Introdução
Neste artigo abordo o trabalho animal e o trabalho com animais (Coulter, 2016) realizado por policiais, chamados de cachorreiros, e seus cães, tomando como metodologia a Teoria das Representações Sociais (Moscovici, 2003; Jodelet, 2001; 2009; Porto, 2010, 2017a). Os dados que fundamentam as análises foram coletados em pesquisa empírica com policiais do Batalhão de Policiamento com Cães da Polícia Militar do Distrito Federal (BPCães/pmdf). O objetivo é analisar as representações sociais dos policiais sobre as raças que utilizam e sobre as funções que operam como forma de avançar na compreensão sociológica da relação entre humano e cão e do trabalho animal e com animais.
Ao abordar o policiamento com cães, o trabalho com animais (Coulter, 2016) é uma forma de atividade policial, enquanto que o trabalho animal, realizado pelo cão a partir do binômio formado com seu condutor, se desenvolve como uma forma de relação interespécie. Assim, essa pesquisa se consolida como uma intersecção entre dois campos de estudo interdisciplinares, os estudos animais (Irvine, 2008; Sanders, 2006a; Shapiro e DeMello, 2010) e os estudos policiais (Muniz, Caruso e Freitas, 2018).
Os Estudos Policiais representam um campo consolidado na Sociologia (Monjardet, 2012; Muniz, Caruso e Freitas, 2018). Principalmente nas últimas duas décadas, diversos trabalhos acadêmicos contribuíram para a compreensão da atividade policial. São estudos sobre a identidade profissional dos agentes de segurança pública (Poncioni, 2004; Porto, 2017b), sobre a seleção e treinamento dos noviços (Mattos, 2012), sobre as formas de suspeição (Silva, 2009), sobre suas representações militares (Suassuna, 2017), dentre outras temáticas.
Estes estudos amparam teoricamente esta pesquisa na medida em que fornecem instrumentais teórico-metodológicos para analisar fenômenos e categorias sociais que integram a realidade social dos policiais. Sendo um estudo em representações sociais, é importante ressaltar que o contexto de trabalho dentro da atividade de segurança pública oferece o contexto singular no qual essas representações vão surgir e se reproduzir, já que contextos diferentes geram representações sociais diferentes sobre os mesmos objetos (Moscovici, 2003), no caso, os cães.
Já o campo dos Estudos Animais nas Ciências Sociais, apesar de seu desenvolvimento e institucionalização em alguns países da América do Norte e da Europa (Gaedtke, 2017; Shapiro e DeMello, 2010), ainda é considerado por muitos uma sociologia de boutique (Arluke, 2003). Apesar da relação humano-natureza ser fundante de nossa história, a Sociologia demorou a se atentar às especificidades e potencialidades desse objeto de pesquisa (Arluke, 2002, 2003; Irvine, 2008; Sanders, 2006a). No entanto, é importante ressaltar que as relações interespécie ganharam destaque dentro das ciências na contemporaneidade (Gaedtke, 2017).
É possível que o crescimento desse interesse possua relação com o fato de que ,cada vez mais, os animais participam do cotidiano das pessoas, adentrando espaços físicos e afetivos antes negados a eles, seja a cama de dormir, seja o status de integrante da família (Baptistella, 2015; Lima, 2016). Basta observar como os pets são cada vez mais comuns como companhias de pessoas solteiras e de casais sem filhos (Kulick, 2009). No Ocidente, a chamada cultura pet tomou grandes proporções, ocupando espaço de destaque nas representações sociais acerca dos animais de estimação (Oliveira Neto, 2021).
A partir do século xvii, a relação com animais de estimação se torna a principal forma de relação humano-animal no meio urbano (Thomas, 2010), na medida em que um dos traços da Modernidade foi o distanciamento da produção rural, inclusa a criação e o abate de animais de corte, das metrópoles (Elias, 1994). Os animais de trabalho passam a ser representados enquanto símbolos do atraso, do pré-moderno, sendo substituídos pelas máquinas a vapor e veículos automotivos (Thomas, 2010).
Ao mesmo tempo, o desenvolvimento de raças de pequeno porte permitiu a entrada de cães no ambiente domiciliar das classes mais abastadas, colocando-os como companhias para mulheres, as quais também eram restritas ao espaço doméstico (Thomas, 2010). É a partir daí que começa a se desenvolver aquilo que hoje chamamos de cultura pet, e que vem recebendo cada vez mais atenção de estudiosos de diversas áreas enquanto fenômeno social.
Os pets ocupam espaços no campo das relações de cuidado e afeto (Irvine, 2008; 2012). Ao preparar diariamente uma alimentação especial para seu bichano, ou ao trazer presentes de viagens para seus cães, os indivíduos interagem com seus pets como se fossem parentes, não apenas amigos (Mazon e Moura, 2017), fazendo emergir a família multiespécie enquanto configuração familiar (Lima, 2016).
E o cão, como já foi dito, ocupa posição de destaque nas mudanças nas relações interespécie por ser o animal de estimação por excelência. Por consequência, o cão que ocupa outra posição social que não a de animal de estimação, como o cão de trabalho, e a forma como esse é representado e tratado pelos humanos, não passa incólume pelas profundas mudanças sociais citadas acima, e de outras, em especial as mudanças do campo de atuação dos cachorreiros, que é o da segurança pública.
No período que se seguiu ao término da Primeira Guerra Mundial, o trabalho com cães policiais se intensificou como uma prática recorrente nas polícias do mundo todo (Rosa, 2009). Já ao final do século xx, a expertise do uso de cães para atividades policiais estava consolidada na maior parte dos países, com destaque para Rússia, França, Inglaterra, eua e Colômbia, dentre outros.
No Distrito Federal, até o ano de 2020, os principais canis existentes nas instituições de segurança pública eram os da pmdf, do cbmdf, da pf e da prf. Além desses, os Cães de Guerra da Polícia do Exército, o canil do Grupamento de Fuzileiros Navais, da Aeronáutica, da Receita Federal e da pcdf. Em 2019, as Polícias Legislativas da Câmara e do Senado Federal iniciaram projeto piloto para o uso de cães de detecção de entorpecentes e de explosivos para auxiliar na segurança das casas.
A abordagem sociológica pela teoria das representações sociais
A metodologia escolhida foi a abordagem pela Teoria das Representações Sociais (trs), na tradição sociológica que se desenvolve a partir das obras de Serge Moscovici (2003), com Denise Jodelet (2001, 2009), na psicologia social, e Maria Stela Grossi Porto (2010, 2017b) na sociologia. Partindo do entendimento de que as representações sociais são elementos dotados de significado social e que possuem potencial para orientar a ação cotidiana dos indivíduos (Moscovici, 2003), sua instrumentalização permite avançar na compreensão de fenômenos sociais plurais, como as relações entre humanos e outros animais.
A abordagem sociológica da trs permite analisar como os atores sociais buscam entender o mundo e se entender neste mundo, jogando luz na rede de valores e crenças presentes nas representações sociais que esses atores possuem. Pela trs, as portas de entrada para a compreensão de um dado fenômeno social, são os sentidos que os atores dão ao que fazem em sua rotina de trabalho, e também no restante de seu cotidiano. Daí a importância empírica de associar observações in loco, incursões etnográficas no trabalho do canil estudado, com entrevistas a fundo com atores qualificados, que são as ferramentas de coleta de dados utilizadas.
Abordar a realidade social a partir das representações implica entender que a sociedade é formada pela sua parte material, objetiva, e pela sua parte simbólica, subjetiva, tão real quanto a material. Essa parte simbólica está presente nas imagens, na linguagem (Jovchelovitch e Guareschi, 1998), nos discursos, nas palavras e nas mensagens midiáticas (Jodelet, 2001). Dessa forma, a trs é uma metodologia que privilegia a subjetividade das representações, mas sem perder de vista que tais representações “só se constroem em relação a um dado contexto ou ambiente, objetivamente dado, já que sentidos não podem ser compreendidos independentemente do campo social no qual se inserem” (Porto, 2010, 2017a).
Foi a partir da publicação de La Psychanalyse: Son image et son Public, em 1961, que Serge Moscovici sistematizou a teoria das representações sociais no campo da psicologia social (Farr, 1998). Moscovici avança na concepção das representações dando destaque para dois aspectos que lhes seriam característicos. O primeiro é a condição de conhecimento socialmente compartilhado e elaborado pelos diferentes grupos sociais, como, no caso desta pesquisa, sobre o trabalho policial com cães. O segundo consiste na sua condição enquanto realidade afetiva vivida pelos indivíduos, através de emoções, sentimentos e afetos entre humanos e cães.
Minha apropriação da trs segue a linha de Maria Stela Grossi Porto (2010): “Por não possuir os elementos da formação discursiva própria à psicologia social, a apropriação que faço da Teoria das Representações Sociais, embora guarde uma grande proximidade com esta formação, é, em certo sentido, “utilitarista”. Em sua utilização, a argumentação não percorre passo a passo todo o caminho daqueles que, na psicologia social se dedicaram ao tema. Também não privilegia a parte da teoria que se dedica aos aspectos propriamente cognitivos da formação e da constituição das representações sociais e de seus mecanismos de difusão. Além do que, não há, nessa apropriação, preocupação em dissecar dada representação, ressaltando de que modo se constituíram seu núcleo central e suas periferias. Aliás, não distingue centro de periferia. Pelo contrário, trabalha a noção como um todo e sempre no plural, assumindo as representações sociais enquanto blocos de sentidos articulados, sintonizados ou em oposição e em competição a outros blocos de sentido, compondo uma teia ou rede de significações que permite ao analista avançar no conhecimento da sociedade por ele analisada” (p. 66).
Além das adaptações feitas, cabe também apresentar as premissas sociológicas da trs. Segundo Porto (2010): “Interrogar a realidade a partir do que se diz sobre ela, utilizando-se da categoria das representações sociais significa assumir que estas:
a) embora resultado da experiência individual são condicionadas pelo tipo de inserção social dos indivíduos que as produzem;
b) expressam visões de mundo objetivando explicar e dar sentido aos fenômenos dos quais se ocupam, ao mesmo tempo em que;
c) por sua condição de representação social, participam da constituição desses mesmos fenômenos;
c) apresentam-se, em sua função prática, como máximas orientadoras de conduta;
d) admitem a existência de uma conexão de sentido (solidariedade) entre elas e os fenômenos aos quais se referem, não sendo, portanto, nem falsas nem verdadeiras, mas a matéria prima do fazer sociológico…” (p. 68)
As representações sociais, por si só, não são conhecimento sociológico objetivo (Porto, 2010). Para isso é necessário que sejam interpretadas em relação direta com a realidade objetiva sobre a qual falam. Dessa forma, são fontes relevantes de material analítico que permitem melhor compreender fenômenos sociais, como aqueles referentes às relações entre humanos e animais de trabalho.
A pesquisa empírica
Para acessar as representações sociais dos cachorreiros, a pesquisa empírica se desenvolveu em duas frentes. A primeira, a partir da observação in loco da rotina de trabalho do BPCães, teve como um de seus motivos dar centralidade aos atores pesquisados, evitando tratá-los como sujeitos passivos da pesquisa, reféns das minhas pré-noções e inclinações subjetivas. Assim, a intenção foi seguir os atores como guias do campo que dominam: “Develop working relationships with Professional working in shelters, zoos, sanctuaries, veterinary, and animal-assisted practices. These animal workers are privy to the varied forms of human-animal relationships that are the grist of has studies. As they are both guides to and beneficiaries of policy innovation, they are important allies” (Shapiro e DeMello, 2010, p. 315).
Observar as relações interespécie implica observar os animais quase que na mesma medida que os humanos. Essa tarefa exige um esforço contínuo: “A separação entre homem e natureza citada no primeiro capítulo nos coloca em um lugar imaginário dentro do planeta, um lugar mais elevado. Ao observar a cidade, percebi que os animais estão sempre fora da altura dos olhos humanos. Para enxergá-los é preciso sempre uma mudança de eixo. Tirando os pássaros que dão rasantes e por acaso cruzam nosso olhar, ver um animal é sempre olhar para baixo, para cima ou por entre as coisas” (Baptistella, 2015, p. 67).
No caso de um canil, observar os animais é, em grande parte, “olhar por entre as coisas”, pelas frestas das baias, pelas estruturas de concreto e metal das áreas de treinamento, pelas pernas dos policiais.
A segunda frente de pesquisa empírica se deu a partir de entrevistas semi-estruturadas com cachorreiros dos dois canis. O objetivo das entrevistas era apreender o discurso nativo acerca do que pensavam sobre seu trabalho, nos mais diversos aspectos, incluindo a relação e interação com os cães.
Ao final do trabalho de campo, 13 cachorreiros foram entrevistados. À época, estavam lotados ali 131 policiais. Dois fatores foram indicadores de que, após estas 13 entrevistas, havia chegado o momento de encerrar a coleta de dados: 1) a repetição de informações e 2) a percepção de que os interlocutores estavam perdendo interesse em participar da pesquisa.
Cachorreiros e cães policiais
O coletivo humano-animal (Sá, 2013) estudado é formado por cachorreiros e seus cães. Quando trato os cachorreiros como grupo social, parto de uma definição que talvez possa ser dita flexível, mas que se mostra solidamente funcional para os objetivos desta pesquisa, elaborada por Howard Becker (2007). Considero os cachorreiros como um grupo social tanto porque eles se definem como um grupo específico e separado de outros, quanto o são considerados distintos por outros grupos.
De acordo com o dicionário Antonio Houaiss e Mauro de Salles Villar (2001) cachorreiro é um substantivo masculino que significa “1 criador ou treinador de cães de caça; 2 aquele que, nas caçadas, conduz os cães que farejam a trilha; matilheiro” (p. 553). Tanto nas entrevistas quanto nas observações in loco, notei que o termo cachorreiros era utilizado para definir o grupo de atores do campo da segurança pública e privada que trabalham com cães. São policiais, bombeiros, adestradores, militares, guardas civis, seguranças privados, dentre outros, que utilizam os cães em suas atividades. O que os coloca como cachorreiros é a vivência compartilhada das situações vinculadas a essas práticas e, principalmente, as representações do cão enquanto um animal de trabalho em oposição ao cão pet. Nesse sentido, o termo cachorreiro é empregado como identidade de um grupo heterogêneo, centrado no trabalho com cães de segurança e que possui reconhecimento social positivo de sua profissão (Oliveira Neto, 2021).
Na perspectiva metodológica adotada, os cães policiais possuem papel central. Não é uma questão de substituir o ser humano pelo ser canino nessa posição, mas de integrar o animal à abordagem enquanto agente ativo na construção social da realidade (Baratay, 2016).
O termo K9 é frequentemente utilizado na identidade profissional desses cães, chamados de policiais K9. A adoção do termo, derivado da língua inglesa, sugere sua disseminação na atividade fora do Brasil, de onde foi absorvida. Cabe destacar também a presença do termo em filmes como K-9 - Um Policial Bom pra Cachorro, de 1989, sua sequência K-9 - Um Policial Bom pra Cachorro 2, de 1999, e também K-9000, de 1991. Além dos filmes, é comum o uso do termo em matérias jornalísticas sobre esta atividade.
No Brasil, a série Cães Heróis foi lançada em 2015, produzida pelo canal Animal Planet e distribuída pelo grupo Discovery Networks. No formato de doc-reality, a série mostra a rotina de trabalho do canil da Polícia Militar do Estado de São Paulo, e também de alguns outros canis.
A violência na atividade policial
A categoria da violência talvez seja aquela que predomine nas discussões, acadêmicas ou não, sobre atividade policial. Para Egon Bittner (2003), a polícia moderna se constitui enquanto um mecanismo de distribuição da coerção, através do uso da força, que deve ser assim distribuída de acordo com a compreensão de cada situação em si. A manipulação da violência, do uso comedido da força, é, nessa concepção, a própria essência da atividade policial. A definição de Bittner aproxima-se daquela defendida por Jacqueline de Oliveira Muniz e Domício Proença Júnior (2013), na qual a função da polícia moderna é produzir obediências consentidas a partir da distribuição do uso da força: “Polícia existe para coagir. Coage pelo uso de força em ato ou em potência. Em ato, quando sujeita fisicamente, quando faz uso do cassetete, quando dispara uma pistola, um fuzil. Em potência, quando assinala presença e disposição para agir por um gesto; quando sopesa o cassetete, saca a pistola ou assesta o fuzil. Quando apenas se apresenta, armada e pronta, ou se sabe que pode se apresentar armada e pronta. Quando sopra um apito, pisca um farol ou aciona uma sirene; ou cumprimenta na rua. O uso de força policial é uma ação política da polis para impor a alguns o que destes se deseja que façam” (Muniz e Proença Júnior, 2013, p. 120).
Nesse caminho, a violência não poderia deixar de integrar a atividade dos cachorreiros. Em suas criações, os canis policiais possuíam enquanto principais funções a atuação em rondas, a contenção de distúrbios e a participação em eventos, desfiles e apresentações (Rosa, 2009). Na criação do canil da pmdf, em meados da década de 1970, as formas de emprego dos cães policiais eram menos numerosas que as encontradas atualmente, e os cães de demonstração estavam entre os pioneiros da atividade. Também estavam presentes os cães de policiamento, utilizados tanto no policiamento ostensivo, nas rondas, quanto na contenção de distúrbios. Na virada do século xx para o xxi, surgem novas formas de emprego dos cães policiais, na detecção de substâncias e na busca e captura de suspeitos (Nogueira, 2015).
Com objetivo de analisar sociologicamente o trabalho dos K-9, podemos separar dois grupos de funções dos cães policiais de acordo com a violência contida nelas. Um primeiro seria o daquelas funções em que o cão é instrumento de violência direta, seja pela imposição do medo com latidos e rosnados, seja pela sua simples presença em situações de abordagem, como os cães de ronda e de contenção de distúrbios, ou pela mordida. São cães instrumentalizados enquanto violência, simbólica ou prática, por si só. Sua função é produzir, unicamente, coerção.
“Com o cão de defesa, que é o fator psicológico pra intimidar os detentos a querer fazer algo, alguma tentativa lá contra um agente público né. Que sempre o preso ali dentro, ele fica vinte e quatro horas matutando como conseguir fugir ou conseguir pegar alguém como refém né. Então o cão de defesa faz esse trabalho psicológico ali. Só a presença do cão latindo ali já inibe a ação. Isso tanto nos presídios como no, como nas ações de manifestações, de controle de distúrbio civil, o cão de policiamento ele causa um impacto psicológico muito grande. O manifestante ele pensa duas vezes antes de se aproximar de uma tropa de choque vendo o cão lá do que sem o cão, porque a gente sabe que o cão vai morder né, então só a presença ali já inibe…” (Cachorreiro 8)
“Ah tem, o efeito psicológico do cachorro é muito grande. Ele impõe respeito né, medo mesmo. O cidadão abordado ele pensa é duas, três vezes, antes de tentar fugir, que o cão tá ali, vidrado nele. Então ele sabe, se correr o bicho pega ” (Cachorreiro 2).
A esse conjunto de funções denomino funções de violência declarada, nas quais as atribuições de agressividade dos cães são instrumentalizadas diretamente para o exercício de suas atividades. São cães para latir e para morder. Não servem para atrair as pessoas, mas para afastá-las, amedrontá-las. Nesse sentido, são cães que mantêm proximidade com os cães de guarda (Lima, 2016). É a mordida, e não o faro, a capacidade canina valorizada nessas funções.
Um segundo grupo são aqueles cães empregados em funções de violência comedida, conforme expressão de Muniz e Proença Júnior (2013). Segundo os autores, em sua função coercitiva, a polícia moderna faz uso de uma violência comedida, na medida em que deve se restringir aos parâmetros legais de suas competências, e de dever optar pela forma adequada de violência. Essa adequação do uso da força deve levar em conta as singularidades de cada situação, bem como a capacidade de resolver os problemas colocados.
Obviamente o policiamento com cães de ronda, ou o uso de cães no controle de distúrbio são, a partir do conceito de Muniz e Proença Júnior (2013), formas de violência comedida. Minha apropriação do termo para a formulação das funções de violência comedida se dá a partir do discurso de defesa das técnicas de faro como menos violentas que as demais. Segundo os cachorreiros, o uso de cães de faro surge como um avanço em relação às funções de violência direta: “É uma evolução né, do nosso trabalho todo aqui. O cão não serve pra morder só, pra latir, fazer cara feia. Serve pra isso, fazem muito bem, mas ele pode fazer muito mais. Olha o que um cão de detecção de droga, o tanto de droga que ele tira das ruas. Um cão de detecção de explosivos, quantas vidas que ele salva. Então é uma evolução nossa do uso do cão. Aprimoramos sempre” (Cachorreiro 7).
“Quando eu uso o cão pra vistoriar um ônibus, pra passar numa fila de passageiros, eu não demoro nem um minuto. É pá pum. E nisso o pessoal todo vidrado no cão, a maioria achando interessante aquilo tudo. Se fosse sem ele, aí você pensa, abordar um por um, passar o pente fino, que o cidadão ele sempre vê como um baculejo né. Pegou nele é baculejo. Aí tem aquele desgaste, aquele desconforto. Mas com o cão não, você passa em minutos e tudo pronto. Se tiver alguma coisa, ele acha, qualquer tanto que for” (Cachorreiro 10).
“O cão de contenção de distúrbio ele já tá passando o tempo dele, tá ficando obsoleto né. Porque tem outras formas de fazer a contenção do flanco, que a gente diz né. Eu posso usar o gás, posso usar a bomba de gás. Se a coisa aperta, eu tenho a cavalaria né. Então pra que que eu vou soltar um cachorro? Acaba que faz cena pra mídia botar na capa. Então eu uso esses meios mais eficientes. O cão bota medo, ele bota. Mas é isso. Uma hora ou outra a gente não precisa mais dele, então tem que partir pra uma evolução desse trabalho” (Cachorreiro 8).
Os cães de funções de violência comedida são apresentados como ferramentas que permitem aos policiais realizar algumas de suas tarefas com um menor grau de violência. Evitam, muitas vezes, o contato direto dos policiais com os suspeitos. Outras vezes, minimizam esse contato. Segundo os cachorreiros, os cães, permitem uma atividade de policiamento com maior eficiência e menor emprego da força. É por isso que classifico a busca e captura como uma função de violência comedida. Segundo os entrevistados, a busca e captura minimiza o potencial de violência ao evitar situações de confronto e enfrentamento armado, os quais poderiam resultar em mortes para os dois lados.
Os dados coletados sugerem um destaque dos cães de funções de violência comedida em relação aos cães de funções de violência direta. O sugerido deslocamento das principais atividades do canil do BPCães das funções de violência direta para as funções de violência comedida pode ser abordado por diferentes dimensões. Por um lado, possivelmente reflete mudanças nas demandas recebidas pelos canis. Em um contexto político teoricamente pacificado, o controle de manifestações civis carece de contornos mais apropriados à democracia e ao respeito a direitos individuais e civis. Ao mesmo tempo, o enfrentamento ao crime organizado passa a demandar instrumentos de detecção de entorpecentes e explosivos traficados. Com a realização de eventos esportivos de grande porte, aumentou também a demanda por formas de detecção de explosivos.
Uma espécie dividida em raças
Existem centenas de raças pelo mundo reconhecidas por organizações de cinofilia, e outras centenas ainda não reconhecidas. Essas raças foram agrupadas historicamente nos moldes da zoologia moderna, a partir de categorias utilitárias: “… o Dr. John Caius, em seu livro Of english dogs , divide os cães em três categorias: um tipo “generoso”, usado na caça ou por damas elegantes; um tipo “rústico”, empregado em tarefas necessárias; e um tipo “degenerado”, vil, que servia para animal de cozinha ou a outros propósitos subalternos”. O cão de caça era então subdividido conforme se sobressaísse no cheirar ou no espreitar, na velocidade ou na sutileza; e conforme fosse melhor contra bichos ou aves e, no caso destas, se contra aves aquáticas ou terrestres. O tipo rústico era subdividido em cães pastores, cães de guarda etc., sendo estes posteriormente subdivididos por latirem ou morderem, ou, se fizessem ambas as coisas, por ladrarem antes de morder ou por morderem antes de ladrar” (Thomas, 2010, p. 77).
A centralidade da raça para o mundo dos cães é percebida pelo grau de institucionalização que a atinge. Por todo o mundo os chamados kennel clubs são criados como órgão de regulamentação e certificação dos cães de raça pura, os cães com pedigree. São instituições que normatizam regionalmente os criadores desses animais, que entendem sua atividade enquanto uma forma de arte e de ciência (Oliveira, 2006). O pedigree separa os cães em dois tipos: os que o possuem são considerados de raça pura, enquanto os que não o possuem são considerados, impuros, mestiços, dentre os quais encontramos os famigerados vira-latas, hoje denominados como sem raça definida (srd).
A Sociedade Brasileira de Cinofilia (Sobraci), uma das instituições reguladoras de pedigree no Brasil, apresenta, em seu site, 220 raças, divididas em seis grupos: Cães pastores, Cães de trabalho e utilidade, Cães Terrier, Cães de caça, Cães de companhia e, por fim, Raças em processo de reconhecimento.
No grupo dos cães pastores estão elencadas trinta raças. Nele estão o Pastor Alemão, o Pastor alemão de pelo longo e o Pastor Belga de Malinois, raças frequentemente utilizadas por polícias e bombeiros, além do Pastor Holandês e do Pastor Belga Tervueren, também utilizados, mas em menor quantidade. No grupo dos Cães de trabalho e utilidade estão elencadas 31 raças, dentre as quais estão o Dobermann e o Rottweiler, que já foram utilizadas em larga escala pela atividade policial com cães, e que ainda persistem nos canis, mas em menor número. No grupo dos Cães Terrier estão listadas 33 raças.
Já no site da Confederação Brasileira de Cinofilia (cbkc), as raças estão divididas em um número maior de grupos, no total de onze.
O primeiro grupo é intitulado “Pastores e Boiadeiros, exceto os suíços”, e contém 35 raças. Nele estão o Pastor Alemão e o Pastor Belga de Malinois. No segundo grupo, intitulado “Pinscher, Shnauzer, Molossos e Boiadeiros Suíços”, estão 54 raças, presentes o Rottweiler e o Dobermann. O terceiro grupo, “Terriers”, possui 31 raças, enquanto o quarto grupo, “Dachshounds”, possui 12 raças. O quinto grupo, dos “Spitz e Tipo Primitivo”, contém 47 raças. O sexto grupo, “Sabujos e Rastreadores”, é composto por 15 raças, dentre as quais está o Beagle. O sétimo grupo é intitulado “Cães de aponte” e possui 23 raças. Já o oitavo grupo, “Retrievers, Levantadores e de Água”, engloba 15 raças, por exemplo o Labrador Retriever e o Golden Retriever. O nono grupo, dos “Cães de Companhia”, possui 32 raças, enquanto o décimo grupo, chamado “Galgos e lebreiros”, possui dez. Por último, no grupo das raças “Não Reconhecidas pela fci ” estão listadas onze raças, dentre elas, o Dogue Brasileiro e o Ovelheiro Gaúcho, raças brasileiras.
Uma abordagem epistemológica do conceito de raça na zoologia aponta que sua definição está mais relacionada com a cultura do que com fatores biológicos, já que, biologicamente, raças não existem, mas apenas apontam diferentes padrões fenotípicos de uma mesma espécie (Rodero e Herrera, 2000). É a necessidade cultural de classificar estes diferentes padrões de uma mesma espécie que gera, então, o conceito de raça. São três os processos que estabelecem a formação de raças: a domesticação da espécie, a intervenção técnico-científica humana e a gestão e reconhecimento das raças (Rodero e Herrera, 2000).
Em seus trabalhos de campo, diferentes estudiosos do tema se depararam com essa categoria, e com a importância de sua compreensão para subsequente compreensão da realidade social estudada.
Mudanças nas raças utilizadas para atividades policiais
O discurso dos entrevistados aponta para uma predominância de três raças durante os primeiros anos de existência do canil: o Rotweiller, o Dobermann e o Pastor Alemão, sendo esse último, talvez, aquele que tenha maior presença nas representações da sociedade sobre cães policiais. Podemos relembrar aqui as personagens caninas que fizeram sucesso, Rim-Tin-Tin, nas primeiras décadas do século xx, e Jerry Lee, cão detector de entorpecentes do filme K9 - Um policial bom pra cachorro, de 1989. Esses personagens possuem lugar de destaque na cultura pop e, possivelmente, são responsáveis por parte significativa da posição de celebridade (Bauman, 2007) atingida pelos cães policiais na sociedade atual.
Fato é que, quando o trabalho com cães ainda era considerado incipiente, eram essas as raças que predominavam: “Em 2011 o canil virou batalhão, teve a sua independência, mas isso daí foi apenas, assim um ato administrativo, porque o canil sempre teve um trabalho diferenciado das outras companhias. Não tinha propriamente dito uma identidade como a gente falava, uma identidade própria. A gente seguia o patamo, apoiava o patamo, apoiava o choque, principalmente na época nesse período anterior a 2010, pra baixo aí, a gente usava muito cão de policiamento e cão de contenção em linha de choque, de distúrbio civil, era o que mais se usava, tanto que a especialidade que mais tinha era isso, era cão de policiamento e linha de choque. Cães de faro eram bem poucos, e a gente tinha também um pouco de cão de busca e captura” (Cachorreiro 14).
Pela própria finalidade de seu uso, a característica que os cachorreiros mais salientaram foi o efeito psicológico desses animais nos indivíduos. São cães que impõem medo, que passam uma imagem de agressividade, sendo objeto das representações sociais sobre as diferentes raças: “É o cão que bota medo mesmo. Se tem ele na linha de frente, quem é que encara? Porque assim, aquela turba, ela pode tá enfurecida mesmo. É pedra, pedaço de pau, galho, tudo em cima da gente. Mas se tem uma linha de Rotweiller, de Dobermann, ninguém encara. Você vai pra cima de um cachorro de cinquenta, às vezes sessenta quilos? Você não vai. É puro músculo aquilo ali” (Cachorreiro 14).
“Eu posso te falar assim, da minha experiência né, que aqui cada um tem a sua, tem gente que nunca pegou num desses, chegaram agora e tal, não pegaram uma máquina que é um Rotweiller na sua mão. Eu gosto. Eu sempre tive em casa e tal. E no meio da criançada, de visita. Mas assim, é excelente cão de trabalho. Ele bota o terror. Você vê aquele monstro ali, grande, grande mesmo, rosnando, babando, é uma coisa de louco. É a maior segurança que o policial pode ter” (Cachorreiro 2).
Os motivos apresentados para o significativo abandono do uso dessas raças foram variados. Em relação ao Pastor alemão, os policiais quase sempre apontavam a questão da displasia coxofemoral como o principal motivo para a redução de seu uso. Cabe destacar que, pouco mais que uma década atrás, os Pastores Alemães eram representados como alguns dos mais aptos para as atividades policiais (Sanders, 2006b, 2007). Em relação ao Rotweiller, característica antes valorizada positivamente, seu tamanho, foi apresentada como empecilho ao trabalho na medida em que limita seu tempo de atuação, bem como implica em uma baixa resistência às atividades sob sol forte: “A mordedura do Rotweiller é muito forte né. Só que assim, o uso do Rotweiller era muito restrito, era pra controle de distúrbio civil, pra policiamento e controle de distúrbio civil. É um cão pesado, molossóide, a cintura dele, certo, então ele é um cão que, teoricamente, tem uma resistência menor que um cão pastor Alemão, Malinois, Belga. Então a característica do próprio Rotweiller ele é mais pesado, então ele cansaria mais. E tinha aquela coisa do embate, então você olha um Rotweiller de quarenta quilos e você tenta fazer uma agressão, poxa, um Rotweiller de quarenta quilos, então a estrutura dele é bem mais assustadora, latindo e rosnando, do que um Malinois de trinta, trinta e poucos quilos, que é o que um Malinois pesa. A gente tem pouco, tem um Malinois aqui que pesa mais, que é grande. A maior parte do Malinois o peso médio dele, da fêmea, é de vinte e seis quilos, e do macho uns trinta e três, trinta e quatro quilos” (Cachorreiro 4).
Para o Dobermann, o motivo que esteve mais presente no discurso dos entrevistados foi o de que são raças representadas como menos sociáveis, o que as tornava menos aptas à forma como o trabalho do canil era realizado atualmente. “O melhor que eu conduzi, e isso tem tempo viu, era um Dobermann. Eu te falo, essa raça é incrível ela, o poder que ela tem. São cães muito inteligentes, que amam trabalhar. Mas ele não é sociável igual esses de hoje que tem aqui. Ele é pra morder, pra botar peba pra correr” (Cachorreiro 10).
A representação de menor sociabilidade dessas raças é justificada pelos cachorreiros por dois fatores. O primeiro seria uma tendência comportamental típica dessas raças, que as tornariam mais propensas a reações violentas, tanto para com civis, abordados ou não, quanto para com seus próprios condutores. O segundo, preponderante nas justificativas, seria o suposto medo que a população em geral teria dessas raças relacionado com a representação dessa raça enquanto perigosa.
Os policiais que trabalham com rondas e com o controle de distúrbios civis representam positivamente os cães que geram medo nas pessoas. Na medida em que essas atividades perdem espaço para outras, como veremos à frente, essa representação positiva do cão agressivo perde espaço para uma representação negativa. Emerge a representação dos cães violentos como incompatíveis com o trabalho policial, implicando também em novas representações sobre cães adequados e compatíveis para essa atividade.
Importante destacar que a representação de raças perigosas traz consigo uma noção generalizante da categoria de raça. Para considerar uma raça como perigosa (Bevilaqua, 2014) é preciso aceitar que a categoria raça serve como determinante comportamental para todos os indivíduos dela integrantes, o que se sabe, não é uma verdade científica comprovada, mas uma representação social. Essas representações orientam condutas em relação a cães diferentes com os quais os indivíduos se encontram, como também em relação à aquisição deste ou daquele animal: “A existência de raças caninas como conjuntos “reais”, definíveis de forma não-problemática, é outra premissa de todos os projetos. As referências a raças remetem ocasionalmente a atributos físicos dos animais, mas, de modo muito mais frequente, a disposições comportamentais compreendidas como parte da própria identificação da raça e, portanto, comuns a todos os indivíduos a ela pertencentes. O caso mais evidente, mencionado por dez das proposições, é o da raça pit bull, cujos exemplares são descritos, com pequenas variações, como animais ‘naturalmente’ ou ‘espontaneamente agressivos’ e, por essa razão, ‘extremamente perigosos’” (pl 159, pl 331, pl 136) (Bevilaqua, 2014, p. 207).
A análise sociológica da agressividade canina expõe mais uma ambiguidade presente no trabalho dos cachorreiros. Para algumas de suas funções, a agressividade é desejada e valorizada positivamente. São as atividades em que o comportamento valorizado no cão é a mordida, as quais Sanders (2006a; 2007) denomina como bite works. Os cães de função de violência declarada devem ser instrumento de violência quando requisitados, seja como potência (gerando medo), seja como ato (mordendo). Ao mesmo tempo, não podem ser agressivos com todos. Isso significa que eles precisam ter alguma medida de agressividade em seu comportamento, em sua personalidade. No âmbito jurídico do controle dos riscos oferecidos à sociedade pelos cães perigosos, Ciméa Barbato Bevilaqua (2014) aponta que nem todas as formas de agressividade canina são problemáticas aos olhos da justiça.
De acordo com os entrevistados, esses cães, cujas imagens geram medo a partir de representações de violência sobre sua raça, passaram por um processo de obsolescência e caíram em desuso. Para isso, apresentam diversos motivos. Um desses é relacionado diretamente à sua agressividade. Seriam cães considerados inaptos ao contato social por não serem considerados sociáveis. «A gente tinha cachorros ótimos, com o drive lá em cima, porém o cachorro não era sociável. Aí como é que você vai levar esse cachorro pra uma busca, onde vai ter uma criança, um adulto, um idoso, que acha que, por num passado próximo ter tido contato com os cães nossos, achar que aquele cão é dócil também» (Cachorreiro 3).
«Eu não posso levar um Pastor Alemão desses, que não é sociável igual os outros, pra uma missão em local público, ali na rodoviária estadual, por exemplo. Teve o caso do Gama lá, você já deve ter ouvido, que o cão mordeu o cidadão. A gente sabe que não foi assim também, que o cidadão estava alcoolizado. Mas o cão mordeu, e aí você imagina o boró» (Cachorreiro 11).
Pelas raças citadas no artigo de Bevilaqua (2014), é provável que o Rottweiler e o Dobermann sejam considerados perigosos. São essas raças que primeiro caíram em desuso. Sua queda é seguida da ascensão de outra raça, o Pastor Belga de Malinois: «Os três cães, as três raças principais de cães que sempre trabalharam aqui seria o Rotweiller, o Dobermann e o Pastor alemão. Mas com o passar do tempo hoje aqui nós já não temos nem Rotweiller nem Dobermann. Nós temos Pastor alemão. E o Labrador também que sempre existiu, que era pra cães de drogas. Mas hoje nós evoluímos igual, igualmente acompanhando a evolução das polícias do mundo inteiro, a gente adquiriu esses cães hoje da raça Malinois né, o Belga de Malinois, que é uma tendência mundial, que é um excelente cão. É um cão que, digamos assim, dá menos problema de saúde que o Pastor Alemão, e tem o mesmo vigor físico, ou até melhor, porque o Pastor Alemão ele tem problema de displasia» (Cachorreiro 8).
Com o surgimento de novas formas de uso do cão na atividade policial, especificamente as atividades de detecção e de busca e captura, uma série de mudanças se desenrolam no campo do trabalho dos cachorreiros.
«Quando eu cheguei o pessoal ainda usava o cão mais pra distúrbio civil. Então era o que? Papuda vivia em rebelião... Ainda tinha um certo resquício do regime militar, mas, certo, que eu não peguei. Mas o cão era o quê? Pra ficar do lado do policial e morder. O cão só tinha que, entre aspas, o cão, chamava o cão pra morder, aquele que se aproximasse, morde. Hoje não, você tem que fazer com que o cão busque aquilo que você precisa encontrar. Então é uma droga? Ele tem que buscar aquela droga. É uma pessoa que fugiu, é um bandido? Então tem que buscar aquela pessoa. É papel moeda, como eles usam lá fora? Aqui no Brasil a gente ainda não usa né. Então onde é que tá? Encontra e indica. Nós não usamos, mas o Ministério da Agricultura tá querendo usar pra pesquisa de produtos orgânicos. Então hoje o pessoal tá querendo usar o cão pra tudo, pra detecção de doenças né, em pessoas, então já tá usando o cão pra buscar, buscar aquela substância né» (Cachorreiro 20).
Emergem também novas situações de contato com a população, nas quais nem todos os paisanos são passíveis de receber a agressividade canina, como suspeitos abordados ou manifestantes enfurecidos. Além disso, as demandas recebidas incluem atividades em espaços antes não frequentados pelos cães policiais, como embaixadas, aeroportos ou rodoviárias, nos quais o uso da força, tanto como potência quanto como ato, não pode, segundo os policiais, ocorrer da mesma maneira que em uma abordagem em uma região marginalizada, como a Ceilândia, por exemplo: «Então é um papel difícil para a polícia militar, mas nós estamos buscando, e esse trabalho com o cão nos auxilia a manter uma proximidade junto com a população. Até por exemplo na vistoria, na abordagem de ônibus com cães, ou de locais, as pessoas sentem confiança, não se sentem ameaçadas com o cão que tá ali pra fazer a parte principalmente de detecção. Já é diferente um pouco de quando você emprega o cão com atividade de controle de distúrbio, ou policiamento, que você sabe que é um cão que já tá com o perfil de fazer um confronto» (Cachorreiro 11).
O que muda primeiro, então, são as formas e situações de uso dos cães. É a partir delas que surgem as incompatibilidades de determinadas raças para a atividade policial. Os entrevistados justificam a substituição das raças antes utilizadas pelas de Pastor Belga de Malinois, basicamente, em termos de eficiência: «Antes nós tínhamos aqui Pastor Alemão, Dobermann, Rotweiller e Labrador, essas raças predominavam aqui. Nós já tivemos Cocker Spaniel, pequenininho, Spring Spaniel, é, Stanfordshire, também trabalhamos com Stanfordshire. Só que Malinois ele tomou de conta da polícia no mundo. Então não é só uma exclusividade brasileira, no mundo inteiro se adotou o Malinois. em termos de trabalho, o Malinois ele é excepcional. É um cão que não cansa, é um cão que gosta de trabalho, tem uma gana pelo trabalho muito forte né. Então essa é uma vantagem né, desse cão. De nós termos abolido os outros cães. Não que os outros não funcionasse, não. É porque a gente conseguiu encontrar um cão ideal» (Cachorreiro 12).
«Dobermann tá praticamente extinto. Você não houve falar: vê um Dobermann aí. São poucos. Aqui no canil temos um policial que cria Dobermann. É o único que tem Dobermann aqui, que eu conheço em Brasília que ainda tem, que gosta. Mas ele cuida desde . Quando eu entrei no canil ele já tava, ele já tinha Dobermann. Então assim, é um cara que já há muito tempo cuida desse tipo de raça. E essa raça sumiu, você não vê mais por aí. Aí os outros cães foram engolidos pelo Malinois. Malinois ele veio assim mesmo como um tsunami né. Tanto pra faro de droga, que precisa de um cão mais controlado, quanto pra busca e captura, que tem que chegar lá no objetivo, um cão pra realmente morder» (Cachorreiro 2).
O Pastor Belga de Malinois é definido como um cão versátil por ser apto para realizar todas as funções desempenhadas pelo canil. São cães que podem ser treinados para latir e morder, como também para farejar. Além disso, podem realizar mais de uma função e se tornarem os cães de dupla aptidão, permitindo a substituição de dois cães que possuam apenas uma aptidão, adequando-se ao contexto de escassez de recursos humanos, caninos e materiais: «O Malinois foi considerado, assim, a Ferrari dos... da vida canina pra atividade policial, porque ele é multiuso. Ele serve tanto pra faro, tanto pra demonstração, tanto, entendeu, então pela característica dele, da personalidade dele, o modelo, o padrão dele de personalidade, você pode fazer várias coisas com uma raça só. Porque você vê, Rottweiler pra policiamento, Golden pra demonstração, Labrador pra faro de narcótico, outro pra faro de explosivo. Não, peraí, dá pra fazer tudo com o que, Malinois. Então é mais fácil... Ração, come bem menos do que um Rotweiller. Menos pesado, então significa que a medicação usada é menos também. A gente pensa, é pensado nisso. O custo-benefício é bem maior do que ter várias raças» (Cachorreiro 14).
O discurso sobre a eficiência do Pastor Belga de Malinois encobre uma realidade de déficit de recursos para a atividade policial, tanto no que tange suas estruturas físicas, quanto na prestação de assistência e cuidados básicos aos cães. Ao destacar os pontos em que o Pastor Belga Malinois superou outras raças, principalmente nas tarefas de detecção, fica no campo do não-dito a incapacidade da instituição policial em responder quantitativamente e qualitativamente às suas demandas profissionais.
Além disso, a representação da guerra urbana diária (Suassuna, 2017) traz consigo implicações objetivas, como a necessidade de superar as estratégias utilizadas no mundo do crime. Para os policiais, além de não estarem sob as amarras da lei, os criminosos possuem mais recursos disponíveis, colocando os policiais sempre em desvantagem. Nesse sentido, a representação do Malinois enquanto um cão mais eficiente dialoga com a representação de atuação em contexto de guerra, ao mesmo tempo e que os cães dessa raça não carregam o estigma da raça perigosa.
A primeira impressão é de que a mudança das raças predominantes da atividade policial com cães se deu por questões meramente práticas, de eficiência, de racionalização da relação custo-benefício, assim como de adaptabilidade prática às novas situações de trabalho. Porém, reduzir essa mudança à sua dimensão prática é abdicar de seu conteúdo simbólico: “… na realidade, a simbolização e o uso dos cães como bens materiais são estrategicamente ‘comunicadores, ou seja, mediadores simbólicos e sociais e não apenas utilidades’…” (Oliveira, 2006, p. 11).
Retomando a ideia de Leslie Irvine (2012) de que as características atribuídas aos cães são também remetidas ao seu dono, direta ou indiretamente, a mudança das raças utilizadas pela polícia pode ter uma dimensão simbólica desatrelada de sua dimensão prática. De certa forma, todas as três raças que perderam espaço nos canis policiais para o Pastor Belga de Malinois, também perderam espaço na sociedade em geral para outras raças.
Keith Thomas (2010) destaca como mudanças na sociedade, principalmente nos padrões de comportamentos e nas atividades praticadas pelos indivíduos, refletiram na vida dos cães, antes predominantemente companheiros de caça e esportes dos homens, e de reclusão doméstica das mulheres. Nesse processo, algumas raças de grande porte passaram a integrar o convívio familiar. Nos lares, encontram também a função de guarda, na qual Rotweillers, Dobermanns e Pastores Alemães foram largamente utilizados no Brasil até pouco tempo. Segundo María Helena Costa Lima (2016): «Até o final do século xx, as raças valorizadas no Brasil eram aquelas voltadas para guarda, como dobermann, Rotweiller, pastor alemão e fila brasileiro. Tanto no ambiente rural quanto no urbano, o padrão era manter os animais nas áreas externas da casa e alimentá-los com restos de refeições» (p. 58).
Sobre a existência dos cães de guarda, enquanto diferentes dos cães de companhia também criados nas residências familiares, diz a autora: «É possível perceber uma distinção entre animais “propriedade da família” (cães de guarda e alerta e gatos para caçar ratos), mantidos exclusivamente ou preferencialmente nas áreas externas, e os animais que se tornavam “membros da família”, quase sempre cães de raças de pequeno porte, que tinham acesso livre aos espaços íntimos das casas civilizadas» (Lima, 2016, p. 59).
Lima (2016) apresenta dados relativos às raças mais criadas no Brasil em quatro momentos. Em 1978 as quatro raças mais criadas no Brasil, com seus respectivos quantitativos populacionais registrados, eram o Dobermann (1342), o Cocker Spaniel (1325), o Boxer (1151) e o Fila Brasileiro (1029). Já em 1988, essa lista era composta pelo Poodle (7402), Pastor Alemão (6072), Fila Brasileiro (4787) e Dobermann (4310). Em 1998 a lista passa a ser encabeçada pelos Rotweillers (21400), seguidos pelo Poodle (12700), Yorkshire Terrier (7092) e Cocker Spaniel Inglês (5560). Por fim, a lista de 2009 tem como primeiro colocado o Shi-tzu (14500), seguido do Yorkshire Terrier, do Maltês (6473) em terceiro lugar e, em quarto, o Golden Retriever (4683).
Estes dados permitem análises sociológicas sobre a relação entre humanos e cães, em especial, no que diz respeito à sua função. Nos anos de 1978 e 1988, três das quatro raças mais criadas são de cães de grande porte, tradicionalmente utilizados como cães de guarda. Apenas uma das quatro raças mais criadas, em cada um desses anos, era de uma raça tradicionalmente utilizada enquanto animal de companhia e de pequeno porte. Esses números sugerem que a principal posição dos cães nos domicílios brasileiros era de cães de guarda.
Já nos anos de 1998 e 2009, as raças de pequeno porte invertem o jogo e assumem três das quatro posições. Em 1998, a raça de grande porte que permaneceu entre as mais populosas foi a dos Rotweillers. Porém, em 2009, são os Golden Retrievers os cães de grande porte que figuram na lista. Apesar de tamanho e pesos semelhantes, Golden Retrievers e Rottweilers possuem diferenças na forma como são utilizados e representados. Enquanto os últimos figuram entre as raças perigosas, os primeiros são tidos como animais amigáveis, frequentemente presentes nos lares enquanto animais de companhia. Possivelmente estão entre as raças que mais aparecem em comerciais de televisão como componente canino de famílias tradicionais.
Sobre a redução do uso de cães de guarda, é possível supor que, junto com as questões já citadas acima, estejam também relacionadas questões do campo da segurança pública. Da virada do século até os dias atuais, o campo da segurança privada passou por diversas mudanças em suas estratégias e nos equipamentos colocados à disposição dos consumidores. Os sistemas de câmeras, sensores de movimentos e alarmes passam a ser cada vez mais presentes nas residências das classes médias e altas. Serviços de vigilância de bairros e ruas com possibilidade de monitoramento à distância também passam a figurar enquanto produtos disponíveis para proteção em resposta ao medo da violência urbana.
Enquanto tecnologia de segurança, os cães de guarda se tornam cada vez mais obsoletos e sua função passa a ser cumprida por outras tecnologias. Longe de acabar, o espaço para os cães de guarda diminui. À revolução digital, soma-se a verticalização dos espaços urbanos. Em apartamentos, cães de guarda perdem sua finalidade. Também nos condomínios horizontais fechados, a necessidade desses guardiões caninos é menor do que fora deles.
Nesse sentido, é possível supor que os cães dessas raças perderam capital social e simbólico, perdendo também espaço na realidade social. Por exemplo, o Rottweiler já foi representado como um cão de homem, que trazia consigo símbolos de virilidade, e fazia com que fosse preferido por lutadores de artes marciais, praticantes de musculação e fisiculturismo, dentre outros grupos nos quais é presente uma exaltação da masculinidade. Atualmente, quando observamos as raças mais buscadas por esses mesmos grupos, encontramos outras que não os Rottweilers: American Staffordshire, American Bully e Pit Bull são os novos portadores dos signos da masculinidade
Da mesma maneira, a perda desse capital simbólico ocorre no campo do policiamento com cães. Os símbolos emanados por cães dessas raças perdem seu valor para a atividade policial que, com suas novas formas de atuar com cães, precisam de novos elementos simbólicos. O cão que impunha medo, antes valorizado exatamente por isso, agora é desvalorizado. Impor medo e morder não são mais consideradas as principais funções do cão policial, da mesma maneira que o controle de distúrbios civis também não figura mais entre as principais atividades dos cachorreiros , embora ainda integrem seu rol de atuação.
Considerações finais
A mudança das raças utilizadas pelos cachorreiros não ocorre enquanto um processo exclusivamente técnico e isolado dentro das corporações, mas em diálogo com a realidade social na qual se inserem essas corporações e seu trabalho e, nesse sentido, leva em consideração as representações sobre si que percebem na sociedade. Ocorre também em diálogo com mudanças nas estruturas sociais, na medida em que o surgimento de novas demandas coloca polícia e sociedade em formas inéditas de interação. Clifton Bryant (1979) apontava como o componente zoológico do trabalho poderia afetar - e aqui o termo derivado de afeto é o mais cabível - a forma como o humano sente, vivencia e realiza seu trabalho.
O discurso da obsolescência de algumas raças e da prevalência de outras por questões de eficiência prática traz, no campo do não-dito, a própria obsolescência de formas de policiamento centradas na repressão e no uso da força, em oposição a uma atuação de contornos supostamente mais democráticos.
A inclusão de treinamentos de sociabilidade na rotina dos cães, como também a inclusão do controle da agressividade entre os requisitos básicos dos cães policiais, reflete demandas oriundas das novas formas de interação entre polícia-sociedade. Se antes as unidades especializadas saíam de seus quartéis quase que apenas para reprimir movimentos sociais, atualmente saem, quase diariamente, para outros tipos de operações em locais públicos, como a fiscalização de ônibus em rodoviárias, nas quais ocorrem diversas interações entre cachorreiros, cães e população em geral.
Num contexto de excesso de aumento e diversificação de demandas e de escassez de recursos caninos e humanos, a versatilidade surge como categorial relevante na avaliação de aptidão do cão ao trabalho, sugerindo uma possível intensificação da exploração do trabalho animal, o que merece ser analisado separadamente. Nesse ponto, o Pastor Belga de Malinois é apontado como um cão mais versátil que os outros, permitindo que sejam treinados para dupla aptidão: “Então o que que a gente, hoje, busca no batalhão? Raças que tem, no mínimo, dupla aptidão. Principalmente, hoje, noventa por cento do nosso plantel canino tá entre o Pastor Alemão e o Pastor Belga de Malinois. Porque são raças mais versáteis, são raças que podem ser empregadas nesse trabalho de dupla aptidão. Então, o que seria essa dupla aptidão? Eu posso fazer tanto o faro de drogas, ou explosivos, e fazer mais a parte de captura, ou de proteção. Diferentemente de outras raças que nós trabalhávamos. Então já trabalhamos com Rottweiler, já trabalhamos com Labrador. Mas são raças que vai ter uma destinação específica. O Labrador eu vou trabalhar a parte de faro, mas eu não tenho como fazer um cão de proteção. O Rottweiler eu já vou fazer um cão de proteção, mas, pra fazer a parte de faro já fica um pouco mais restrito. Então hoje nós trabalhamos basicamente Pastor Alemão e Pastor Belga de Malinois. Mas nada impede que nós trabalhemos com outras raças” (Cachorreiro 18).
Entendendo a polícia como um dispositivo de distribuição de coerção (Bittner, 2003), as mudanças nas raças de cães utilizadas pela polícia, e nas funções por eles exercidas, possivelmente fazem parte da seleção dos “meios e modos que expressam tudo que ela passa a ser capaz de fazer” (Muniz e Proença Júnior, 2013): “A decisão do governo de autorizar determinados armamentos e de alguns de seus modos de uso corresponde à sua proposta do que julga adequado ter como capacidade coercitiva da polícia; expressa um projeto de força para a polícia como instrumento da política de Direitos Humanos e segurança; faz estabelecer a polícia que melhor instrumentaliza de força a administração estatal para permitir uma distribuição consentida e seletiva de coercitividades que produza escassez de violências; concebe tal polícia em todos os detalhes relevantes, circunscrevendo os meios e modos que expressam tudo o que ela passa a ser capaz de fazer” (p. 121).
As mudanças no trabalho dos cachorreiros analisadas nesta pesquisa refletem mudanças na legitimidade das formas de ação policial - e, principalmente, de violência: “As expectativas de restrição do uso da força policial aparecem e ganham força em correlação com uma ordem política de monopólio estatal da força coercitiva: a violência difusa, privatizada, torna-se cada vez menos legítima. Dentre as expectativas que constituem a confiança na polícia em contextos democráticos, a noção de que os policiais devem se utilizar da força de forma restrita, “mínima”, é uma das propriedades mais evidentes das interações observadas neste estudo. Nessas expectativas de restrição do uso da força policial, pode-se perceber o resultado do empoderamento do cidadão face à organização estatal e seus representantes, podendo a pacificação ser tida como um dos processos sociais descentralizadores da modernidade” (Suassuna, 2013, p. 42)
Se os dados coletados não permitem afirmar que as mudanças de raças e de formas de uso dos cães resultam diretamente em uma tendência à pacificação das atividades policiais, sua análise sociológica permite apontar para o surgimento de novas formas de interação polícia-sociedade, nas quais a violência mediada pelo cão é menos intensa, ou assim é representada pelos que participam da interação.
É provável que as mudanças nas raças mais criadas nos domicílios também sejam reflexo de mudanças nas representações sobre formas de violência como, no caso, a violência perpetrada por cães policiais. Não que essa nova sensibilidade esteja atrelada a uma representação de que a polícia seja menos violenta, afinal a violência policial tem produzido números cada vez mais altos, mas que a violência produzida por animais passa a ter uma conotação cada vez mais negativa e indesejada, um risco a ser eliminado, por exemplo, através do direito (Bevilaqua, 2014).
No caso dos cães policiais parece haver uma ambiguidade: enquanto a atividade policial em geral tem se tornado mais violenta, o policiamento com cães assume contextos menos violentos, provavelmente em função da diversificação das funções que o policiamento com cão tem tomado O que, também como consequência não prevista, poderia, em última instância, contribuir para alterar, com sinal positivo, a relação polícia-sociedade, senão no geral, ao menos no tocante ao policiamento com cães.
É provável também que a preferência por algumas raças, menores e representadas como amigáveis e afetivas, seja reflexo do crescente individualismo e da volatilidade das relações afetivas típicos das sociedades modernas líquidas (Bauman, 2001; 2007), o qual leva as pessoas a buscarem nos pets companhias que atendam às suas demandas individuais, afetivas, íntimas e sociais, como a distinção ou o pertencimento. Nesse caminho, as mudanças das raças preferidas estão atreladas também ao contexto de crise das identidades (Dubar, 2009), em particular das identidades policiais (Muniz, 2001) nas quais o cão assume as posições de produtor e resultado das identidades para si e pra outrem (Dubar, 2009).
Cabe destacar que a opção metodológica pela TRS não esgota as possibilidades de análise sociológica do objeto em questão, o trabalho animal e com animais, muito pelo contrário. Além disso, a opção por uma base bibliográfica que não abrange a maior parte do debate sobre relações interespécies na antropologia não deve ser tomada como desdém, mas como reflexo do esforço em avançar no desenvolvimento de uma abordagem tipicamente sociológica do objeto.
A análise sociológica das representações sociais dos cachorreiros sobre seu trabalho com animais e sobre o trabalho dos seus cães permitiu avançar na compreensão sociológica da atividade policial, como também da relação interespécie presente no objeto de estudos da pesquisa. As discussões apresentadas nesse artigo corroboram com a afirmativa de Flynn sobre o desenvolvimento daquilo que chamo de uma sociologia das relações interespécie: «The time has come for sociologists to acknowledge the significant and extensive role that nonhuman animals play in the lives of humans. Beyond that, it is important that human treatment of animals be investigated not just for what it can teach us about human interaction, but because animals are moral beings whose lives have intrinsic worth, apart from our relationship to them (Flynn, 2001, p. 83)».