Introdução
Segundo dados publicados pelo Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA) existem mais de 100 tipos de cânceres1 que podem derivar de causas internas como condições hormonais, imunológicas e mutações genéticas; e causas externas associadas a poluentes, radiação solar e hábitos de vida, sendo que as últimas estão associadas a 90 % dos casos de câncer.2) Cabe ressaltar que o câncer (CA) tem sido considerado o principal problema de saúde pública no mundo e acomete na maioria dos casos a população com idade superior a 65 anos.3 No entanto, mesmo que não na mesma frequência, o câncer também acomete adultos jovens. 4
São considerados adultos jovens pessoas na faixa etária entre 15 e 29 anos. 5 Com relação ao risco do desenvolvimento de CA em pessoas jovens associa-se às elevadas taxas de mutações no genoma das células, aos múltiplos estágios da patogênese da doença, ou ainda uma herança de alelos com predisposição ao CA, somado ainda a fatores externos, que podem contribuir no desenvolvimento da doença. 4
Ao pensar no tratamento oncológico, preocupa-se com sua agressividade, pois o sistema imunológico também é atingido podendo ocasionar a imunossupressão e o aumento à suscetibilidade a doenças infecciosas. 6 Dessa maneira, o cuidado redobrado e medidas de precaução são consideradas importantes, uma vez que pacientes oncológicos podem desenvolver complicações respiratórias graves maiores do que pacientes com outras patologias. Somado, a possibilidade de apresentam uma maior e mais rápida desestabilização do quadro clínico e, consequentemente, necessitarão com maior frequência de internações em Unidades de Terapia Intensiva, tornando-se mais evidente a necessidade destes cuidados em um contexto de pandemia, como a COVID-19. 7
A COVID-19, uma infecção respiratória causada pelo vírus SARS-CoV-2, pode progredir para quadros graves, incluindo insuficiência respiratória, que pode em alguns casos levar ao óbito. Sua transmissão ocorre através do contato, de gotículas ou também por aerossol. 8 Frente a isto, o distanciamento e o isolamento social foram estratégias cruciais para a mitigação da doença e proteção das pessoas, a fim de garantir a segurança e saúde da população. Contudo, estas medidas afetaram a população em geral e a organização dos serviços de saúde. 9
Um estudo realizado nos Estados Unidos investigou o impacto da pandemia nos sistemas de saúde e identificou que ocorreram atrasos relacionados a consultas, exames, cirurgia, quimioterapia, radioterapia e fisioterapia, gerando preocupação acerca do rastreio, diagnóstico e tratamento do câncer. 10 Situação que também foi observada no Brasil, no Estado da Bahia, referente aos atendimentos de radioterapia, sendo identificada uma queda de 12 % no número de atendimentos para primeira consulta em 2020, em relação ao mesmo período do ano anterior à pandemia. Concomitantemente, os autores identificaram piora no estadiamento tumoral implicando em elevação de metástases secundárias, em 2020. 11
Desse modo, esses atrasos geraram nervosismo e ansiedade nas pessoas que estavam realizando o tratamento do câncer, somado ainda ao receio frente à possibilidade de contrair a COVID-19 e morrer por isso. O estudo também identificou nos participantes sentimentos de isolamento, solidão, dificuldade ou incapacidade para trabalhar, dificuldades financeiras e preocupação com a possibilidade de perder amigos e familiares pela COVID-19. 10
Salienta-se que além dos impactos relacionados aos serviços de saúde os pacientes adultos jovens também foram afetados pelo isolamento social. Conforme estudo com adultos jovens que vivenciam o câncer, estes demonstraram maior necessidade de apoio e convivência com os pares, 12 o que foi limitado no cenário pandêmico, potencializando sentimentos negativos e fragilizando a saúde mental desses indivíduos.
Ao receber o diagnóstico de câncer é possível desencadear uma pluralidade de sentimentos, como medo, ansiedade, insegurança, instabilidade emocional e/ou financeira. Somam-se ainda a sentimentos relacionados à rotina de vida e mudanças no corpo, podendo ocasionar agressividade e desesperança, em especial por tratar-se de uma doença que ameaça a vida, 13,14 o que pode ser mais impactante quando o indivíduo acometido é jovem e vivencia uma pandemia.
Os adultos jovens em tratamento oncológico no cenário pandêmico podem enfrentar diversos desafios, entre eles o risco de contrair a COVID-19, com as implicações da reorganização dos serviços de saúde e os impactos na saúde mental. Diante desse cenário, é fundamental o desenvolvimento de estudos que possibilitem pensar estratégias para minimizar essas consequências e promover o bem-estar psicológico e social dessa população.
Considerando o exposto, identificou-se a necessidade de aprofundar o conhecimento acerca da temática, conhecendo as repercussões que a pandemia gerou para os pacientes com câncer, em especial na vida de adultos jovens. Para tanto, elaborou-se a seguinte questão: Como adultos jovens com câncer vivenciaram a pandemia de COVID-19 e quais os impactos psicoemocionais gerados em suas vidas? Desse modo, o estudo tem como objetivo conhecer a vivência de adultos jovens com câncer durante a pandemia de COVID-19 e o impacto psicoemocional nas suas vidas.
Método
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, do tipo estudo de caso, realizada com adultos jovens com câncer, atendidos no centro de oncologia de um Hospital de Ensino (HE) vinculado ao Sistema Único de Saúde - SUS, especificamente no serviço de quimioterapia ambulatorial, no sul do Rio Grande do Sul, Brasil. No estudo de caso, objetiva-se estudar um fenômeno contemporâneo em profundidade, preservando o caráter unitário desse fenômeno no seu contexto, 15 nesta pesquisa a experiência de jovens adultos com câncer na pandemia.
Participaram do estudo seis adultos jovens que fizeram tratamento no referido serviço, no período de março de 2020 a dezembro de 2021, durante a vigência da pandemia de COVID-19. Para a coleta de dados utilizou-se entrevistas semiestruturadas, que continham questões sobre a caracterização dos participantes, sua vivência do câncer durante a pandemia de COVID-19 e possibilidades de alterações na assistência e no tratamento, sendo aplicadas as seguintes questões: Que mudanças ocorreram na sua vida devido ao câncer, especialmente na pandemia? Que sentimentos você vivenciou durante a pandemia? Como a pandemia impactou sua vida? Como a pandemia impactou seu tratamento? Estas questões foram elaboradas a partir de leituras prévias que evidenciaram a necessidade de se ampliar o conhecimento sobre o impacto do câncer em adultos jovens, especialmente em crises sanitárias, como a pandemia de COVID-19.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos - sob o CAAE: 65944322.4.0000.5337 e número de parecer 5.920.267. Destaca-se que para atender aos preceitos éticos manteve-se o anonimato dos participantes atribuindo a eles a letra E (entrevistado) seguida de um número (1, 2, 3...), conforme a ordem das entrevistas. Além disso, o perfil dos participantes é apresentado de forma geral e não vinculado às falas, para que não possibilite a identificação dos participantes.
A busca dos participantes foi feita por indicação dos profissionais que atuam no local pesquisado e no sistema de informações do serviço, com o propósito de conseguir dados como: o número do telefone e a idade dos possíveis participantes. De posse desses dados entrou-se em contato por telefone com aqueles que se enquadraram nos critérios de inclusão (estar realizando quimioterapia no serviço selecionado, no período da pandemia de COVID-19 e ter idade entre 18 e 29 anos). O convite para participar do estudo foi realizado via ligação telefônica, ou ainda presencial para aqueles que continuavam fazendo o tratamento no serviço. Para aqueles que não atenderam a ligação telefônica, foi enviada uma mensagem via aplicativo de mensagens (WhatsApp).
Instituíram-se como critérios de seleção dos participantes, os dois primeiros anos de pandemia, pensando que no primeiro ano ainda havia muito desconhecimento acerca da doença e no segundo se teve o maior período de contaminação e morte. Referente a idade dos participantes, adultos jovens, considerou-se por se tratar de uma população ativa e com atividades sociais variadas (formação profissional, inserção no mercado de trabalho, múltiplas atividades de lazer). Assim, a pandemia e suas medidas de isolamento social, pode ter impactado mais fortemente esta faixa etária, além de não ser o período em que a maioria das pessoas vivencia o câncer.
Foram indicadas pelo serviço 22 pessoas, contudo apenas nove se encaixavam nos critérios de inclusão, pois ao verificar tinham idades superior a 29 anos ou tinham finalizado o tratamento oncológico antes do início da pandemia de COVID-19. Desses nove, três não atenderam o telefone e/ou não responderam às mensagens enviadas via WhatsApp.
Assim, com base no descrito acima seis pessoas compuseram o total de participantes viáveis, com base nos critérios adotados. Reconhece-se o tamanho reduzido de participantes constitui uma limitação do estudo, restringindo a replicação dos resultados para outros contextos. No entanto, por como se trata de uma pesquisa qualitativa o objetivo não é a generalizações, mas sim aprofundamento de perspectivas e sentimentos dos participantes, sendo a saturação teórica subjetiva nesses casos.
Na análise temática, utilizada neste estudo, a saturação teórica não pode ser antecipada, pois o significado é gerado da interpretação. Assim, a decisão de interromper a coleta de dados é subjetiva e não podem ser determinados (totalmente) antes da análise. Assim sendo, a saturação dos dados não é um conceito universalmente útil para a investigação em Análise Temática, dependendo de como a Análise Temática e a investigação qualitativa são conceituados e como a própria saturação de dados é definida e determinada.16
Antes de iniciar as entrevistas, os participantes foram esclarecidos individualmente sobre os objetivos, explicando-se sobre a participação voluntária e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Após o convite e a aceitação dos participantes iniciou-se o período da coleta de dados, mediante a entrevista semiestruturada. As entrevistas foram realizadas em local previamente disponibilizado pelo serviço, sendo este tranquilo, privativo e silencioso, facilitando a coleta das informações. Cabe salientar que tanto os participantes do estudo como a pesquisadora estavam utilizando máscaras tipo PFF2, com o propósito de evitar a contaminação e o contágio pelo vírus da COVID-19.
As entrevistas duraram em média 20 minutos, foram realizadas nos meses de abril e junho de 2023, gravadas e transcritas manualmente na íntegra, com dupla checagem. A transcrição foi feita em documento Word. Após a transcrição dos dados, estes foram inseridos e organizados no software WebQDA, de acesso on-line. A análise dos dados com apoio do software qualifica os processos de categorização e interpretação dos dados coletados, uma vez que permite a codificação estruturada de materiais qualitativos, garantindo ainda uma gestão de dados mais rápida e eficaz com sistematização e transparência analítica. 17 Por meio desse software foi realizado um agrupamento das falas, conforme sua similaridade, criando assim códigos, que posteriormente foram refinados e verificados conforme sua significância frente ao todo dos achados.
A seguir apresenta-se a nuvem criada com as 100 palavras mais frequentes, sendo consideradas as que possuíam no mínimo três caracteres e excluindo-se pronomes, advérbios, adjetivos, verbos, entre outros (por exemplo: que, não, mas, ele, isso, fiz, ter, uma, entre outras), para que as palavras mais representativas pudessem emergir: F1
Com base na figura é possível identificar que a palavra “porque” foi a mais citada, estando relacionada aos questionamentos e explicações que os entrevistados vincularam à doença e às limitações que essa causou na vida deles, sendo um importante guia na elaboração dos códigos, que geraram as categorias. Destaca-se algumas palavras relacionadas ao período experienciado, de como os participantes percebem a trajetória até o diagnóstico e tratamento (constituídos como códigos iniciais), tais como: “agora”, “durante”, “depois”, “tempo”. Palavras relacionadas com a doença e a pandemia, bem como relacionadas aos cuidados que os participantes adotaram frente ao câncer e à pandemia (também foram constituídas como códigos iniciais), tais como: “câncer”, “COVID”, “doença”, “impactou”, “tratamento”, “medo”, “pandemia”, “mudanças”, “família”, “trabalhar”. Com base nessas palavras foram criados os códigos iniciais e, posteriormente, ocorreu o agrupamento das falas para criação das categorias.
A análise do conjunto dos relatos foi realizada com base na técnica de análise temática, 18 que consistiu em identificar, analisar e relatar os temas ofertados nos dados coletados, seguindo-se seis passos: familiarização com as entrevistas (transcrição e leitura em profundidade); geração de códigos (extração das palavras mais frequentes, conforme nuvem do software); construção de temas (agrupamento dos dados que convergiram para uma mesma temática); fase de revisão de temas (revisão dos dados e categorias em que foram separados); as fases da síntese e produção do relatório (organização, interpretação e discussão dos temas dentro das categorias elaboradas). Portanto, a partir da codificação inicial elaborada com base na nuvem de palavras e seguindo os passos citados acima, as duas categorias elaboradas para a apresentação da síntese dos resultados foram: Diagnóstico e tratamento para o câncer e associação com a pandemia por COVID-19, e Perspectivas e sentimentos vivenciados frente ao câncer e à COVID-19.
Resultados
Referente ao perfil dos participantes encontrou-se que tinham idades entre 21 e 29 anos, sendo quatro do sexo feminino e dois do sexo masculino. Quanto às atividades laborais desenvolvidas, três eram estudantes universitários, dois exerciam atividades remuneradas e um recebia benefício assistencial do governo, sendo que três moravam com os pais e três com companheiros(as). Com relação ao diagnóstico todos tiveram cânceres em locais diferentes como: câncer de mama, câncer de colo de útero, câncer de testículo, sarcoma sinovial, linfoma de Hodgkin e linfoma não Hodgkin. Embora os dados tenham sido coletados durante a fase de tratamento, os participantes relataram experiências e sentimentos vivenciados ao longo de todo o processo de adoecimento.
Diagnóstico e tratamento para o câncer e associação com a pandemia por COVID-19
Nesta categoria apresentam-se as falas dos participantes que se referem ao diagnóstico e tratamento do câncer no contexto pandêmico. Em alguns casos, o processo foi adiado devido fatores como a condições dos pacientes, por necessidade de isolamento social, quanto por demanda na oferta de consultas médicas de rastreamento. No entanto, com base nas falas da maioria dos participantes, indicam que, a pandemia não alterou ou adiou o tratamento realizado, como observado nos relatos a seguir:
Meu tratamento não sofreu modificações durante a pandemia, eu não percebi mudança enquanto estava fazendo a quimioterapia (E1). Não, eu acho que não chegou a faltar nenhuma sessão na verdade, foi bem tranquilo, mas aqui as sessões que eu fazia eram de 21 em 21 dias, às vezes um pouquinho mais 25. Então, eu não senti nenhuma diferença (E2).
Foi tudo normal assim, exames normais, consultas, ciclos de quimioterapia aconteceram todos no tempo previsto, assim não teve nenhum agravante (E3). Não, eu não me lembre de ter tido alguma mudança, acho que continuou a mesma coisa, acho que por conta de ser câncer, não podiam atrasar (E6).
Nas falas acima apresentadas os participantes referiram que não houve atrasos nem referente aos exames que precisaram realizar, nem no tratamento, sendo que tudo ocorreu dentro da previsão, não havendo mudanças. Em contrapartida, uma participante relatou que a pandemia atrasou seu diagnóstico, pois não conseguia agendar consultas médicas:
Como era no forte da COVID eu demorei, às vezes eu demorava para conseguir consultas com ginecologistas. Eu demorava, tudo reduzido, eu ligava para os consultórios e alguns não me atendiam, alguns diziam que não estavam em funcionamento, outros diziam que demorava um mês para agendar, foi bem difícil (E4).
E4 destacou as dificuldades relacionadas com o agendamento de consultas com especialistas durante o período de pandemia, pois alguns serviços estavam suspensos naquele momento, tornando mais difícil conseguir o atendimento. Complementarmente, essa mesma participante relatou sobre ter apresentado COVID-19, necessitando de isolamento, fato que gerou atraso no tratamento para o câncer.
Eles me mandaram para casa, porque eu já estava internada na época, né, que eu peguei aí eles me mandaram para casa. Fiquei 14 dias em isolamento e aí depois o meu tratamento, né! Eu demorei para conseguir iniciar o meu tratamento, justamente por causa disso, da COVID (E4).
Com base no depoimento de E4 é possível identificar que além dos atrasos nos serviços de saúde, a própria condição de saúde, por ter contraído a COVID, interferiu no início do tratamento para o câncer, considerando prioritário a recuperação da doença infecciosa. Ademais, o contexto pandêmico, impôs algumas mudanças na vida dos entrevistados, especialmente os relacionados a cuidados mais acentuados de limpeza e assepsia:
Acho que a pandemia mudou seria mais a questão da assepsia, do cuidado da limpeza, eu acho mesmo, no geral não, a colocação da máscara, o álcool, estas coisas assim (E5).
Nessa categoria temática evidenciou-se que, de um modo geral, os participantes não perceberam atrasos ou mudanças em seus diagnósticos e tratamentos. Contudo, nos casos em que houve atraso, este foi atribuído tanto às condições de saúde do participante, que necessitou de recuperação após infecção por COVID-19, quanto aos serviços de saúde que foram suspensos no início do período pandêmico.
Perspectivas e sentimentos vivenciados frente ao câncer e à COVID-19
Nesta categoria apresentam-se as perspectivas e os sentimentos que os participantes vivenciaram frente ao câncer, estando esses relacionados ao impacto gerado pelo diagnóstico e tratamento, bem como ao medo frente às condições afetadas para além da saúde, como o exercício das atividades e o convívio social. Nesse contexto, os participantes vivenciam sentimentos de solidão e medo, questionando-se sobre a doença e as limitações impostas por ela:
Acaba que a gente fica com o psicológico bem atrapalhado assim, porque eu sempre fui bem ativa na minha vida assim de estudar, trabalhar e fazer minhas coisas né! E gostava muito de sair também, enfim aí é complicado né! Porque eu tive que parar com todas as minhas atividades (E4).Porque o primeiro sentimento é de uma certa solidão digamos assim, ficam mil pessoas ao entorno, ninguém pode tirar (...) tu que tem que sentir ela, essa dor que vai estar em ti, ninguém pode salvar (E2).
no seu relato explica ‘porque’ o primeiro sentimento foi de solidão, percebendo que o câncer é de certa forma uma experiência solitária, individual, que ninguém pode tirar, gerando uma dor que traz o sentimento de que ninguém pode salvar a pessoa dessa experiência. No depoimento de E4 pode se evidenciar o questionamento frente ao motivo de vivenciar o câncer, apesar do estilo de vida ativo e saudável, além disso gostava muito de sair e com o diagnóstico do câncer teve que parar todas as atividades, demonstrando incompreensão do ‘porque’ ter que vivenciar isso.E2
A coexistência do diagnóstico de câncer com a pandemia de COVID-19 gerou um impacto psicológico significativo nos participantes. A imunossupressão causada pela quimioterapia aumentou o risco de infecção, exigindo cuidados ainda mais rigorosos e ampliando a carga emocional dos participantes:
Na verdade, eu não posso ficar doente, né? Então eu me cuido muito, eu não saio mais na rua assim com desconhecido, eu já não saio (...) eu tenho medo de pegar uma gripe, porque como a imunidade está baixa, então não dá para arriscar (E1).
Baixa a imunidade, eu passei a me cuidar um pouco mais e levar um pouco mais a sério. Então, eu acho que com relação a pandemia, eu acho que é mais isso mesmo, e até porque eu estou fazendo a quimioterapia e tudo (E5). É, eu tive muito medo de pegar COVID por conta da minha imunidade mesmo, de como ia ser a resposta do meu corpo em relação ao tratamento (E3).
Observa-se que a partir do advento da pandemia, os participantes redobraram os cuidados que já tinham, pois perceberam que com o tratamento e a imunidade mais baixa decorrente do câncer, apresentavam ainda mais possibilidades de contrair a COVID. Assim, pelo medo de adquirir a COVID-19, os entrevistados se mantiveram mais em casa, contudo, mesmo assim E1 relata que adquiriu a doença:
Com relação a pandemia acho que impactou a vida de todo mundo, porque a gente não podia fazer nada. Eu peguei (sobre ter contraído COVID) sem sair de casa. Eu peguei só com os entregadores que iam lá entregar, e mesmo assim álcool gel, máscara, tudo e mesmo assim eu peguei (...). Eu não saia de casa, saia somente para ir fazer as quimios e consultas. Não deixava ninguém me visitar, passava álcool em tudo, fazia compra do supermercado on-line, tudo para não sair (E1)
No depoimento de E1 fica evidente que mesmo com os cuidados de higiene redobrados e mantendo o distanciamento social a participante contraiu COVID-19. Complementarmente, além do medo de contraírem COVID-19 eles próprios, os participantes também temiam pelas pessoas da família:
E aquilo ficava passando cem por cento do tempo na minha cabeça porque tipo o meu noivo, ele trabalhava ainda, ele trabalhava com pessoas, né? (E3). Fiquei só com a minha mãe em casa, eu e a minha mãe usava máscara para ela não pegar, não dividia nenhum talher, nem nada, mas claro sempre com medo dela pegar também (E4).
Nesse contexto de medo e incertezas, houve até confusão entre os sintomas da COVID-19 com os do câncer, conforme visto no relato de E4:
Como eu já tinha alguns sintomas ‘entre aspas’ parecidos com os da COVID-19, eu tinha muita, às vezes, muita dor no corpo também né! Já tinha a dor e aí eu sentia dor no corpo, também tinha a febre e essas coisas assim. Então eu não sabia diferenciar o que que era a COVID, o que era o câncer, né? Qual dor era qual (E4).
Com base no relato de E4 observa-se que os sintomas de uma condição podem mascarar os de outra, ou seja, sintomas semelhantes podem ser decorrentes tanto da COVID-19 quanto do câncer, o que pode dificultar a sua identificação. Nesse contexto, as medidas de proteção afetaram a vida dos participantes, sendo que o isolamento social imposto pela pandemia também foi destacado, interferindo na vida deles, uma vez que precisaram parar de trabalhar ou conviver com a família, ampliando ainda mais a vulnerabilidade que já vivenciavam em decorrência do câncer:
Então eu acho que essa falta de social assim de tu ver pessoas, de tu abraçar, de tu ver pelo menos a tua família. (...) e trabalhar, que assim eu sou uma pessoa que eu trabalho muito e por trabalhar com criança autista eu me culpava muito, porque eu estou ausente, a criança precisa de mim (E3).
E3 destacou em sua fala o impacto que as medidas de restrição da pandemia geraram no seu trabalho, de forma que se preocupava não só consigo mesma, mas também com a população que atendia, no caso as crianças autistas. Por outro lado, E2 relatou que acabou se expondo mais ao vírus, devido à necessidade de acompanhar a mãe doente:
Eu tive que viver meio que exposta, digamos assim, dentro do hospital, por exemplo a mãe teve que fazer a cirurgia e a minha família é extremamente pequena, então meio que ficou por minha conta (E2).
A necessidade de acompanhar a mãe em tratamento ampliou a exposição de E2, sendo que não possuiu alternativa. Complementarmente, evidenciou-se ainda, que a família dos pacientes, como no caso de E6, estava mais preocupada com a possibilidade do participante contrair a COVID-19 do que ele próprio:
É, acho que minha mãe ficou mais preocupada do que eu. Sabe como é mãe, né? Se preocupam mais com a gente do que com elas, mesmo ela também podendo ficar doente, até pior que eu (E6).
Com base nos resultados foi possível identificar o impacto gerado tanto pelo câncer quanto pela COVID-19 na vida dos participantes, que precisaram readequar suas rotinas e vivenciaram sentimentos de temor e solidão.
Discussão
Com base nos resultados observa-se que a maioria dos participantes não percebeu alteração significativa no tratamento para o câncer devido à COVID-19, assim como na assistência recebida dos profissionais. Contudo, o que se intensificou foram os cuidados adotados na assistência, tais como a assepsia.
Conforme relato da participante E4, o que ocorreu foi à demora para consultar com um especialista. Este fato pode estar relacionado com a reorganização dos serviços de saúde no contexto da pandemia, uma vez que uma das primeiras medidas adotadas no município do estudo foi o fechamento dos ambulatórios de especialidades e suspensão temporária de consultas a especialista e cirurgias eletivas, direcionando os recursos para o enfrentamento da COVID-19, decorrente da alta taxa de mortalidade.
Dessa forma, é possível inferir que as pessoas na fase inicial, ou seja, em rastreio e diagnóstico para o câncer foram as mais afetadas negativamente pela pandemia, uma vez que o sistema de saúde já apresentava fragilidades antes do cenário pandêmico, que apenas expôs ainda mais esta problemática no país. De acordo com estudo realizado no Brasil com dados sobre o sistema de informações do câncer, no ano de 2020, houve uma queda nos procedimentos relacionados ao rastreamento, à investigação diagnóstica e ao tratamento de câncer em relação ao registrado em 2019, com exceção das quimioterapias que mantiveram o volume de produção, com leve aumento em 2020. 19 Todavia, exames de rastreamento sofreram as maiores reduções, especialmente nos meses de abril a junho de 2020, período de maior complexidade da pandemia no país.
Em estudo realizado no norte do Brasil, com dados coletados nos seis primeiros meses da pandemia, identificou-se a manutenção terapêutica adequada dos pacientes no centro oncológico, sendo isso justificado pela adequação de medidas preventivas de segurança adotadas pelo serviço. 20 Em conformidade, este estudo também investigou pacientes que na sua maioria estavam em tratamento oncológico em andamento na referida instituição, diferente de outras pesquisas que investigaram consultas com especialistas e exames de rastreio e diagnóstico.
Igualmente, um estudo de comparação referente ao tratamento oncológico, antes e após a pandemia, identificou uma diminuição significativa no número de pacientes em tratamento e de pacientes atendidos. Esses declínios puderam ser observados no número de consultas médicas, principalmente em consultas iniciais e início de novos ciclos de tratamentos sistêmicos endovenosos, cirurgias oncológicas, internações para diagnósticos relacionados ao câncer e a transplantes de células-tronco, 21 ou seja, o impacto maior e mais negativo foi ainda mais significativo para os pacientes em fase de rastreio e início do tratamento.
Ao se considerar os adultos jovens, a dificuldade de rastreio e diagnóstico pode impactar diretamente na qualidade de vida deles e de seus familiares. A necessidade de tratamentos mais longos, agressivos e hospitalizações, pode interferir na vida escolar e/ou no processo de trabalho, alterando o cotidiano e a renda das famílias, afastando estes jovens do convívio social por períodos mais prolongados, o que pode também influenciar na saúde mental deles.
Diante das falas dos participantes, também é possível identificar que os adultos jovens com câncer ao realizarem o tratamento apresentam sentimento de insegurança, medo de contrair o vírus da COVID-19 ou de outras doenças, devido à imunossupressão. Frente a isto, eles adotaram medidas de isolamento social para evitar o contágio. Em um estudo sobre representações sociais, realizado com jovens em tratamento oncológico durante a pandemia no estado de Pernambuco, foi identificado que frente ao cenário da COVID-19 os jovens demonstraram medo de contraírem o vírus, considerando o comprometimento da imunidade causada pelo tratamento. 22
Embora os resultados não comprovem que os pacientes com câncer sejam mais suscetíveis a infecções graves, as sociedades dedicadas ao tratamento desses pacientes têm alertado para um grupo extremamente vulnerável, que inclui pacientes em tratamento quimioterápicos em fase de indução, que geralmente inclui altas doses de esteroides; pessoas que estão sendo tratadas para leucemia e linfoma; submetidos a transplantes de células-tronco hematopoiéticas nos últimos 12 meses e submetidos ao tratamento com terapia gênica de CAR T cells. 23 Cabe ressaltar, que além das complicações, os profissionais devem ficar atentos à possibilidade de coinfecções, isto é, a infecção concomitante pela COVID-19 e outros microrganismos, em especial na população transplantada.
Sabe-se que o contágio do vírus da COVID-19 é através do contato entre pessoas, contudo, mesmo se mantendo em casa, isoladas, algumas participantes tiveram convívio com familiares no mesmo domicílio ou ainda com prestadores de serviço, o que gerou sentimentos de medo e insegurança. Inclusive, uma participante referiu que foi por meio de prestadores de serviço que contraiu a COVID-19.
Como estratégia de manter-se isolado, a adoção de mudanças na forma de compra, aderindo ao uso de tele-entrega e compras online foi identificado, garantindo o mínimo de exposição por parte dos participantes do estudo. Durante a pandemia muitas pessoas, no Brasil 24 e mundo 25 mudaram suas formas de comprar, optando por plataformas online ou delivery, o que permitiu uma maior adesão aos protocolos de saúde, tornando-se uma alternativa para minimizar o risco de infecção e proteção da saúde, e se pensando em pessoas com câncer, que estão imunossuprimidas, se mostra uma opção importante e até mesmo necessária.
O medo do contágio, mudanças no estilo de vida e o confinamento de pessoas com câncer durante a pandemia de COVID-19, causaram um impacto negativo no bem-estar mental destas pessoas, exacerbando sentimentos como estresse, ansiedade, depressão e solidão. Além disso, identificou-se ainda uma diminuição na qualidade de vida, no funcionamento emocional, cognitivo e social em pacientes com câncer, durante o período COVID-19. 26,27
É importante considerar que os pacientes em tratamento oncológico já apresentam risco para o desenvolvimento de depressão pelas situações associadas ao contexto do câncer como o medo da morte, 28 somou-se a isto as angústias associadas à pandemia e a faixa etária dos pacientes. Cabe salientar que embora a pandemia já esteja sendo superada é imprescindível investir na atenção à saúde mental destes indivíduos em longo prazo, pois os efeitos da pandemia podem permanecer.
Nesse contexto, é fundamental desenvolver intervenções específicas para os adultos jovens em tratamento oncológico e seus familiares com propósito de ampliar suas necessidades psicológicas e sociais, 29 visando assim minimizar as repercussões negativas geradas pela COVID-19. Além disso, estas estratégias podem fomentar políticas direcionadas ao cuidado em saúde mental de pacientes adultos jovens em tratamento oncológico frente a situações de crise, auxiliando na estruturação do sistema de saúde para o enfrentamento de pandemias e outras catástrofes.
Uma das participantes do estudo relatou a experiência de acompanhar a mãe que precisou ser hospitalizada para realização de tratamento para câncer de mama, exigindo cuidados, exposição em ambiente hospitalar e possivelmente contaminação. Por outro lado, o E6 relatou que o maior medo de exposição era de sua mãe e não dele próprio. O medo de contrair a COVID-19 e contaminar a pessoa com câncer, repercute negativamente na saúde mental dos familiares e na capacidade de apoiar o familiar com câncer.
Então, ressalta-se a importância dos profissionais de saúde em fornecer suporte, tanto para a pessoa com câncer, quanto para o seu cuidador. Ao pensar no todo, é relevante o desenvolvimento de atividades como grupos de apoio e ampliação de profissionais da área de saúde mental em serviços oncológicos, pois o tratamento causa uma gama de sentimentos negativos, sendo que compartilhar ideias, pensamentos poderia ser uma estratégia de enfrentamento para minimizar o problema.
É importante destacar que a exposição direta com as unidades hospitalares, a possibilidade de utilização de transportes coletivos e os poucos recursos para uso de equipamentos de proteção individual como álcool e máscaras, expuseram as pessoas a maior risco de contraírem a doença. 19. Com isso, existe a preocupação com a possibilidade de adoecer e transmitir o vírus para familiares, amigos ou colegas de trabalho, questões que podem afetar diretamente a saúde mental. Esses fatores podem levar a graus variados de sofrimento psíquico, tornando essa população vulnerável ao sentimento de insegurança em relação a sua própria vida.
Tal fato também foi identificado em estudo realizado no Irã, uma vez que o não cumprimento de medidas de precaução padrão como o uso de máscaras e vacinação, devido à negligência dos companheiros de pessoas com câncer, causaram medo de infecção e perturbação mental. 30 Corroborando, sentimentos de frustração também foram identificados por pessoas com câncer ao identificar que familiares não estavam adotando medidas de segurança contra o vírus. 31
A COVID-19 é altamente transmissível entre seres humanos. Os pacientes apresentaram sintomas como febre, mal-estar e tosse. Embora o sinal clínico inicial da doença, que levou à detecção dos casos, tenha sido a pneumonia, há relatos mais recentes de sintomas gastrointestinais e infecções assintomáticas. 32 Desse modo, sintomas da COVID-19, como dores no corpo e febre foram confundidos com sintomas do câncer por uma participante, uma vez que sintomas como estes podem aparecer em ambas às doenças. Na pandemia foram identificadas barreiras na comunicação entre pacientes e profissionais de saúde, em virtude das máscaras (dificuldade de escutar com clareza o que era falado), 30 somado a necessidade de criação de protocolos de atendimento para o câncer, a fim de garantir o bem-estar e fornecer apoio durante um problema de saúde global. 33 Nesse contexto, é imprescindível que os profissionais de saúde possam fornecer suporte para os pacientes em tratamento oncológico, a fim de que consigam discernir entre os sintomas das patologias (câncer e COVID-19) e, assim, adotarem o tratamento e cuidado adequados.
Desse modo, salienta-se ainda o profissional de enfermagem com um papel fundamental frente a essa questão, pois é o que mais tempo fica a disposição com os pacientes, em todos os serviços de atenção à saúde, favorecendo a comunicação e o esclarecimento de dúvidas. Assim, é essencial a capacitação de profissionais de saúde para identificação de sintomas e garantia de um diagnóstico correto para pacientes com câncer e infectados pela COVID-19.
Conclusões
Identificou-se que na perspectiva da maioria dos participantes não houve mudança ou atraso no tratamento destes durante a pandemia de COVID-19. Destacaram o medo de contrair o vírus devido à sua imunidade ser baixa em decorrência do tratamento e, com isso, os cuidados com a assepsia foram redobrados. Na pandemia de COVID-19 intensificou o isolamento social já vivenciado pelos jovens com câncer, limitando suas interações sociais, afastar-se de suas funções e familiares. Desse modo, o afastamento necessário para evitar a contaminação pelo vírus, somado ao isolamento decorrente do tratamento oncológico, gerou sentimentos de pode ter consequências psicológicas significativas para esses jovens.
Encontrou-se limitações na coleta de dados devido à pouca demanda de população jovem em tratamento neste período, pois a grande maioria foi encaminhada para o grande centro de referência do estado, ou seja, para Porto Alegre, capital do Estado, devido ao fato de ser o centro de especialidades oncológicas. Embora os resultados não possam ser generalizados para outras populações, a abordagem qualitativa trata de uma realidade específica e pode fornecer indicativos importantes de cuidado a serem adotados em outros contextos que assistem aos jovens com câncer.
O estudo demonstra a importância do suporte psicológico para pacientes com câncer e seus familiares, especialmente em períodos de crise como a pandemia de COVID-19. O medo da contaminação, o isolamento social e a incerteza sobre o futuro geram um alto nível de estresse nestas pessoas.
Para isso, é fundamental desenvolver protocolos de atendimento específicos para pacientes com câncer em situações de pandemia. Esses protocolos devem contemplar a necessidade de informação clara sobre a COVID-19, o oferecimento de suporte psicológico para lidar com as questões emocionais geradas pela doença e pela pandemia, e a ampliação de equipes multiprofissionais capacitadas para atender às demandas complexas dessa população. A implementação desses protocolos contribuirá para auxiliar no desenvolvimento de estratégias de enfrentamento eficazes e melhorar a qualidade de vida dos pacientes e seus familiares.