé«; nessa situação, o novo comprador »entra« no direito do comprador anterior bona fide. Ele não estaria, então, »obrigado a dar liberdade« 27.
Avendaño entende que, por (i) e (ii), a »contratação« de escravos é explicitamente contradita. Ela é injusta (i) em geral porque (ii) não há como ter verificação exata dos títulos e, quando há, sabe-se que a diligência é mínima; em regra, isso não acontece. Houvesse diligente verificação, o parecer inicial poderia ser diferente. Também os pronunciamentos (iii) e (iv), na primeira parte, são manifestamente adversos à transação. Com a segunda parte do quarto pronunciamento, porém, Avendaño tem discordância: se um (quarto) elo de compra e posse já não tem como fazer diligência, o resultado seria o de que a liberdade deveria ser restituída. Para Avendaño isso se toma dos pronunciamentos (i) e (ii), que viam a contratação como injusta em geral e exigente de restituição, justamente porque os títulos teriam de ser verificados com exatidão. A diligência deve ser feita (ou poder ser feita) e deve dar em bom resultado para que a compra possa ser feita com legitimidade; do contrário, »o direito de liberdade« fica com a pessoa escravizada. Em todo elo da cadeia de contratos a diligência tem de ser feita e ratificar o status do escravo. Do contrário, vale o que se suspeita da primeira venda: que ela é injusta e viciosa, desde a origem - e como tal conhecida e sem verificação qualquer. Avendaño enfatiza o contexto de conhecimento das circunstâncias morais desse contrato: «é manifesto que os que compram daqueles que trazem da Etiópia (África negra) esta mercadoria abundante não se preocupam com a investigação do título, e muito menos os compradores subsequentes; logo, os que compram não podem possuir (tais mercadorias) com consciência segura»28. Sabe-se que a matéria é insegura, essa insegurança se transmite, e a diligência deve ser exigida em cada elo da cadeia de transações. Avendaño insiste que não pode haver um elo que se isente dessa demanda.
Em sua apreciação de Sánchez, Avendaño mantém as conclusões (i) e (ii) do próprio Sánchez como fundamentais e inegociáveis. Não é surpreendente, pois, que o quinto parecer do teólogo andaluz - invocado de forma similar por Molina (cf. abaixo) - seja recusado. Para Avendaño, o que começou com boa fé - em um elo já distante? -, mas é vertido em dúvida, sem solução após esforço para explorar a verdade, só pode ter como consequência »a posse em favor da liberdade«. Nesse caso, caberia julgar »segundo as coisas que acontecem comumente«, e o rumor difundido e a opinião geral eram de que »comumente o título de escravidão« era injusto - exatamente essa opinião comum e que imperava precisaria ser vencida pela imposição de uma diligência. A situação é comparável ao caso em que um comprador de boa fé soubesse depois que a venda foi feita por alguém que, presume-se, »o mais provavelmente« roubou a mercadoria comprada - roubou, pois, um ser humano para fazer dele escravo -, e a coisa roubada, um ser humano livre, é especialmente valiosa. Se a diligência não deixa alguém certo de que o escravo era posse legítima de outro, o escravo não pode ser retido e a sua liberdade tem de ser devolvida - para Avendaño, isso se segue do parecer (iii) de Sánchez. Avendaño interpreta ainda o entendimento que Sánchez tivera, nesse contexto de ações, do princípio »in dubio conditio possidentis melior est«: se alguém, »com boa fé, começa a estar de posse de algo«, e »se, em seguida, julga, com igual probabilidade« para a legitimidade da posse e para a não legitimidade da posse, e se, ademais, após, »suficiente diligência, não pode vencer a dúvida, pode (então) retê-la, porque, na dúvida em mesmo grau, é melhor a condição do possuidor«. Se houvesse boa fé, dúvida conseguinte, exame e equipolência de pesos sobre a legitimidade ou a não legitimidade da escravidão, o possuidor poderia manter o bem adquirido. Avendaño insiste, contudo, que »não há igual probabilidade para ambas as partes, mas certeza moral (moralis certitudo) do título injusto, ou uma tal probabilidade que certamente (certe), o mais das vezes (fere), vence a dúvida; logo, não é possível que (o dono) possua um escravo« 29.
Sobre o parecer (vi), finalmente, Avendaño - sempre retomando as conclusões (i) e (ii) do próprio Sánchez -, dá atenção à »limitação« sugerida por Sánchez. Ele recusa a licitude aberta por esse último, porque «o que compra de má fé não pode fazê-la cair (simplesmente) a partir da boa fé de outro, a qual procedia por ignorância, e nele cessa». Avendaño põe foco na má fé do último comprador: esse está persuadido de que »o título de escravidão é injusto« - o que tem dimensão de certeza devido à fama explícita do negócio -, e a sua compra na posse desse saber (má fé ou com má fé) não muda o fato de possuir escravos ilícitos só porque o vendedor tinha boa fé nos atos que o levaram à sua posse. O argumento de Avendaño é comparável a uma posse obviamente ilícita: se alguém soubesse que algo é roubado e é tido »por outro com boa fé» e comprasse, então, o item roubado, o primeiro agiria em má fé e não estaria coberto pela «boa fé de outro». A obrigação de restituição seria manifesta. Seja como for, Avendaño nota que a sexta conclusão de Sánchez enfatiza não a certeza moral do erro em tais contratos, mas que a compra com dúvidas (razoáveis) e, nisso, com má fé sobre a condição real dos produtos humanos leva à convicção de que a compra e a venda são injustas. »Sobre o duvidoso» título de escravidão »jamais pode ser depreendida a verdade«. Isso basta para afirmar que a má fé nessas comutações é irrevogável: ela é a situação moral inequívoca. É claramente o caso que «a primeira posse dos que compram dos Mercadores tenha sido com dúvida, ou tenha devido ser»; a dita negociação, então, é viciosa desde a origem: »possessores ulteriores não podem reclamar título de posse»30.
A notável análise que Avendaño faz dos pareceres de Sánchez sobre o comércio de escravos da África para as Índias - em que Avendaño confirma a certeza moral do erro de tal contractatio em todos os seus elos e interpreta o princípio «in dubio conditio possidentis melior est» sempre em favor do escravizado31 - é seguida pela revisão das longas considerações de Molina. Avendaño resume seis posições principais de Molina sobre a licitude da escravidão e do comércio de escravos africanos. Independentemente da aceitação por Molina da escravidão em si (ou como instituição), segundo uma tipologia de razões pertencentes aos ius gentium - a qual Avendaño endossa32 -, Molina é retratado como alguém contrário ao comércio de africanos, sobretudo porque os motivos de escravidão originais são em regra injustos, nunca são conferidos e tampouco podem, em regra, ser objeto de certificação33. Segundo Avendaño, (i) é um ponto claro que, mesmo reconhecidas por Molina razões a favor da escravidão baseadas no direito das gentes - ou três conclusões »condicionais« que indicam licitude na escravização e no consequente comércio, se certas condições se verificam -, como quarta conclusão, »em sentido absolute« (absolute), Molina afirma que a negociação é «injusta e iníqua». Os seus agentes »estão em estado de condenação eterna«, a menos que se pudesse invocar como desculpa a »ignorância invencível«, algo que Molina não arrisca afirmar de ninguém no contexto daquele comércio. Em geral, a compra-e-venda de africanos escravizados era ilegítima no começo mesmo do negócio, porque as escravizações não eram resultado de justiça corretiva, depois de uma guerra justa - como, a modo de exceção, tinha sido o caso em alguns conflitos antigos entre lusitanos e angolanos. Em regra, os conflitos bélicos travados contra os africanos - e mesmo entre os africanos - eram, antes, motivados por cobiça, e não por vingança contra alegadas ofensas graves34.
(ii) Além disso, ainda que tal sistema pudesse tornar realizável a superação da barbárie e a propagação bem-sucedida da fé, esses objetivos deveriam ser perseguidos em »consciência sã« (salva conscientia) - sobretudo, a fé não deve ser estabelecida através de iniuriae e contrariamente ao querer dos recebedores da mensagem35. (iv) Molina também considerou que, se o comprador tivesse adquirido escravos de alguém que inicialmente possuía escravo(s) em boa fé, mas ganhasse (esse vendedor), depois, dúvidas sobre o status do(s) item(ns) vendido(s), e, procedendo o comprador a uma investigação que, apesar dos seus esforços, não o levasse a ver plenamente a verdade da questão, não haveria, então, para ele, obrigação estrita de plena restituição, mas só de restituição parcial ao escravo, »de acordo com o grau da dúvida« (iuxta dubii quantitatem). Afinal, o comprador »sucede ao direito de outro (do vendedor)«, para quem não caberia obrigação de restituição depois de tal »diligência«, dado que valeria para ele »a melhor condição do possessor«. No quadro descrito, trata-se, a rigor, de um contrato de venda entre um comprador inicial de boa fé (e então vendedor, que passa o seu bem adiante) e um comprador secundário. Avendaño descreve dificuldades que os intérpretes tiveram nesse ponto, sobre o relato oferecido por Molina, pois no caso de haver dúvidas na situação descrita o novo possuidor simplesmente se igualaria ao vendedor em direitos legais e obrigações - e o vendedor, aparentemente, não estava sob a obrigação de qualquer restituição. Avendaño insiste que, mesmo que Molina não exigisse restituição de liberdade no caso do novo comprador, ele havia prescrito, sim, alguma restituição, embora, novamente, seja correto dizer que Molina não especificara de modo inequívoco qual »parte« deveria ser restituída. Uma restituição »parcial« da liberdade, que muito provavelmente fora perdida de modo injusto, poderia ser a redução da jornada e da intensidade de trabalho, um pagamento melhor, um tratamento melhor, a permissão para que o escravo comprasse de volta a sua liberdade, etc. Como a melhor solução possível nessas situações de »servidão duvidosa«, talvez o dono deveria ser chamado por um juiz, no intuito de ser compelido a, de alguma forma, permitir o »resgate« ou a »liquidação« da condição servil e o retorno à liberdade. De qualquer modo, Molina não identifica uma obrigação estrita de restituir a liberdade, naquela situação. Avendaño, no entanto, claramente favorece, ali, a restituição da liberdade36.
(v) Ademais, Molina também afirmara que um comprador (inicial) que negociasse em »ignorância invencível« e que, depois disso, viesse a duvidar sobre o justo título de escravização, e fizesse, então, um exame que não solucionasse, contudo, as suas hesitações, não estaria, devido à sua »melhor condição de dono«, obrigado a qualquer restituição. A diferença entre o caso descrito em (iv) e aquele em (v) parece residir no momento da dúvida, na cadeia de compra de escravos: uma dúvida que se transfere e permanece para além da compra original parece ser tomada como dúvida mais duradoura e resistente; o princípio de propriedade segundo o qual na dúvida »a condição do possessor é melhor« se mantém, mas com algum enfraquecimento. Avendaño parece recusar a relevância desse posicionamento (v) ao contrastar os seus termos com a própria visão enfática de Molina de que a má fé dos negociadores era bem conhecida - supostamente, sem nenhuma exceção -, por todo lugar, no sistema de comércio escravo transatlântico, e assim tal atitude inicial bona fide, bem como qualquer subsequente, fora tomada pelo próprio Molina como profundamente questionável: inexistente na prática, ou mera possibilidade teórica37. Por fim, Avendaño reproduz outra posição de Molina, segundo a qual, (vi) uma vez que a inspeção com respeito à licitude dos títulos de escravidão e do comércio de escravos naquelas regiões do mundo (isto é, a costa africana no Atlântico) era, em tese, o dever direto de príncipes e de governadores, para Molina compradores e donos tinham, em princípio, a permissão de perseguir os seus interesses em vender e comprar tais bens de mercado. Avendaño, no entanto, vendo aqui uma contradição nas afirmações de Molina como um todo - dado que elas pareciam condenar a posição moral dos mercadores já no começo da longa cadeia de comércio, na própria costa africana, inclusive exigindo, no seu terceiro pronunciamento, que qualquer título de servidão relativo ao produto humano fosse conhecido de modo »mais claro do que a luz« (cf. abaixo) -, pôde basicamente afirmar que, se as autoridades permitiram o comércio, foi porque elas não estavam familiarizadas com as injustiças que tinham sido feitas desde o começo, ao passo que os comerciantes obviamente sabiam sobre todas elas. Os vassalos da coroa portuguesa, portanto, desempenhando o papel de comerciantes e compradores, não poderiam adquirir o permissionis ius naqueles casos38.
É importante notar que, ao analisar a argumentação casuística de Molina, Avendaño indica inconsequências na mesma, em especial ao comentar os posicionamentos (iv), (v) e (vi) daquele. Semelhantemente ao que já ocorrera na sua leitura de Sánchez - e ocorre, a bem dizer, na análise de praticamente todos os autores cujos pareceres ele sintetiza -, Avendaño nota que, ao permitir margens de benefício ao comprador e possuidor de escravos, na mensuração de sua condição de agente em dúvida e, em seu lugar ou elo na complexa cadeia de comércio que o tráfico representava, sem condição de direta ou ideal certificação, Molina entra em contradição. Ele contradiz o que parecia ser, desde o início, algo plenamente certo (a injustiça dos contratos) ou, então, amplamente incerto (a possível justiça dessas comutações). Na casuística da normatividade das transações, Avendaño busca manter a coerência de sustentar o argumento na base ou da certeza moral da injustiça das escravizações ou da certeza de sua ampla e inaceitável incerteza - sobretudo em matéria tão grave -, favorecendo o dono (mais) certo da liberdade: o escravizado. De todo modo, é no comentário de Avendaño ao (iii) terceiro arrazoado de Molina, segundo o qual a escravidão deveria ser permitida só nos casos em que estivesse justificada de modo »mais claro do que a luz« 39 , que uma nota marcante surge no tocante ao teor da apreciação normativa de Avendaño e que deve, em seguida, ser ligada ao seu quinto posicionamento final sobre o comércio de escravos. Avendaño tanto endossa o princípio da »consciência segura« (tuta conscientia) na permissão da escravidão e, pois, no comércio de escravos quanto afirma que, para atingir tal »consciência salva« ou »assegurada« (salva conscientia) um título justo »mais claro do que a luz» não é necessário, mas apenas um título baseado em uma «sentença provável« (probabilis sententia) - de acordo com Avendaño, a opinião geral de que guerras contra os africanos (angolanos) foram travadas com justiça e, pois, como consequência a escravização de prisioneiros poderia ser vista, pelo lado ofendido, como uma punição justa era somente um título provável40. O comentário de Avendaño traz, nos seus próprios termos, certo desconforto ao leitor atento. Afinal, nas passagens em análise, o mestre jesuíta faz uso de uma linguagem «tuciorista» - de consciência «segura» -, ao considerar razões para permitir a escravidão41, mas também defende a tese de que razões suficientes para tanto não são achadas necessariamente com base no princípio «mais claro do que a luz» - o qual conferiria a quaisquer alegações dadas em favor da escravidão a mais forte certeza -, mas já o são com base em razões prováveis. Como um todo, o parecer probabilista sobre a consciência reta talvez afete, de fato, a posição de Avendaño acerca da escravização e do comércio de escravos africanos em seu tempo.
Cabe agora acentuar que, mais adiante no texto, depois de revisar e criticar outras posições, sobretudo de padres da Sociedade de Jesus42, Avendaño apresenta cinco breves conclusões, em que as primeiras quatro, exclusivamente relativas à casuística normativa do comércio de escravos africanos existente, evidenciam a sua posição de condenar o mesmo. Ademais, pode-se dizer que nessas quatro conclusões Avendaño resume o que seria a opinião mais acertada sobre a questão, a partir das autoridades que estudou - a qual, como sentença de ética aplicada a um caso de justiça comutativa, não parece ser vista por ele como meramente provável, mas antes como certa, segura ou, ao menos, mais provável. Assim, pois, ele confirma que (i) a maior parte das negotiationes no tráfico de escravos transatlântico era ilícita, e formas de restituição se impunham como uma obrigação moral43; (ii) a compra de «um montão de escravos» (mancipiorum copia), transportados desumanamente por mercadores desde as regiões africanas, não era lícita na Europa e nas Índias44, isto é, mesmo em elos mais distantes da compra e venda originais, nos quais poder-se-ia tentar aventar contextos de boa fé e ignorância invencível; (iii) não era lícito comprar um ou outro escravo no mercado, desde um montão de escravos transportados, porque, se havia suspeição ou ignorância sobre os títulos do montão de escravos, isso valeria para cada escravo singular também - nessa conclusão Avendaño diz endossar o parecer de Pedro de Navarra, que por sua vez recupera uma sentença defendida por Tomás de Mercado45; (iv) em geral, não era lícito comprar tais escravos trazidos aos mercados nas Américas, não importa quantos «donos» (domini) eles já tivessem tido anteriormente, afinal o seu justo «título de servidão» (titulus servitutis) já era decidido no começo, e, se fossem presumidos livres no começo, a liberdade deveria permanecer como o seu verdadeiro status, o qual, moral e legalmente - em franca diferença ao status da servidão -, não expira (como já constava no Codex Iustiniani)46. Na quarta reflexão, Avendaño combina uma tese forte sobre o significado da liberdade como bem humano, a saber, «com respeito à liberdade não há prescrição», com um princípio sobre ações ou comutações conectadas, referido a Tomás de Mercado, a saber, «de uma fonte infectada água saudável não pode fluir47».
Contudo, a posição final de Avendaño acerca desse tema de ética aplicada não pode ser reconstruída sem levar em cuidadosa consideração a seguinte famosa sentença: «a mencionada compra nas Índias e na Europa pode ser de algum modo (aliqualiter) justificada48». Avendaño apresenta - sem muitos detalhes, mas, ao que tudo indica, com bem refletida sequência e seleção de matérias e bem ponderada forma retórica (a modo de contraposição e na parte final de seu parecer) - sete razões em favor de seu (v) quinto posicionamento conclusivo acerca do comércio de escravos africanos: (1) existem «doutores» que não pensam que tal comércio seja «abertamente condenável» e são até mesmo a favor de tais compras - mesmo que isso parecesse não se seguir de suas doutrinas -, e nesse rol seriam encontrados Molina et alii; (2) a escravização ou o tráfico escravo é uma tal «prática comum» que «todos os estamentos» (omnes status) a aceitam sem hesitações, mesmo bispos e religiosos; (3) o Rei (da Espanha) permite o comércio, ele mesmo «compra e vende» escravos, e é «integro» que os seus vassalos o sigam como um «exemplo» de justiça; (4) existem bispos que excomungam pessoas que «roubam escravos», e ao fazê-lo eles endossam o «direito correto» (ius certum) dos donos de escravos, bem como a compra e a posse; (5) muitas pessoas entendem que os africanos escravizados eram realmente nascidos para a servidão - ou, «para serem escravos», «para estarem na condição de escravos» (ad serviendum; o verbo latino é «servire») -, de maneira que, com respeito a eles e à justificação da sua condição de escravidão, não parece tratar-se de «um direito exatíssimo», tal como seria o caso com outros, mas, com efeito, cabe contentar-se, no tocante a eles, com um «título menor» (minore titulo); nesse caso, se ninguém - ou nada - totalmente inverossímil estiver envolvido, os compradores não têm com o que se preocupar; (6) escravos africanos são maximamente necessários nas Índias, cuja conservatio é o interesse da res Christiana: sem escravos, a Respublica «não pode permanecer de pé». Além disso, aqueles africanos são os «mais vis entre os homens» (vilissimi isti inter homines), de sorte que certas exigências «do direito dos povos» (iuris gentium) podem ser deixadas de lado; (7) finalmente, o transporte deles às Índias não pode ser impedido, dado que os reis têm «razões urgentes» para permiti-lo e autorizá-lo. O perigoso «transporte» ou a perigosa «deportação» (asportatio) - que há de implementada - só pode ocorrer se os africanos são apropriadamente privados da sua liberdade e levados à servidão; além disso, embora os negros sejam destinados ao trabalho duro (in assiduo labore) de fato, não parece ser o caso que eles o suportem com grande dificuldade ou pesar (aegre). Eles até mesmo realizam alegremente danças (rituais) enquanto estão no trabalho, bastando que sejam bem alimentados e se lhes sejam dados feriados49. Essas são razões possíveis em favor do comércio de escravos negros. Antes de elaborar algumas reflexões sobre o quão capazes de prova ou defesa racional os motivos (1)-(7) acima descritos efetivamente são, proponho problematizar o tema que move o presente estudo. Seria a tese de que a legitimidade da escravidão dos africanos era provável a posição moral de Avendaño?
A última pergunta impõe outra: dado que há obviamente dois lados distintos, podem ser reconciliadas as duas linhas do relato de Avendaño - isto é, a sua condenação dos títulos de escravidão e o seu apoio a razões prováveis que deveriam ser o bastante para justificar tais títulos? Alguns intérpretes afirmam que esse conjunto de visões morais opostas é consistente com o probabilismo moral de Avendaño50. Opiniões meramente prováveis, ainda que não sejam tidas como mais prováveis ou mais seguras, são vistas como bastando para atingir padrões básicos de racionalidade e correção, no intuito de garantir a alguém a reta consciência na ação. Tais opiniões deveriam, então, ajudar agentes e ver minimamente os próprios títulos de escravização originais, comércio e posse de escravos negros como provavelmente justos - ainda que não em uma certeza «mais clara do que a luz» -, na medida em que uma opinião prática provável (i) é internamente racional e está de acordo com as leis da lógica, (ii) não implica nenhuma absurdidade, (iii) externamente não vai contra a lei natural, a Escritura, os Pais da Igreja e as determinações dogmáticas explícitas da Igreja e (iv) em regra recebe algum apoio, ainda que não receba predominante suporte externo por outros autores formadores de opinião51. Estudiosos como Muñoz García enfatizariam que o comprometimento de Avendaño com o probabilismo em filosofia prática é uma chave para interpretar o seu posicionamento final. De todo modo, a sua «estratégia retórica» não deveria desviar da conclusão, de algum modo escondida, mas inequívoca, de que ele era contra o dito tráfico de escravos52 - embora seja um exagero afirmar que Avendaño era em absoluto contra a escravidão53. Avendaño se permite alinhar com a «moralidade positivista» da sua época - admitindo, por exemplo, que, em termos morais, seria aceitável agir de acordo com a vontade e o exemplo do rei. Mas, as razões dadas para a quinta conclusão acima mencionada ocultam o parecer pessoal, real, do mestre jesuíta54. Em linhas gerais, Silva concorda com a leitura de Muñoz García, endossando que Avendaño o mais provavelmente era contrário ao comércio de escravos, devido ao peso de seus argumentos contra ele e à crítica que faz às concessões de Sánchez e Molina sobre a negotiatio. Avendaño permanece fiel a um quadro probabilista da consciência reta, mas há razões mais fortes para pensar que, para ele, e para qualquer um que comparasse os argumentos, a condenação do comércio de escravos seria a posição mais razoável. Avendaño chega a dizer, no final, que desejava mostrar a injustiça de tal negócio, entendendo que, diante de tudo o que foi dito e apesar das razões constituídas na sua (v) quinta conclusão, poucos teria a coragem de abraçar a manutenção daquela prática. Mostra-se convicto de ter lutado pela verdade e entrado em uma batalha pela justiça - esperando ao menos que, tornando-se conscientes dessas discussões e arrazoados, os donos viessem a tratar os seus cativos «mais humanamente» (humanius). Afinal, os donos de escravos deveriam saber que o seu «ius dominii» era deveras duvidoso, ao ponto de que, quanto àquele contrato, resistir à «luz da verdade» seria comparável à situação de alguém que caminha (à luz do dia) «com os olhos praticamente cerrados»55.
De todo modo, Silva também enfatiza que, caso se aceite a linha de interpretação de Muñoz García, ter-se-ia, não obstante isso, de concluir que Avendaño, ao final, não revelou de forma suficientemente clara a sua convicção pessoal sobre a escravidão e o tráfico de africanos e não se mostrou plenamente determinado a defender a sua própria posição56. Além disso, como explicar passagens em que Avendaño afirmou que os escravos africanos poderiam ser comprados e ter religiosos como donos57, passagens em que ele confirma que os escravos (em geral e com base na lei humana) não têm status legal58 e mesmo desvaloriza os africanos como seres humanos aos quais nenhuma honra é devida e que são desprezíveis59 - e que são, ademais, econômica e laboralmente importantes, em especial aos clérigos, religiosos e à Igreja Católica como instituição60? Há passagens anteriores, no Thesaurus indicus I, em que Avendaño faz suas, portanto, com certa naturalidade, as expressões de desprezo e algumas opiniões legais e políticas generalizadas, que são resumidas em Thesaurus indicus I, tit. IX, cap. XII, § 8, n. 204.
Independentemente dos detalhes, neste momento, do real posicionamento final de Avendaño sobre a escravização dos africanos e o tráfico transatlântico de escravos - em uma palavra: Avendaño parece, sim, condenar ambos, em seu tempo e lugar -, a sua aceitação da opinião prática provável como um caso de motivo suficiente para atingir consciência reta, com base em sete motivos deveras resumidos, aponta para conexões com novos elementos do debate sobre a escravidão negra. Esses aspectos modificariam - em definitivo e, pois, consolidariam -, nas décadas vindouras, a própria avaliação normativa da instituição da escravidão negra e da prática comercial em torno de escravos. Afinal, as razões (v), (vi) e (vii) propostas por Avendaño indicam que ideologias de quasi escravidão natural e, para todos os efeitos, de inferioridade natural - ao menos, uma alegada disposição natural para trabalho e sujeição -, com alguns traços étnicos e raciais, estavam sendo tomadas em consideração. Isso tem como efeito a relativização do valor da liberdade para os negros. Na primeira metade do século 17, essa narrativa já fora concebida de forma exemplar pelo jesuíta Alonso de Sandoval, na sua obra De instauranda Aethiopum salute (cujo pano de fundo era o ministério de Sandoval em Cartagena de Índias (Colômbia) e que foi publicada primeiramente em 1627)61: não sem o apoio de narrativas bíblico-etiológicas - sobretudo, o vínculo dos etíopes (africanos negros em especial) com a descendência amaldiçoada de Cam (Gn 9.20-29) -, Sandoval combina o que seria para ele um tipo de descrição factual do estado natural e civilizacional defectivo dos africanos com um entendimento teológico-escatológico de que a escravidão é uma ocasião historicamente apropriada, prevista por Deus, para possibilitar que, através da catequese e do batismo, o bem maior da salvação da alma chegue de novo ao alcance dos africanos, um bem que pode ser levado a eles, segundo Sandoval, só através da religião verdadeira dos brancos. Essa narrativa tanto dá suporte quanto é parte de uma convenção: de uma normatividade convencional na qual experiência e consciência moral - nos níveis individual e coletivo - historicamente crescem e se desenvolvem. Diversos escolásticos pré-modernos, incluindo Sandoval e talvez Avendaño, tentaram - com argumentos com os quais não há que se concordar! - mostrar que espaços convencionais de normatividade, como o aludido acima, eram historicamente possíveis e preferíveis a outros, que poderiam ser muito mais rigorosos na crítica ao status da escravidão negra. No mundo lusitano e hispânico do século 17, especialmente no contexto da colonização dos territórios americanos, tal narrativa em favor do estamento da escravidão dos negros, em meio a recomendações para uma ética cristã de senhor e escravo, seria representada, a título de exemplo, pelo mestre de retórica cristã, isto é, Antonio Vieira S. J. (1608-1697)62, e assim ela o foi no contexto de um veículo altamente efetivo e influente para a fixação de crenças, isto é: o sermão.
Ademais, as razões (vi) e (vii) adiantadas por Avendaño apontam claramente para uma primazia da dimensão do político sobre a dimensão do moral, no intuito de estabelecer a normatividade de práticas que afetam não apenas o bem-estar de indivíduos ou grupos, mas, em sentido estrito, o aparente interesse maior de entidades políticas completas (a república, o estado, o império, etc.). As duas tendências podem ser de auxílio para entender por que Avendaño sugere razões prováveis para defender o tráfico de escravos.
Dois capuchinhos engajados e uma nova crítica da escravidão
As exposições de um amplo número de escolásticos pré-modernos acerca da escravidão dos africanos foram revisadas com inteligência e crítica implacável, no último quarto do século 17, pelos missionários Francisco José de Jaca O. F. M. Cap. (c. 1645-1689) e Epifanio de Moirans O. F. M. Cap. (1644-1689). A literatura sobre a escravidão negra que Jaca e Moirans produziram foi uma consequência direta das suas atividades de denúncia das injustiças do mercado de escravos como um todo, e tudo isso teve como base a sua experiência missionária, de cerca de cinco anos, em Nueva Granada e nas Ilhas do Caribe. Francisco José de Jaca foi o autor de uma (relativamente breve) Resolución sobre la libertad de los negros y sus originarios, en estado de paganos y después ya cristianos (concluída em 1681)63, e Epifanio de Moirans, enquanto detido em Cuba, deu término ao detalhado tratado Servi liberi seu naturalis mancipiorum libertatis iusta defensio (completado em 1682)64, que tinha a Resolución de Jaca como base. Em 1678, Jaca chegou a Caracas (Venezuela) para atuar como missionário. Cerca de três anos mais tarde, ele vivia em La Habana (Cuba), onde pregou contra a escravidão negra e encontrou o frade Epifanio de Moirans, que também se engajava na causa da liberdade dos escravos. A pregação e a atuação como confessores, por parte de ambos, levaram a resultados indesejados: após conflitos com proprietários de escravos e com autoridades da Igreja, os dois capuchinhos são presos e enviados de volta à Espanha em 1682, para processos disciplinares que tangiam os âmbitos civil e eclesiástico. Epifanio de Moirans havia chegado em Cayenne (Antilhas Francesas) em 1677, também para atuar no campo missionário. Em 1680, ele ingressou de forma ilegal em território espanhol (a saber, em Cumaná, na atual Venezuela), foi detido e levado a La Habana. Ali, em 1681, junto com Francisco José de Jaca, Moirans dá seguimento à pregação antiescravista. Desse ponto em diante, o destino dos dois missionários é similar até os primeiros meses de 1685, quando, depois de formalmente absolvidos, em Roma, pela Sacra Congregatio de Propaganda Fide, os seus caminhos se separaram65.
Os pareceres críticos de Jaca e Moirans ao pronunciamento probabilista de Avendaño revelam várias convicções comuns sobre o direito de liberdade e as condições da escravidão. De todo modo, as estruturas das suas obras são diferentes e trazem ênfases distintas para a deliberação prática e o auxílio às consciências no tocante ao comércio e à posse de escravos. A Resolución de Jaca possui duas divisões: na Primeira Parte, ele considera a escravidão sob o ponto de vista de «humanos direitos»66; na Segunda Parte, ele trata do tema segundo «direitos católicos e piedosos». Dentro dessa, além de (a) direitos católicos e (b) direitos piedosos, Jaca expõe (ci) opiniões correntes de seu tempo, partilhadas pelos agentes pró-escravidão, que indicam o vínculo com a opinião provável e a consciência possível67. Ao final, em vez de fazer um exame de diversos pareceres de pensadores normativos, (d) Jaca inspeciona e reage unicamente ao texto de Avendaño.
Voltando à Primeira Parte da Resolución, nela Jaca, antes de mais nada, apresenta teses sobre a liberdade exterior. Ela é parte da criação, a saber, do ser humano como criatura, em sua natureza mesma. A partir daí, o ser humano exerce domínio sobre os demais seres68. Como condição, a liberdade está no topo, é algo principal e sem preço: «Não há ouro bastante para vender a liberdade»69. A Segunda Parte, que trata de «Direitos Católicos e Piedosos», é muito mais extensa que a primeira e introduz novos aspectos. Por tais direitos Jaca quer dizer os que são garantidos pela Igreja Católica e são defensáveis a partir da fé cristã. Eles se formulam em torno do direito canônico e das Escrituras e também do sentido caritativo e benevolente da fé. Jaca assim esclarece o direito «piedoso»: quando ou se não houver direitos canônicos em favor dos «pobres cristãos» - os escravos negros batizados -, caberia dizer que é «muito conforme ao suave jugo de Jesus Cristo» que eles sejam tirados de sua «injusta escravidão» face a toda violência que sofrem. Libertá-los seria uma «equidade» preferível à mera letra da lei70. De outro modo, haveria mais piedade nos «hereges» ingleses, que, quando batizam escravos, libertam-nos, e nos mouros, dado que, convertidos os escravos à sua “seita”, libertam-nos e favorecem-nos. Os católicos, caso se recusassem à defesa desses direitos, seriam exclusivos em, «com mais que gentílica barbaridade», batizar e fazer cristãos, sem, no entanto, libertar os escravos71.
A ênfase de Jaca recai sobre os «direitos católicos», mas a ideia de «direitos piedosos» se insinua com frequência. A tese a ser defendida é que na Igreja e nos estados cristãos cuja esfera legal é influenciada pela Igreja não cabe haver cristãos escravos - ao menos perpétuos -, mesmo em função de guerras e crimes. Com base bíblico-teológica, defende-se uma tese em termos políticos: cristãos e católicos não devem ser feitos e viver como escravos no sentido civil. Jaca está convencido de que pelo direito natural e das gentes a escravização dos negros é injusta; está acrescentando a isso, e independentemente disso, o fato de que, tendo sido feitos cristãos e membros da família de Cristo e da Igreja, não podem mais ser escravos: por lei divina e eclesiástica72. Essa «benignidade» dentro da Igreja, cuja mensagem é de liberdade, opera na direção de exonerar os escravizados73. Se isso vale para o direito católico, têm de valer para as entidades políticas que são católicas. A reflexão é sobre o direito eclesiástico que se confronta com o direito das gentes e, quando cabível, pode suplementá-lo: se no seu universo de jurisdição a Igreja Católica pode declarar princípios e sentenças com base no direito natural, ela pode dispensar no tocante ao direito das gentes, na procura de uma melhor interpretação do direito natural inspirada em sua própria tradição jurídica74.
A estrutura explícita e implícita da obra de Jaca se reflete na Iusta defensio de Moirans, que se destaca pela ordem temática e pelo desdobramento sistemático de assuntos tratados. O projeto de Moirans ganha uma moldura mais explicitamente normativa. Dentre várias maneiras como os 14 Capítulos de seu volume podem ser divididos, a mais simples e óbvia talvez seja a seguinte: (i) discursos sobre a liberdade como bem e direito e exposição da contrariedade da escravidão dos negros africanos aos termos dos direitos natural, divino positivo e das gentes75; (ii) discursos sobre a ilegitimidade de títulos de escravidão para além da consequência de alegadas guerras justas, no caso dos africanos escravizados (especialmente a escravização a partir de delitos graves e situações de grave ou extrema necessidade76; (iii) controvérsia com autores que propuseram argumentos que davam algum suporte à escravidão, em especial ao tratarem o comércio (a venda, a compra e a posse) de cativos africanos - na sua maioria, teólogos jesuítas, já resumidos no texto de Avendaño77; (iv) discursos acerca da restituição78.
A crítica dos dois missionários capuchinhos79 tem suporte em um conjunto de premissas fortes acerca do assunto. (i) A escravidão tem, sim, como Molina80 e outros autores já tinham explicitado, um espaço de licitude no (lado positivo do) ius gentium81 - em especial, como morte civil em comutação à morte física após uma guerra justa ou licitamente vencida pelo lado ofendido. Mas esse82 e os demais títulos legítimos de escravidão estavam sendo abusados: não era em conformidade com eles que a escravidão e o tráfico de africanos ocorriam83. Se abolicionismo em sentido estrito significa que sempre e em qualquer lugar é moralmente errado que um ser humano seja propriedade de outro ser humano, então nem Jaca nem Moirans eram abolicionistas. Defendiam o fim da escravidão no tocante ao comércio de escravos negros no Atlântico e à posse dos mesmos nas Índias. Nesse contexto, eles julgavam casos de consciência.
(ii) A liberdade como bem ou direito (inato, intrínseco e natural) de posse e uso do corpo, condição mesma de não ser propriedade de outro - uma «permissão natural» e não um comando, preceito ou dever, diria Jaca84 -, é um bem inestimável, inferior apenas à vida física (e comutável somente por ela)85, o seu status de bem fundamental natural86 e pertencente a todo ser humano87 é universalmente cognoscível pela razão, não admitindo ignorância88. A perda da liberdade exterior ou «morte civil» só pode ser, retomando uma linha de raciocínio agostinana, tal como a própria «morte física», uma consequência do pecado - seja por causa da tirania e violência de outros ou de erros pessoais e voluntários que justificam a perda da liberdade como pena proporcional89. (iii) Em se respeitando critérios de justiça comutativa, a compra e a venda de negros, da África às Américas, estavam viciadas por uma mácula incorrigível: as escravizações originais, reconhecidamente, eram em regra ilícitas, e por isso mesmo o produto na base mesma do sistema - o africano como escravo-propriedade para venda e uso como mão de obra - estava corrompido em sua condição; em geral, o direito de si (a liberdade de cada um) nunca passara com justiça para o direito de outro (a posse de um ser humano como negação e alienação de sua liberdade)90. (iv) Se essa condição, no tráfico de escravos transatlântico, tinha algumas exceções, elas não podiam ser verficadas ou, simplesmente, não podiam ser confirmadas, os rumores e as informações generalizadas de escravizações ilícitas eram fortes o bastante para condenar e findar por completo a venda e a posse de escravos91. (v) Sobre a dita transação, devido ao desconhecimento da estrita condição dos escravos, reinava (no mínimo) a incerteza, sem nenhuma condição de superação, por averiguação certa92. Diante disso, o princípio, servindo aqui como juízo reflexo para auxiliar no raciocínio normativo relativo à justiça de comutações, de que «in dubiis melior est conditio possidentis» ou «in pari delicto vel causa potior est conditio possidentis» (VI (5. 13) 65), só poderia, desde o começo das escravizações e do comércio escravista subsequente, favorecer o possuidor original da liberdade - sem nenhum espaço defensável de prescrição93. Em resumo: a soma de duas premissas seguras, a saber, o valor inestimável da liberdade e a incerteza geral - reconhecida e, na prática, incorrigível - do status de escravo dos africanos, impõe a defesa e a preservação da liberdade, isto é, torna translúcida a melhor condição de qual possuidor94. Jaca, por primeiro, e depois dele Moirans exploram amplamente essa interpretação, disputando com argumentos e usos, na literatura, que fizessem qualquer aplicação do princípio em prol de compradores e proprietários. Nota-se, com isso, que para os dois missionários a ênfase na avaliação moral dos casos de comércio de escravos em verdade não deveria recair nos envolvidos como agentes na situação de compra, mas no status do produto: inválido ou incerto o status do escravo, seriam injustos e inválidos todos os contratos95.
(vi) Insere-se, aqui, a discussão acerca da boa fé ou da ignorância invencível sobre erro possível na ação, que poderia ser alegada em favor dos agentes do comércio, desde a primeira compra (na África) até a mais recente posse (nas Índias). No contexto de tal comércio marcado por irregularidades com respeito a regras de justiça, não havia espaço para «boa fé» e «ignorância invencível» pelos envolvidos96. Para Jaca, faz parte dessa situação de análise da qualidade moral do ato certificar-se da verdade da questão - licitude ou justiça da escravidão. Há limites para ações de boa fé: quando se age em oposição a algo garantido pelo direito natural, como a liberdade - algo intrínseco do ser humano -, é preciso ter certeza. Sobre primeiros princípios (práticos) -«há de se fazer o bem» ou a «lei de ouro» - e mesmo de princípios derivados, como seria o de não usurpar da liberdade alheia senão sob certeza da perda de seu direito, não pode haver ignorância invencível. Sobre questão tão séria, incerta e não-certificável - e que, para um lado ou outro, exigia «ciencia cierta» -, e nesse nível reconhecida como informação disseminada, não haveria como um envolvido alegar boa fé e ignorância invencível97.
(vii) Mesmo que, feitas negociações admitidas no âmbito legal, houvesse dúvida pertinente sobre a justiça do ato de compra e venda - o que seria, para ambos os autores, um argumento «por impossibilidade» (per impossibile, um «impossível moral» (impossibile moraliter)) -, e a moralidade do ato tivesse de ser direcionada, então, à consciência, para além da justiça legal, ali a retidão prática, no juízo prático que superou a dúvida, dependeria de um alinhamento com a segurança, jamais com a mera probabilidade teórica. Sobre a perda e a manutenção da liberdade - como em regra sobre todas as demais questões de consciência -, o sistema de retidão de consciência só pode ser o do rigorismo da segurança98. É evidente que Jaca e Moirans percebiam que os possuidores de escravos tinham simpatia pela ideia de que bastaria que a sua opinião sobre a licitude do comércio e da posse de escravos fosse provável para que tivesse respaldo moral. Nesse sentido, os dois autores combatem a tese de que aquilo que em tal assunto tem mera probabilidade em termos teóricos pode bastar para constituir o mérito do juízo prático ou da apreensão do bem a ser feito99. Ambos estavam inteirados da orientação de Inocêncio XI a seguir (ao menos) o mais provável, caso se tivesse de decidir entre «probabilidade» e «maior probabilidade» em casos morais. Jaca faz questão de recitar o tipo de máxima de deliberação normativa que estaria sob condenação por Inocêncio XI: «não se deve julgar pela multidão de autores o que é melhor e mais equitativo, já que a sentença de um somente, mesmo que do pior, pode superar em alguma parte tanto as muitas quanto as melhores (sentenças)» 100. (viii) Diante da total incerteza jurídica e da total incerteza moral pró-escravidão, a instituição e o comércio precisavam cessar, sob pena de condenação eterna101. Ademais, uma vez que as escravizações, o comércio e a posse existem - e são injustas -, (ix) é preciso recuperar, tanto no nível individual quanto no coletivo (desde a parte responsabilizável de mercadores, proprietários e corpos políticos), a justiça entre os indivíduos e, daí, a justiça social (sob pena de não haver nem justiça como virtude de indivíduos nem justiça como condição de instituições e sociedades, e novamente haver condenação): há de haver, pois, justiça corretiva e punitiva - junto com cuidadosa análise sistêmica, que leve em consideração todos os agentes envolvidos na cadeia da escravidão -, resumida na necessidade de restituição daquilo que foi tomado, isto é, da liberdade dos africanos, bem como demais restituições associadas à perda da liberdade e às restrições de sua posse e de seu uso (trabalho alheio, desonra, maus tratos, morte, etc.). Sem isso, a retidão não se recupera. Francisco José de Jaca reconhece102, mas não desenvolve o tema da justiça corretiva como restitutio - Epifanio de Moirans o faz com detalhes103.
Jaca e - sobretudo - Moirans fazem uma revisão da literatura produzida por autores escolásticos pré-modernos, na qual a escravidão dos negros era abordada. Em particular, os capuchinhos esmiuçam o influente parecer de 10 Avendaño - desde a publicação do Thesaurus I em 1668-, acima de tudo em seu lado probabilista e aberto à escravidão (abreviado na palavra “aliqualiter”). A revisão dos posicionamentos de Avendaño feita por Jaca e Moirans compôe o seu impressionante testemunho dos debates em torno da escravidão dos negros no século 17, protagonizados por teólogos e intelectuais católicos em geral; em especial, Jaca e Moirans revelam o nexo entre probabilismo e escravidão.
Francisco José de Jaca crítico de Diego de Avendaño
A reprodução da posição probabilista sobre o comércio de escravos, oferecida por Avendaño, no Volume I de seu Thesaurus indicus, e a conseguinte apreciação crítica daquele parecer, por Jaca, aparecem ao final da Segunda Parte da Resolución, sobre os «Direitos Católicos e Piedosos». Jaca entende que o debate com a opinião provável trazida por Avendaño tinha importância especial: Avendaño, com o seu aliqualiter, vem a ser o único autor com quem Jaca polemiza de forma pormenorizada e individualizada.
A apreciação dos ditos de Avendaño tem vez na sequência de reflexões sobre o papel dos confessores ou lato sensu dos que estão na posição tanto de julgar as atitudes dos envolvidos no tráfico quanto propor resoluções em prol da preservação de uma consciência reta e segura da verdade prática. No parágrafo imediatamente anterior à reprodução do texto de Avendaño, Jaca expusera a sua inquietação com a situação moral do problema, dizendo que, entre os envolvidos, reinava não só dissimulação e pouco caso, mas chegava a haver defesa explícita de «tanta inocência»104 - de várias partes, isto é, tanto das partes envolvidas na compra e na posse quanto daquelas que, por sua especialização nas questões morais, deveriam julgar sobre a legitimidade do escravismo, dava-se suporte e crédito à boa fé e à necessidade dos envolvidos. Sem que se julgue já aqui sobre a sua posição, Avendaño deixou por escrito os termos correntes de tal defesa: a apologia da escravização, da compra e da posse de escravos negros oriundos da África. Jaca não parece hesitar em fazer de Avendaño o exemplo maior dos eruditos que ou defenderam ou criaram uma margem de apologia do sistema escravista.
A reprodução do texto de Avendaño, feita por Jaca, contém inexatidões, mesmo que inessenciais. Hipóteses para isso são tanto as condições precárias sob as quais Jaca preparou o seu escrito quanto a falta de oportunidade de revisá-lo - por outro lado, tudo indica que ele tenha consultado diretamente a obra do autor jesuíta, mesmo que pareça, em outros casos, fazer uso de informações de memória e também indiretas. Jaca resume seis alegações para dar conteúdo ao «aliqualiter» de Avendaño, ao passo que o texto de Avendaño traz, ao todo, sete alegações. Na sequência proposta por Jaca, são elas: (1) as razões urgentes dos reis para «tais comércios», bem como, na suposição de que eles permitem e mesmo compram, a permissão para que também os seus vassalos o façam (motivos 3 e 7 da sequência de Avendaño); (2) os «pobres» (negros africanos) nasceram «para server», de maneira que não é o caso que o direito lhes cabe com toda clareza, e assim «poderá haver alguma tolerância adversa a eles» no tocante a não usar o direito a seu favor (motivo 5 da sequência de Avendaño); (3) os negros africanos são «vilíssimos entres os homens», as repúblicas das Índias necessitam deles, de sorte que, conservadas aquelas, conservar-se-á a fé católica (motivo 6 da sequência de Avendaño); (4) a pedido dos amos, bispos fazem cair excomunhão «contra os tais» que roubam escravos, ficando presumido que, assim, tomam por legítimos os escravos (motivo 4 da sequência de Avendaño); (5) os «senhores bispos, também religiosos, sem escrúpulos os têm por tais» - isto é, por escravos105 (motivo 2 no texto de Avendaño); (6) é visível que alguns doutores, mesmo que de modo inconsequente, não condenam - pode-se dizer: de modo absoluto ou simpliciter - a escravidão em questão (motivo 1 da lista de Avendaño)106.
Que os defensores do tráfico de escravos estavam se valendo da oferta de argumentos, por Avendaño, isso Jaca afirma explicitamente: «Estas são armas de que se valem, tiradas de um doutor não tão compassivo quanto grave(107), para os seus intentos e a confirmação do alegado»108. Ele chega a citar em latim a frase original que introduz a quinta conclusão de Avendaño, evidenciando que, com as alegações acima, o jesuíta quer dar substância a uma opinião provável que considera legítima. Se é verdade que Jaca quer refutar esses motivos com «a luz da razão», cabe ressaltar que, por primeiro, ele expressa a sua surpresa com os «ditames de tal escritor»: Avendaño terminara o seu parecer tanto rogando a Deus para abrir os olhos dos que eram cegados pela avareza quanto tendo deixado atrás de si um arrazoado pronto para os partidários do sistema109.
Tem-se aqui um problema fundamental, relativo à estrutura de fundo do debate: quanto à defesa da manutenção ou da perda do direito de liberdade, pode-se fazer uso de um «aliqualiter» - que sugere formação de consciência reta pela mera (mas supostamente suficiente) opinião provável - ou só se pode fazer uso de um «omnimode»110 ou «totaliter», que sugere formação de consciência reta só por opinião segura? Como já indicado, Jaca parte da premissa de que a liberdade dos negros é matéria «grave», de grande «importância (entitad)», que pode envolver séria «injúria». Trata-se de uma matéria que requer posição final explícita, a modo de disjunção exclusiva: a escravidão dos negros como perda de liberdade ou bem é lícita ou é ilícita, simplesmente. Contudo, mesmo exaltando a liberdade, o conselho final de Avendaño é, como resultado de sua forma, uma irresolução. Ele é a combinação de pareceres contraditórios: uma narrativa contraditória. Afinal, enfatiza-se que a escravidão é contra todos os direitos e oferece-se, ao mesmo tempo, a mera probabilidade teórica para vencer a dúvida prática relevante da sua correção. Tal como o sal que não salga, Avendaño, no seu conselho, condena e não condena111.
Seja para o debate sobre a liberdade e a escravidão ou em geral, Jaca revela incompatibilidade teórica com o probabilismo moral112. Inspirado em Dionísio, Pseudo-Aeropagita (De divinis nominibus), Jaca alega que obter um «totaliter» ou «omnimode» para determinada ação ou decisão difere da obtenção de um «aliqualiter» para o mesmo em uma distância comparável àquela entre «o ser e dever ser bom por todas as partes» (o bem a partir de causa inteira) e «o ser todo mau, por só um lado» (o mal já por uma falta qualquer. (Aplicado ao debate sobre liberdade e escravidão, isso quer dizer que a escravidão só pode ser lícita e moralmente boa se nessa ação há certeza ou segurança total - isto é, em grau máximo possível. A confusão causada pelo parecer contraditório de Avendaño é um prejuízo para a verdade em função de vícios de procedimento - ou, talvez, de comunicação - na atitude do consultor ético. Do Decretum de Graciano, Jaca retira a crítica a uma lassidão normativa (D. 83 c. 3), em que «o erro que não se detém, aprova-se, e a verdade que minimamente se defende, oprime-se»; dos escritos proféticos da Bíblia - literatura com a qual Jaca se sente à vontade, na busca de percepções morais -, o capuchinho assevera que quem troca «mal» por «bem» e «trevas» por «luz», e vice-versa (Isaías 5.20), justamente nessa atitude de trocar e confundir subjuga a verdade113.
De toda maneira, o passo seguinte, na Resolución de Jaca, o de refutar as razões listadas por Avendaño como trazendo probabilidade à opinião de que as escravizações e o comércio de escravos são lícitos e devem continuar, faz jus à estratégia mesma do probabilismo moral: se aqueles motivos precisam ter força para respaldar opiniões racionalmente prováveis, anular essa força com argumentos significa mostrar que as mesmas são racionalmente improváveis. Seja como for, a refutação de ideias, que faz parte de disputa filosófica, também no tocante ao conhecimento prático, não é o item a ser enfatizado neste estudo sobre as características que a moral probabilista imprimiu ao debate em torno da escravidão negra. Cabe, antes, explorar a percepção de que a defesa das opiniões prováveis favorece a leniência114 e o descomprometimento com a verdade.
Assim, também em suas refutações dos seis-sete arrazoados pró-conclussão (v) de Avendaño, as ênfases de Jaca no sentido de apontar dissimulação por parte do erudito jesuíta e, para todos os efeitos, certo estímulo à leniência, em função da falta de compromisso com a verdade objetiva que a opinião provável suscita, podem ser percebidas. Para falar em descompromisso com a verdade, leniência como falta de esforço pela verdade moral objetiva e que obriga independentemente do que se quer ou se prefere - ou se tem como conveniente -, pode-se recordar que o arrazoado (2’) na lista oferecida por Jaca (cf. acima) só pode ser, para o capuchinho, pura arbitrariedade; de fato, ele insinua que a alegação de que os negros africanos nasceram para servir e, nisso, o direito - em especial, o de liberdade - lhes pode ser diminuído só se explica porque os agentes escravistas querem que seja assim e, nisso, inventam um aliqualiter. O ponto interessante é que Jaca invoca motivos para dar conteúdo à sua recusa de que europeus e africanos teriam distintos «princípios naturais». Com tom estoico, ele encontra em Sb 7.6 a máxima de que «logo, uma é a entrada para todos à vida, e igual a saída»; traçando uma comparação com judeus e hereges, Jaca vê como algo bom que os negros africanos sejam tal como «tábulas rasas», «sem mistura» de outras «raças más (malas razas).» Em seguida, ele faz uso de regra jurídica e de preceito bíblico para dizer que «nos juízos não há acepção de pessoas» (VI (5. 13) 12) e em Deus mesmo «não há acepção de pessoas» (At 10.34) - a validade universal da lei e o status universal como criaturas pressupõem igualdade entre os seres humanos. Jaca leva a noção mesma de «aliqualiter escravos» -«escravos de alguma maneira» - ao status de distorção do pensamento pela mera força arbitrária do querer. Para sentenciar qualquer pessoa à pena, os delitos têm de ser «mais claros do que as luzes do sol». Sugerir que os negros africanos nasceram para a pena ignominiosa da escravidão por algum «aliqualiter» que vai além «da sua original maneira e pecado» - condição em que todos estão - é uma cegueira partilhada da razão, tão grande quanto um pensamento meramente arbitrário115. Além disso, a falta de compromisso com a verdade moral objetiva se liga à dissimulação, isto é, ao apelo a uma opinião provável que é conveniente para ocultar vícios subjetivos conscientes e perceptivelmente espúrios, por exemplo, na réplica ao arrazoado (4’) de Avendaño na sequência de Jaca (cf. acima). Nessa replicação, Jaca faz analogia com uma história bíblica: os judeus pediram para que Pilatos lançasse «editos de morte» contra Jesus, livrando, em vez dele, a Barrabás (Mc 15.13; Jo 18.40; Jo 19.15-16). A fulminação de uma sentença de tal processo, visto que feita por autoridade legítima para tanto, seria eo ipso lícita? Jaca afirma que essa é uma ilação «iníqua», outra vez uma cegueira da razão116. Com outro princípio reflexo do Direito Canônico (VI (5.13) 64), ele estipula que «contra o direito da inocência» se tem no máximo tanto quanto uma «injustiça praticada»117. O direito e o seu reconhecimento são objetivos - na questão da escravidão, em favor da liberdade, são manifestos -, e não estão ligados à pessoa ou à função de autoridades118. Jaca associa a adesão a um motivo como (4’) a uma distorção da razão amarrada a vícios da alma - à maldade ou a patologias morais, que levam a um desrespeito aberrante ao próximo, como o aliqualiter em questão119. Fica implícito que ele entende que os motivos que tornam provável a opinião em favor da licitude da escravidão e do comércio, no parecer de muitos ou dos interessados, são procurados - a partir de interesses desabonadores - sob a pressuposição de que todos têm uma soma de informações seguras de que o comércio é ilícito. O encontro da opinião provável é estimulado por vícios subjetivos dos quais os agentes estão cientes.
O apelo a motivos que são prováveis e embasam o provável - a probabilidade da licitude da escravidão -, que se repete no arrazoado (5’) segundo a descrição de Jaca (cf. acima), que o capuchinho classifica de «quinta quimera»120, leva Jaca a afirmar que o «aliqualiter» de Avendaño, presente em cada uma de suas (seis-sete) defesas, é «tão repetido quanto lastimoso», nas mãos dos interessados na manutenção do status quo. Jaca chega a dizer que os enganosos raciocínios de fundo são «fortificados com tantos assensos de tão injusta prática reprovada», a saber, por «doutores» e especialistas em sentenças morais, que se poderia pensar tratar-se, nisso, de um grupo em conluio, de pessoas em «sociedade secreta», tendo em vista o cuidado com os seus propósitos e as suas vantagens; afinal (D. 83 c. 3): «Nem carece de suspeita de sociedade secreta quem mira para o outro lado diante de um crime manifesto»121. Finalmente, ao motivo (6’) Jaca reage com uma reflexão teológico-moral. Ele contrasta o simples e fiel «temeroso de Deus», cujas luzes são de «divina luz» (sic!), com os doutores «mais adiantados», porém, sem luz. Depreende-se que Jaca tem em mira as motivações religioso-morais dos envolvidos: o temeroso, vendo a injustiça que ocorre, quer «favorecer o bom e sentenciar o mau», distanciando-se do «sofístico aliqualiter dos interessados» na escravidão122. Jaca repudia toda margem casuística - e, nisso, supostamente com maior ou alguma probabilidade - para favorecer o que só poderia ser alegado sob segurança total: a perda do bem da liberdade. Ao falar do «aliqualiter» como posicionamento sofístico, ele dá a entender que os pouco convincentes motivos que o compõem só são tomados dignos de prova porque aqueles que os enunciam estão interessados nisso e querem que eles sejam verdadeiros. Jaca nota um efeito talvez geral, mas aqui concreto e aplicado, do probabilismo moral: ele não estimula, na consciência do agente, a busca e o compromisso com a verdade, mas antes a adoção daquilo que a mera vontade, não raro com a razão violentada, quer que valha como verdade: a verdade é determinada por subjetividade arbitrária. Uma síntese dessa postura Jaca encontra em uma passagem do Eclesiástico (37.18): «Aalma do homem santo dá a conhecer alguma vez a verdade mais do que sete vigias sentados no alto para inspecionar»123. Se a disposição interior é para o encontro da verdade, ela acaba por ser achada; do contrário, mesmo a partir da melhor posição, ela não é vista. Logo adiante, Jaca diria ainda que não há «razão», «lei» ou «direito» na causa pró-escravidão, mas essa se dá só em virtude de «cega vontade»124. As razões da cegueira são perversões da vontade: a cobiça, a avidez, a ânsia por lucro.
Jaca entende perfeitamente bem o drama normativo em questão: do que os especialistas dizem sobre o comércio de escravos ele só pode inferir, «sem violentar a razão», que «o silêncio, a omissão e a dissimulação» - palavras que resumem qualquer sentença que não seja um inequívoco voto contrário à escravidão vigente ou, alternativamente, que configure qualquer margem de concessão à mesma - equivalem a propor que a injustiça explícita tenha seguimento. Estando em discussão a licitude da escravidão como opinião provável, pode-se dizer ainda que, para Jaca, o probabilismo como moral mínima em qualquer questão de deliberação e nessa em particular se enquadraria como omissão e dissimulação face ao justo. Se Jaca chega, então, a reprovar, com sucesso, as alegações contrárias dos escravistas e indicar que o uso dessas esconde omissão e dissimulação diante do justo conhecido, entende-se que ele, como missionário, acabe adotando a atitude (e a palavra) do profeta (Jr 8.10): ele fala da manifestação da ira divina, cujos alvos podem ser tanto os príncipes quanto os doutores cristãos, mas em especial esses últimos, pois eles não só não iluminam como também causam dano. Jaca parece visar sobretudo Avendaño, ao afirmar, em um trecho difícil, que «(...), em tal caso, do dito padre (Diego de Avendaño), (dos doutores) que alega a seu modo e de sequazes interessados», vale o seguinte (cf. as Enarrationes in Psalmos 63, de Agostinho): «Em verdade, tu mesmo estiveste adormecido, porque, perscrutando tais coisas, falhaste»125.
Epifanio de Moirans e o «aliqualiter» de Avendaño
Semelhantemente a Francisco José de Jaca, em sua Resolución, a detalhada reação de Epifanio de Moirans ao «liqualiter» de Avendaño se caracteriza por surpresa e crítica voltada para apontar argumentação contraditória e estímulo à leniência, bem como refutar arrazoados pontuais126. Se refutação faz parte de qualquer embate casuístico de ética aplicada, contradição e estímulo à leniência pareceriam intrínsecos ao tipo de reflexão prático-racional evocada pelo probabilismo para encontrar reta decisão de consciência. O debate sobre a escravidão dos negros ilustra em especial os últimos itens.
Quanto às sentenças finais de Avendaño acerca do comércio de escravos oriundos da África, Moirans endossa, sem muitos comentários, as quatro primeiras127. É conveniente destacar dois aspectos enfatizados por Moirans. Na primeira sentença final, Avendaño reconhece que é inquestionável que todas as compras de cativos desde a costa africana no Atlântico são injustas e todos são proprietários de má fé: é impossível não ter conhecimento da origem espúria do sistema. A partir da quarta sentença final de Avendaño, ademais, cabe favorecer «ao infinito» a liberdade: vendas e compras infinitas - em um hipotético decurso temporal sem fim - em nada diminuiriam o direito natural da liberdade pelos indivíduos afetados por escravizações originais injustas. Para aquela liberdade original não há prescrição, tampouco para o status de crime que a remoção injusta da liberdade de outrem, feita há tempo infinito, configura. As sentenças (i)-(iv) de Avendaño estão, portanto, em sintonia com três (das cinco) conclusões almejadas por Moirans na Iusta defensio: (1) «ninguém pode comprar ou vender nenhum dos escravos da África, chamados (comumente) de negros»; (2) «todos os que possuem alguns deles estão obrigados a libertá-los, sob pena de condenação eternal»; (3) «a o libertá-los, os seus donos estão obrigados a restituir-lhes os seus serviços e a pagar(-lhes) o (seu) preço, porque, visto que são possuídos injustamente, também os seus serviços são possuídos injustamente128».
Contudo, a partir da sua quinta conclusão sobre o comércio de escravos africanos, Avendaño se torna novo exemplo da inconsistência das posições dos jesuítas sobre o tema polêmico. Independentemente de seus pareceres condenatórios ao tráfico e à posse de escravos, os jesuítas são eles mesmos donos de escravos e oferecem argumentos - no caso de Avendaño, ao menos, na forma de opiniões prováveis - para qualquer um que queira fazer uma apologia da manutenção do sistema. Em face do relevo que recebe na exposição de Moirans, fica-se novamente com a forte impressão - como já ocorrera quanto da análise da crítica de Jaca - de que o quinto e último posicionamento de Avendaño era difundido e gozava de certa fama. Com fidedignidade e na sequência do texto original de Avendaño, os sete motivos trazidos em defesa do «aliqualiter» em debate são reproduzidos à letra, para, em seguida, serem submetidos à dura refutação129.
Primeiramente, há que se dizer que, ao final, as conclusões de Avendaño não propiciam uma opinião normativa explícita, capaz de adequadamente guiar as consciências à retidão, no que concerne à compra e à posse de escravos. Em vez de dar auxílio às consciências em dúvida sobre a licitude de certas ações, o relato do jesuíta causa confusão. O motivo disso é simples: o relato de Avendaño é contraditório. Os posicionamentos (i)-(iv) são contrários à escravidão e expressam a exigência de restituição, enquanto o posicionamento (v) é favorável à escravidão e silencia sobre formas de restituição. Assumir a conjunção de (i)-(iv) e (v) é, portanto, uma contradição130. Moirans, assim - e com mais detalhes e clareza, é verdade -, dá seguimento às críticas de Jaca.
Se o foco da acusação acima mencionada está na percepção de que o parecer contraditório de Avendaño não ofereceria clareza às consciências que hesitavam sobre os atos em torno do negócio e da posse de escravos, pode-se interpretar o texto de Moirans ainda de outra maneira. Ele estaria indicando que o capuchinho acreditava que o próprio jesuíta estava cônscio da conciliação impossível de (i)-(iv) e (v) e, em fidelidade a um modelo argumentativo no qual entre os diferentes lados de uma querela normativa pesos e forças eram distribuídos, dispusera de uma narrativa retórica, que, no gesto final, deveria a contrario mostrar qual era a sua convicção. Moirans não parece crer simplesmente que a conclusão (v) de Avendaño é mera escusa para proteger os interesses de proprietários de escravos, mas aponta para a linha oblíqua que o jesuíta traça para mostrar a verdade. Com os setes breves arrazoados em seu auxílio, configurando opiniões para - separadamente ou em conjunto - constituir uma consciência reta com base no provável apenas -, o «aliqualiter» de tal modo contrastava com as conclusões (i)-(iv) e também com a afirmação que constava logo depois do posicionamento (v), de que para não ver a injustiça daquela compra e posse seria preciso «caminhar (à luz do dia) com os olhos praticamente cerrados», que o objetivo de Avendaño talvez fosse o seguinte: tornar óbvio que, diante do exposto, poucos poderiam ter a coragem de adotar o parecer segundo a opinião provável. Face a uma balança tão desequilibrada de posições, e chamando o leitor a um senso de justiça, para um propósito ao menos a narrativa retórica serviria: para que os «amos», em dúvida sobre a justiça dos títulos de escravidão, dirigissem aos escravos tratos mais dignos131.
A reação de Moirans ao pretenso momento retórico - talvez bem intencionado? - na construção de Avendaño é de indignação. Como estratégia, só pode ser um lapso, pois na questão da escravidão dos negros poucos estão dispostos a abraçar a justiça. Ao indicar a estratégia retórica verdadeiramente imprudente (minha expressão) de Avendaño e na expressão razoável de insatisfação com ela, o juízo de Moirans coincide com (e adianta) as notas críticas de Muñoz García e Silva, descritas acima132. Com (i)-(iv) e (v), Avendaño deveria saber que ofertava razões a todos, em especial a quem simplesmente queria ter razões para a conclusão (v). É claro que Moirans está convicto de que, na matéria da escravidão e da liberdade, qualquer luta por verdade e justiça não poderia ser travada dessa forma. Diego de Avendaño, «o homem com doutorado», «não (lutou) até o fim, nem combateu legitimamente», antes sucumbiu à «cegueira e obstinação» gerais - igualou-se aos «demais Padres da Companhia (de Jesus)», que detinham milhares de escravos e tendiam a endossar a instituição da escravidão. Na matéria em disputa, a mera concepção de um discurso probabilista e a opção por fazê-lo como estratégia retórica para mostrar às avessas uma posição de repúdio, admitindo nesse passo discursivo posições para todos os partidos, foi uma estratégia autodestrutiva133. Com tom profético, Moirans se inspira em Paulo, para asserir que «a ira terrível de Deus» se revelará contra essa impiedade134 - de Avendaño e dos jesuítas.
No passo seguinte, Moirans se esforça em refutar a narrativa de Avendaño ou, com palavras mais definitivas, em «arrancar desde os fundamentos» tudo aquilo que o jesuíta propusera como razões prováveis, no intuito de que nenhuma «justificação»135 reste - em resumo, Moirans desaprova cada uma das sete razões aludidas (negando que essas pudessem ser de auxílio aos agentes conscientes). Seja como for, Moirans retoma, em suas refutações, os temas da argumentação contraditória e do estímulo à leniência como efeitos incontornáveis da proposição da conclusão (v) e de seus motivos. Assim, pois, (1’) acerca do motivo primeiro, sob a pressuposição de que Avendaño adere à tese probabilista segundo a qual uma consciência conformada a opiniões prováveis pode ser reta, Moirans afirma que os doutores aludidos - aqui: pessoas eruditas com conhecimento de causa sobre a matéria - não fazem da opinião pró-escravidão uma opinião provável. Central para essa percepção é que os doutores antecipam o erro de Avendaño: «falam inconsequentemente» - vistas como um todo, as suas explanações são contradições e não solucionam os casos de avaliação moral, abrindo espaço, pode-se supor, para atitudes lenientes em matéria sobre a qual não caberia dúvida. Os doutores também propõem doutrinas e princípios de verdade e justiça, relativizam essas doutrinas e esses princípios com justificações ad hoc que autorizam a compra e, sobretudo, a posse de escravos, mantêm essas justificações em aberto e, assim, geram um relato contraditório. A narrativa contraditória, pois, não foi uma novidade que o probabilista Avendaño inaugurou - supostos tucioristas como Molina também legaram pareceres passíveis de uma mesma interpretação geral. Avendaño, em específico, faz um discurso contraditório adicional e declarado, quando menciona doutores como Molina, Rebello, Palao e Fagúndez como favoráveis ao negócio, dado que anteriormente, no seu texto, mostrava esses como amplamente contrários ao sistema136.
Em um segundo momento, em prol da argumentação, Moirans admite que os doutores referidos forneceriam, sim, probabilidade (apenas) à sentença em favor da escravidão. Mesmo assim, e aqui as convicções de Moirans acerca da doutrina da reta consciência vêm à tona, não seria obtida «na consciência» uma opinião «a ser seguida», sendo ela dotada de «determinada probabilidade» somente. A convicção de Moirans tinha respaldo nas numerosas condenações a sentenças probabilistas, no âmbito moral, feitas, em 1679, por Inocêncio XI. Destacava-se a condenação à seguinte proposição: «Geralmente, enquanto fazemos algo fiados em probabilidade, seja intrínseca ou extrínseca, ainda que por tênue modo, (tal que) não se saia dos limites da probabilidade, agimos sempre prudentemente»137. Se verdadeira, essa proposição traria ao juízo a real conexão entre prudência, retidão e consciência a partir de mera ou «determinada probabilidade». Ela fora, porém, desaprovada. Em se assumindo que, segundo princípio normativo, a consciência reta não é atingida por meramente seguir a opinião provável, não basta que um parecer favorável ao comércio de escravos tenha como fundamento a opinião provável somente. Além de mostrar que a narrativa contraditória dos especialistas não pode gerar probabilidade e que a simples probabilidade não leva à consciência reta, Moirans ressalta ainda, como razão adicional para não fazer uso da suposta opinião provável como guia, que ela causa «grave dano a um terceiro», a saber, a «tantos milhões de escravos»138. Se «probabilismo» implica a tese de que o peso que outorga correção à ação pode ser o do «menos-provável-que», o missionário capuchinho municia a recusa a esse modelo de metodologia teórica para decisões de juízes ao reproduzir outra proposição que Inocêncio XI condenara: «Estimo com probabilidade que um juiz pode julgar conforme uma opinião também menos provável»139. Sendo certa em si a rejeição teórica das teses morais probabilistas, Moirans sublinha a sua insuficiência nas situações em que o provável meramente ou o menos provável tange ações que são pertinentes a potenciais danos graves a terceiros - na situação em apreço, tem-se em mente uma opinião provável ligada à escravidão «contra o direito de natureza» ou à liberdade externa, sendo aquela «causa de sangue (dor e morte)« e «de morte civil». A adesão ao probabilismo é ainda mais absurda - dir-se-ia: amplamente desproporcional à causa sobre a qual julga - se o mesmo se vincula a decisões sobre questões tão importantes, a saber, a liberdade externa ou a não liberdade externa. Ora, nesse âmbito a ofensa ao direito pode ser enorme. Havendo - ou mesmo podendo haver - injustiça aos africanos por lesão ao seu direito natural à liberdade, tem-se causa gravíssima. A desproporção entre o método probabilista e o direito à liberdade em disputa - ou entre o método probabilista e a potencial causa de dano e ofensa - é realçada por Moirans. Nesse sentido, ele resgata o princípio antiprobabilista e pró-certeza frisado por Luis de Molina, décadas antes, para essa matéria de ajuizamento, consoante o qual qualquer decisão pró-escravidão teria de ser «mais clara do que a luz140».
Quanto ao (5’) quinto ponto alegado em favor da conclusão (v) de Avendaño, a réplica de Moirans se centra em uma afirmação direta - e que ele aduz com base em tudo o que experimentou: «os escravos são homens» e, na base desse status, são «livres de direito natural»141. A sua condição natural não é pior do que a de nenhum outro ser humano. A tese de que «nasceram para server», portanto, só pode ser uma crença distorcida devido «à avidez e à iniquidade dos europeus»142. A estranha nota final de Avendaño, naquele ponto, de que os compradores deveriam despreocupar-se, «contanto que alguém não pareça completamente inverossímil», é interpretada por Moirans como a admissão de que a questão tão importante da escravidão poderia ser reduzida à «menor, mínima probabilidade», a uma moral mínima de defensabilidade, que ainda assim estaria na dimensão da prudência. De novo, Moirans conecta admissibilidade da escravidão e probabilismo moral, lembra o leitor, no entanto, de que o vínculo entre ação prudente (e reta) e mínima probabilidade da opinião que a sustenta era uma ideia que havia sido condenada por Inocêncio XI. Sugerir que a prudência possa ser atingida por meio de probabilidade mínima sobre o justo a ser feito, face ao objeto inequivocamente importante como a liberdade e ao potencial dano de sua perda, uma «causa de sangue», que traz como efeito a «morte civil» e o perpétuo trabalho de risco, parece absurdo143.
A tese de que «os escravos são homens» tem, para Moirans, total respaldo na experiência. Em sua maioria, assim afima Jaca, eles são «nobres»; entre eles, encontram-se «líderes» ou «caciques» e «nobres em nobreza sem mistura (com outras etnias)». O propósito de Moirans, com essas caracterizações, é tirar a força da tese de que os negros africanos nasceram para a servidão. À tese do (a) nascimento nobre Moirans adiciona a descrição do (b) seu vigor de engenho, que contrasta com a aptidão para o trabalho (braçal) - que em verdade não suportam -, e a descrição (c) de sua «sabedoria» e «prudência», superiores, em regra, às dos senhores144. Com esse recurso, quer-se evidenciar que a relação servo e senhor, pela justificativa alegada por Avendaño, constitui, no que diz respeito aos escravizados vindos da África e os senhores espanhóis (apresentados como rudes e néscios), uma verdadeira injúria ao «direito natural e divino» e à «luz da razão»145. Não pode passar despercebido que, ao ratificar a tese da relação hierárquica natural-racional de sábios e rudes, o pensador capuchinho cita, além de uma passagem do deuterocanônico Eclesiástico (10.28), a obra de Aristóteles (Política III 4)146. Para Moirans, portanto, o quinto motivo para a conclusão (v) de Avendaño sugeria, implicitamente, ideias aristotélicas ou de escravidão natural para a sujeição dos africanos: essas ideias não tinham desaparecido dos relatos sobre escravidão depois dos debates controversos em torno da conquista das terras dos povos aborígenes do Novo Mundo na base do argumento de que eram destituídos de razão plena e, pois, escravos por natureza147. A passagem é uma evidência de que o motivo em debate aludia a teses aristotélicas de escravidão natural ligadas à legitimação da escravidão dos negros: legitima-se esse regime porque os «etíopes» são humanos por natureza aptos à servidão - e ao trabalho servil, como fica conotado no motivo (7’). Moirans se esforça em tornar evidente que os fatos mostram uma relação inversa148. Devido a patologias morais subjetivas, como «cupidez» e «luxúria», os espanhóis agem com a mente cega e distantes de qualquer senso149: vêem e crêem com arbitrariedade.
Ao discurso de conveniência - e, ao que parece, difundido e popularizado (minha expressão) - de que os africanos escravizados não se importam ou facilmente toleram o destino de trabalho árduo - ideia constante no motivo (7’) narrado por Avendaño como suporte à sua conclusão (v) - Moirans, ainda que não o conecte, aqui, a temas como «racism», «etnocentrismo» e «determinismo» etno-racial150 (mesmo que com outras palavras), formula uma reação direta, baseada na mais óbvia experiência: a suposta indiferença e o suposto contentamento com o destino de trabalho forçado ligado a poucas benesses compensadoras são dados falsos, o verdadeiro é o oposto. Os escravizados não suportam tal regime de trabalho, resistem a ele ao ponto de suicidarem-se, mutilarem-se e fugir - atitudes constantes, ao que tudo indica, da instituição da escravidão negra nas Américas, ao longo da história, como relação social hierárquica radicalmente assimétrica (escravos e senhores) e como relação de trabalho (trabalhadores forçados e amos). Em suma: os escravos só têm desvantagens, trabalham apenas, não têm proveito nenhum, agonizam, são mal tratados e não têm descanso151. Moirans articula uma «contrapropaganda» sobre a escravidão. Trata-se de uma luta de crenças, em que as crenças pró-escravidão são fomentadas e ratificadas pela opinião provável. Além de o parecer probabilista ser arbitrário, ele se une a uma arbitrariedade de juízos peculiar: a sua ordem é mediada pelo afrouxamento do compromisso com a verdade. Se o querer se desliga da verdade objetiva, ele facilmente pode se ligar ao pensar arbitrário. Nesse roteiro, o probabilismo dá substância à ideologia da escravidão. Sobre os negros, essa última em algum ponto se consolidou como incapacidade mental.
As réplicas de Moirans aos motivos constantes no parágrafo ilustre de Avendaño, inserido, em seu todo, em um discurso contraditório, vão além da nota inicial de que o efeito retórico pretendido fracassa e fica aquém da expectativa de compromisso com a verdade e a justiça - a expectativa do leitor face aos princípios estabelecidos pelo jesuíta só poderia ser a de um parecer condenatório unilateral. Que, para Moirans, tratava-se, na narrativa de Avendaño, de uma estratégia retórica e que a sua posição era contrária à escravidão negra, isso se ressalta tanto mais for lembrado que, para Avendaño, ao final, o «direito de domínio» era tão duvidoso que, para resistir à «luz da verdade», seria preciso caminhar (à luz do dia) com os olhos fechados152. Seja como for, Moirans, tendo como premissa o erro do probabilismo em si ou ao menos o seu fracasso para assuntos de importância maior, discorre, de formas múltiplas, sobre os caminhos da leniência ou da indulgência (individual e coletiva) legitimada no tocante à escravidão - lembrando que Moirans não tematiza de maneira explícita o uso da opinião provável como mecanismo de dissimulação. A leniência se liga ao descompromisso com a verdade mais óbvia e, com poucas imposições à vontade, traz como efeito o pensamento distorcido e insensível à realidade: moral e socialmente, isso pode explicar hábitos ou costumes estabelecidos de preservação de interesses convenientes por parte dos mais fortes - em outras palavras, corruptelas que ganham o status de normalidade. Mentalmente, tais processos ajudar a entender como se estrutura a gênese da ideologia.
Considerações finais
O parecer de Diego de Avendaño, na forma de um argumento probabilista, é associado por Francisco José de Jaca à contradição, leniência e dissimulação moral. Pode-se afirmar que ele tanto estimula quanto é estimulado por leniência e dissimulação. O texto de Jaca dá margem à interpretação de que o próprio Avendaño, com as críticas ao comércio de escravos, apenas dissimulava o que de fato intencionava com a estrutura argumentativa probabilista: ratificar a escravidão negra. O mesmo parecer, na forma de um argumento probabilista retórico, é ligado por Epifanio de Moirans à contradição, à leniência e, acima de tudo, via leniência, ao pensamento arbitrário, gênese da ideologia.
No que diz respeito à narrativa contraditória que, com razão, Jaca e Moirans identificam no texto de Avendaño, é justo dizer, no entanto, que algo peculiar da mesma parece escapar aos dois pensadores capuchinhos: ela não é uma contradição ou ambiguidade de posicionamentos sobre o certo, o seguro, o grau da dúvida e a condição do possuidor nos termos estritos da pura análise normativa dos contratos - essa contradição interna na análise casuística e de justiça comutativa o próprio Diego de Avendaño já denunciara em outros moralistas que se debruçaram sobre a escravidão negra, e no arrazoado (1) de sua conclusão (v) isso era, de certa maneira, reiterado. Avendaño talvez tenha sido o primeiro pensador da escravidão negra que percebeu que a casuística do comércio de escravos negros não poderia ser o espaço para a admissibilidade do mesmo, inclusive segundo as premissas do probabilismo moral. Se essa admissibilidade teria de ser pensada nos termos de argumentos probabilistas, o contrapeso à flagrante injustiça em termos de ferimento de direitos e comutações teria de ser apresentado com outros elementos para além da casuística normativo-contratual, como aqueles que Avendaño resumira. Pesquisas futuras podem revelar de que maneira opiniões prováveis com esses elementos ou, de todo modo, narrativas diversas caracterizadas pela articulação deles, parcialmente ou em conjunto, impuseram-se na legitimação ideológica da escravidão.
O texto de Avendaño teve repercussão nos órgãos administrativos da coroa espanhola, por meio de seu Conselho das Índias, por exemplo, e de suas políticas abonadoras da continuação do tráfico e da propriedade de escravos. Em pareceres originalmente suscitados por Jaca e Moirans e diretamente requeridos por Carlos II, via Conselho de Estado, o Conselho das Índias153 notabilizou Avendaño como um probabilista no tocante à escravidão negra, cujo texto escrito no mínimo permitia o entendimento de que a legitimidade da escravidão era uma opinião provável. Avendaño foi alegado pelos escravistas como um erudito que via margens francamente permíssíveis à escravidão154.