Introdução
As duas narrativas apresentadas aqui são de Yukî-masí/gente da floresta e de Ba’asehé-Boo/Ser-da-fartura, o dono de maniva, o dono da alimentação para a humanidade. As manivas são masá/gentes e têm um vínculo afetivo sentimental para dar uma boa colheita. Não se trata, apenas, de capinar a roça: vai além da limpeza, sim, uma sinergia vegetal com o dono da roça. Ba’asehé-Boo contava com outros colaboradores: a família de Yoasõ/Calango, a família Booga/pássaro bem esbranquiçado e listrado, família de Taâ-miri yĩígi/curió e família de Wekó/papagaio, que cuidavam da limpeza da roça. Havia, então, uma relação social entre maniva e o dono da roça. No contexto da narrativa, eram masâ/pessoas que cuidavam das roças de Ba’asehé-Boo. Por decisão pessoal, ele não quis que se tornassem masâ/pessoas e, hoje, os conhecemos como pássaros e calangos. Para Ba’asehé estas pessoas eram seus colaboradores, e cada um deles era marcador do trabalho da roça e da qualidade de mandioca. A Dona da roça assemelha-se com uma mulher calango, mulher papagaio, como uma mulher curió. A categoria de especialista/pajés aciona os papeis sociais na vida de uma criança, para formação e a transformação de gênero tukano. Isso traz outro sentido, o trabalho vegetal para ter o ãhúga/beiju, inspirado no termo usado por Gilton Santos (2016): pão de índio.
A pesquisa foi realizada no Sítio Itaiaçu, médio rio Tiquié, afluente do rio Waupés no território do povo Miriti tapuia, no município de São Gabriel da Cachoeira, Estado do Amazonas, Brasil. A roda de conversa foi uma abordagem metodológica de comum acordo com o costume local, com as perguntas semiestruturadas na língua tukano. A principal interlocutora é Dona Francisca, que nasceu, viveu e que teve experiências e convivências na Colômbia; por isso, se referia muito às coisas do médio no Alto rio Tiquié, usando o mapa mental. Estas narrativas são conhecimentos do Alto rio Tiquié, do povo Tuyuka da Colômbia como saberes localizados de fronteiras. Dona Francisca na sua infância ouviu as histórias antigas de seu avô Francisco do povo Tuyuka, kumû/pajé e bayá/mestre de ritual, uma neta como uma extensão do conhecimento de seu avô.
Foi um estudo aprofundado com os interlocutores sobre a origem das doenças e males sociais. Uma pesquisa ampla e complexa, utilizando os saberes localizados do Alto rio Tiquié e guiada por perguntas tais como: quando velhos adoeciam, o que comiam para uma boa recuperação da saúde? Existia alguma narrativa específica que focasse as origens das doenças e males sociais na humanidade? Estas perguntas me levaram a desenvolver este trabalho dentro da literatura do Alto rio Negro. Para Dona Francisca, as narrativas não são simples kití úkũse/narrativas com os conceitos difíceis, amplos e complexos, porque são teorias e práticas do povo Tukano oriental.
As narrativas abordadas e as narrativas de experiências dos interlocutores trazem uma contribuição importante, como formação e transformação para ser uma boa pessoa, gênero, alimentação e kã’rokonismo/xamanismo. Esses aspectos surgiram nas rodas de conversas que sublinham as contribuições e, ao mesmo tempo, apontam as questões que serão desenvolvidas em profundidade na tradução equivocada ou equivalência funcional. Isso foi inspirado no trabalho de Eduardo Viveiros de Castro (2018), “a questão de uma equivocação”. As traduções de línguas indígenas para o português traem muito de seus sentidos epistemológicos. As equivalências funcionais ou aproximadas criam uma nova etiologia para o português.
Para Dona Francisca, a narrativa sobre a origem da árvore de turi menciona a criação de Yukî-masí/gente da floresta e é a seguinte: conta-se que Yukî-masí saiu da mata e entrou na Casa de Ritual dos Bayaroá/mestres de rituais para tomar caxiri/bebida forte de mandioca. Ele bebeu, dançou e até teve troca de olhares com a filha de Kumû/pajé. Ele era um jovem muito bonito, com sua pintura facial de carajuru, com sua pintura corporal de jenipapo, colar no pescoço, brinco nas orelhas, cocar na cabeça, e com todos esses elementos ficou muito atraente na festa. A jovem ficou encantada com sua beleza e foi afetada pelo cheiro, pois dançou com o Yukî-masí. Quando vinha amanhecendo, Yukî-masí saiu da festa e foi embora no caminho da roça e ela, a filha de Kumú, o seguiu. No entanto, nunca mais o encontrou. Só encontrava árvores muito bonitas e altas, árvores que apareciam na frente dela e que desapareciam e, assim, ela, em todas as árvores, acabava se esfregando com seu íntimo e, por isso, algumas árvores tem cheiro de ovários.
Ba’asehé-Boo/o dono de maniva, o dono da alimentação para a humanidade. A maniva possui os toletes que são o corpo, os galhos são braços, as ramas são palmas das mãos, os dedos dos pés são mandiocas e seus derivados, que são pés do Avô de Universo. Antes da nova roça, outras roças eram limpas e assim viviam muito felizes por pouco tempo. Porém, chegou um tempo, um novo modo de trabalho da roça, por causa da urina. Por este fato trágico, começaram a surgir outros elementos não comestíveis. A urina é um elemento transformador, pois regou novos elementos e um novo modo de trabalho para ter “o pão de índio” (Santos, Cangussu, Furguim, Watling e Neves, 2021, pp. 4-9). O pão de índio e as massas vegetais de mandiocas são elos entre passado e presente na Amazônia indígena. A mulher tukano do tronco linguístico tukano oriental adota uma sinergia vegetal para ter seu alimento cotidiano.
Para a interlocutora desta pesquisa de doutorado, as árvores são masâ/pessoas ou gentes da floresta que têm uma estrutura social enquanto pessoas humanas. Essa gente da floresta são pessoas perigosas que podem atacar uma criança recém-nascida, uma mãe que esteja de resguardo ao pós-parto e uma jovem que esteja de menarca, que tem de proteger o corpo e a alma, quando for pela primeira vez na roça. O kumû/pajé tem de oferecer a cuia do pó da coca, cigarro, uma cuia de caxirí e um bom assento para fluir uma roda de conversa e, assim, não sentir estranheza, se incomodar. Para um pajé, a mandioca tem de se descontaminar de suas substâncias prejudiciais à saúde, transmutar-se em alimento saudável, no leite e espuma de buiuiu para a formação e transformação, para ser uma boa pessoa tukano.
A narrativa de Yukî Masí/Gente da floresta/Dona Francisca
Este é um recorte da primeira parte da narrativa de Yukî-masí/gente da floresta. Foi ele que deixou a árvore-turi para a arte de tecer os mipiri pi’îseri/aturás/cestas para serem usadas no trabalho da roça, para carregar dikî/manivas, para carregar kií/mandiocas, enfim, para carregar os alimentos da roça. O aturá pequeno serve para carregar as frutas comestíveis da floresta quando for à mata, é para carregar bacaba, patauá, açaí, buriti, ucuquis, vacu, cunuri, ipixuna e ingás, peixes tinguijados; peixes moqueados; manivarás, tanajuras e lagartas comestíveis; para guardar a carne da caça, escama de peixes moqueados e, até, para guardar os wamó/potências pessoais do Kumû/pajé.
Para Dona Francisca (2018), na calada da noite, enquanto os bayaroá/mestres de rituais estavam tocando wẽô pa’ari/flauta-pã, dançando kapiwaya e bebendo caxirí/bebida fermentada da mandioca na Casa Coletiva, o Yukî-masí/gente da floresta saiu da mata e entrou no Basâ Wi’í/na Casa de Ritual para dançar com eles, sendo peêru samiri masí/é um consumidor de caxirí. Ele era um jovem muito bonito e bem branco, ele era Yukî-masí com a pintura facial e brinco nas orelhas, colar dos dentes da onça e cocar na cabeça. Com esses elementos, ficou muito atraente na festa. Então, ele entrou na basâ kaa/na fileira dos dançantes, pois os bayaroá sempre ficam no começo da fila, e ele ficou depois dos três bayaroá de cocar para dançar: Eu também quero dançar com vocês, então, vamos! E ele era uma pessoa muita bonita.
O modo da extração das tiras de turi
Os homens do povo Bará e do povo Tuyuka iam no caminho da floresta em busca da árvore de turi para derrubar, rachar e tirar tiras bem flexíveis. A madeira da árvore de turi é rachada longitudinalmente em pequenas tiras para tecer os aturás. Além disso, tiras grossas e compridas servem para embarrear as paredes da casa, outras tiras menores servem para acender o fogo, as tiras bem finas são para tecer, conforme altura do aturá pretendida pela mulher. Os seus pais bará e meus pais Tuyuka carregavam muitas manivas e mandiocas com aturá de turi. Yukî-masí kiî kũûke mipîri pi’îseri su’âto niîgi/foi gente da floresta que deixou árvore de turi para tecer os aturás. Ele que deixou para os homens usarem suas artes e tecnologias para que suas esposas carregassem os alimentos da roça e frutas comestíveis da floresta.
Yukî-masí adentrava um pouco na mata deixando vários tipos de árvores de turi. Então, os homens no alto rio Tiquié escolhem árvore de turi boa que tem os fragmentos bem flexíveis, mas não são todas que prestam. Quando as tiras são bem flexíveis, servem para tecer. Yukî-masí deixou vários tipos de árvores de turi na floresta.
A madeira da árvore de turi serve para fazer tochas para serem usadas na pescaria, para iluminar a casa. Gente da floresta deixou esta árvore para fazer aturá de turi para carregar os alimentos da roça, frutas da floresta, para carregar lenha e para carregar cascas secas. Foi meu bisavô Tuyuka que disse para Dona Francisca: Ninguém tira tiras de qualquer árvore para tecer o aturá, no entanto, foi Yukî-masí que deixou árvore de turi, uma árvore própria para tecer os aturás de turi (Dona Francisca, 2018). Algumas tiras são bem flexíveis, outras quebram facilmente. Nem todos conhecem essa narrativa. Eu conto, pois ouvi de meus avôs Tuyuka e, por isso, te narro essas histórias antigas para você, assim disse Dona Francisca.
Antropomorfismo de Yukî-masí/Gente da floresta
Yukî-masí era um jovem muito bonito, bem branco e alto, pois estava com sua pintura facial e pintura corporal de jenipapo, brinco nas orelhas, colar dos dentes da onça e cocar na cabeça, e, com esses elementos, ficou muito atraente na festa. Ele era uma pessoa muito bonita. Tiras de turi são bem brancas, outras são avermelhadas por causa do sangue. A primeira camada é casca, a cor da pele; a madeira branca é a cor do corpo e o avermelhado é a cor do sangue.
No assento feminino se encontrava uma jovem pretendente de Yukî-masí que também era muita bonita. Ela ficou muito encantada com sua beleza e houve trocas de olhares entre eles. A jovem bonita era filha do chefe do Basa Wi’í/Chefe da Casa de Ritual. Ela era uma jovem detentora de conhecimento, que coordenava a Casa de Ritual para uma boa convivência coletiva. Ela era uma jovem sábia que praticava o basese/conjunto de kã’rákonismo. O grupo bayaroá no espaço de Basa Wi’í já fez três voltas de danças e parou tocando chocalho dos pés para tomar o caxirí, e Yukî-masí fez a mesma coisa. Uma jovem, sendo a filha de Chefe de Basâ Wi’í, kĩî warore yohâpo/ela dançou com Yukí-masí.
Às 03h00 da madrugada, Yukî-masí via o dia amanhecer, saiu do Basâ Wi’í e foi embora em direção ao caminho da roça. Em minha dissertação de mestrado sugeri que “o caminho da roça traz outro sentido, quando se faz alusão ao canal genital feminino, o caminho de fecundação, a roça é um útero, um lugar de fecundação, o caminho da reprodução humana” (Barreto, 2019, p. 93). O caminho da roça tem de ser protegido para ir à roça, “fazer o sopro de caminho para circulação das pessoas” (Ramos, 2018, pp. 161-198). O caminho tem de ser protegido dos ataques de Yukî-masá/gente da floresta. A floresta é um espaço social para gente da floresta.
Ao longo do caminho da roça, Yukî-masí entrava na floresta deixando vários tipos de mipîripi/turi para uso doméstico. A filha do dono da Casa de Ritual “kĩî sitîsehére pẽ’ri tohapó”/ela já foi afetada pelo cheiro de Yukî-masí. Ele saiu bem discreto e sumiu, ela foi atrás, seguindo no caminho da roça, mas não lhe alcançava, só encontrava árvores a sua frente e as árvores eram bem bonitas. Mas, ela dizia, era ele? Não era, era apenas uma árvore. Ele se transformava em árvores bem bonitas, e ela toda vez agarrava e esfregava nas árvores com seu íntimo. Por isso, a árvore-turi, cunurizeiro, vacuzeiro e totógi/árvore mata-matá etc. certa árvore da família das lecitidáceas, até hoje tem o cheiro de ovário. Aqui termina a primeira parte.
Classificação da árvore de turi/Senhor Benedito
Ao término da narrativa de minha mãe, meu padrasto Benedito entrava para classificar e indicar onde que se encontravam as árvores de turi: umú mipiri/turi-japu, pũrí bihiki/turi das folhas grandes, dia koékĩ/turi do igapó, nikîkĩ/turi da floresta, di’tâ wahari buakĩ/turi da-terra-arenoso, di’tâ witãri buakĩ/turi da terra-grudenta, di’tâ sõ’âri buakĩ/turi da terra-vermelha. Na coleção de reflexividade publicada por Dagoberto Azevedo do povo Tukano, o tipo de terra em que as árvores se encontram na floresta compõem seus nomes (Azevedo, 2018, p. 93): da-terra-arenosa, da terra-grudenta e da terra-vermelha. O Senhor Benedito retoma a fala de Dona Francisca, dizendo que os turi já foram pensando para uma arte de tecer os aturás. Para um pajé, as árvores são filhos de uma mãe humana que era filha Diâ pĩro makó para serem masá/gente da floresta. Estas pessoas ficaram nestes espaços sociais da floresta, porque foram pisoteados pelo Chefe de Transformação, dormiram demais e esqueceram o horário de transformação humana e acabaram sendo os moradores destes patamares.
Para Senhor Benedito, a floresta possui vários tipos de árvores que nós conhecemos. Para um basegî/pajé, as árvores pertencem a uma categoria de gente da floresta. Minha mãe, Dona Francisca, usa o termo na língua tukano masá/que significa gente ou pessoa, sendo os filhos de uma mãe humana; em outras narrativas aparecem os moradores de Basa Wi’í/Casa de Ritual. Basa Wi’í é uma sociedade doméstica com sua estrutura social patrilinear e hierárquica. Para Dona Francisca, na língua tukano são masá niîma/são gentes da floresta. Agora, as árvores são gentes da floresta quanto humanos, são masá weero no’o bahurã niîsama/são gentes semelhantes quanto a gente usando o seu envoltório próprio. Numa tradução ou equivalência funcional, masá/gente ou pessoa; weero no’o bahurã niîsama/são semelhantes quanto usando o seu envoltório próprio. Ou melhor, gente como a gente.
Para Dona Francisca, as árvores de turi foram deixadas por Yukî-masí para tecer pi’îseri/aturás para o trabalho da roça. De acordo com ela, os nossos pais tiravam tiras bem finas de turi em feixes para fachear os peixes no rio ou no igarapé; para iluminar as casas, para acender fogo no preparo de alimentos, para queimar tanajuras da noite, à noite para pegar as rãs, para tocar o fogo na roça e na madrugada servia para focar o caminho do porto para tomar o banho no rio. O fogo consome as tiras muito rapidamente, e, por isso, as pessoas carregavam alguns feixes pequenos de reservas.
Yukî-masá/gente da floresta/Senhor Benedito e Dona Francisca
Para o Senhor Benedito, as árvores são gentes da floresta. Para ele, são masá/gentes da floresta, pois eles também têm naâ niîsetisehé/sua forma de organização social quanto humanos. Yukî-masá são gentes da floresta, que têm sua organização social de acordo com seus lugares sagrados. Quando não se faz nenhuma proteção do corpo e da alma, somos muitos visados por essas pessoas de outro mundo para ataque. Uma criança recém-nascida e a mãe da criança correm o risco de serem atacados pelas pessoas da floresta e do mundo aquático, quando vão pela primeira vez à roça sem proteção de seus corpos e de suas almas. Gente da floresta tem odor forte que dá a dor de cabeça, febre, tonteira, vertigem e vômito.
Para um pajé, quando se faz proteção na criança recém-nascida, na mãe e para uma jovem que esteja na primeira menstruação, é preciso benzer o cigarro da proteção de seus corpos e da alma. A mãe de uma criança pinta todo seu corpo com o pó de carajuru. Kã’rákonismo/xamanismo é uma locução adverbial de lugar: Eu converso com gente da floresta oferecendo o cigarro, o pó da coca, cuia de caxirí e oferecendo o assento bem confortável, assim ficam conversando entre eles e esquecem dos ataques (Senhor Benedito/pajé).
Dona Francisca ressaltou a importância do papel de um kumú/pajé quando se faz a proteção, que é a de ser um gestor cosmopolítico. Nas palavras de Joanna Overing (1994) “os Xamãs são construtores de mundos” (pp. 90-93). Se não proporcionar uma boa convivência no território de Wa’î-masa/gente da floresta, eles são agressivos. Às vezes, basegi/pajé não constrói os mundos das pessoas para uma boa convivência e acaba sendo um agressor, e afugenta gente da floresta, defuma as pimentas secas, fura os olhos, manda embora, para outros lugares bem distantes e desconhecidos e, assim, levam consigo os alimentos e fica a escassez da caça, do peixe e das frutas.
Deste modo, Dona Francisca lembrou de (falecido marido), afirmando que, yi’î põ’rá pakî/ o pai de meus filhos, quando fazia a proteção: Não é para agredir nem para furar os olhos ou defumar com as pimentas secas nos olhos, afugentando as pessoas de outro mundo de seus territórios ou destruindo suas casas, mas oferecer a cuia do pó de coca, cigarro, caxiri/bebida bem fermentada de mandioca e um bom assento, assim ser cordial oferecendo os alimentos dos velhos. O termo velho está se referindo a uma categoria de especialista, de sábios.
Basese de proteções são para apaziguar, harmonizar para uma boa convivência simétrica e, assim, eles não se sentem ameaçados nem sentem estranheza. Até porque, gentes da floresta ficam consumindo o pó da coca, fumando cigarro e tomando uma bebida bem fermentada de mandioca para fluir uma roda de conversa, sentados e olhando em outra direção.
Não se vê que ao longo do caminho da roça se encontram várias árvores, altas e bonitas? Na floresta, as árvores são gentes como gentes. As árvores não são simples árvores que ficam por toda extensão da floresta ali em pé, mas são masâ/gentes espalhadas por toda extensão da floresta, disse Senhor Benedito. Para uma jovem que está de menarca, gente da floresta se transforma em uma pessoa muito bonita e conhecida, pois, nas palavras de Eduardo Viveiros de Castro (2008), “eles têm seu próprio envoltório” (p. 227) para ter uma relação íntima. Por esse motivo, nesse período de resguardo de menstruação era a avó que lhe acompanhava no lugar de resguardo. Tem de ter muito cuidado para esse período de vulnerabilidade. Na linguagem dos kumuâ/pajés, tem de fazer we’tîro/proteção do corpo e da alma da pessoa, cercando-a com várias esteiras de arumã e cercas de pari para circulações nos diversos patamares e nos espaços sociais.
Especialistas abandonam suas artes e tecnologías
Na Amazônia Colombiana, no alto rio Tiquié, rio Abiu, rio Paca, rio-Turi, alto rio Waupés, no rio Papuri. Naquele tempo, os especialistas de tecer o aturá de turi e batí/balaio de turi são do povo Bará, Barasana, Desana, Cubeo, Siriâ, Tuyuka etc. Antigamente, o povo da região usava muito os aturás de turi e, ao longo do tempo, mipiri pi’îseri su’ase/arte de tecer foi abandonada e esquecida pelas próprias pessoas da região. Pois o aturá de cipó-titica foi introduzido como saberes localizados de conhecimentos femininos do povo Hupda na Amazônia colombiana. Para Donna Haraway, é preciso pensar uma ciência política para inclusão de mulheres. Um espaço feminino para garantir o seu direito (2009, pp. 7-41). As mulheres Hupda levaram suas artes femininas para os povos das cabeceiras dos rios. Antes, as famílias Hupda não existiam nessa localidade. O aturá de cipó-titica, batí/balaio de cipó tem seus tamanhos e variedades e entraram no Alto rio Tiquié como autossustentos. Esses materiais domésticos são produtos de artes femininas das mulheres Hupda, com grafismo, para carregar os alimentos da roça, para carregar manivas, para carregar a mandioca.
O Batí/balaio serve para coar vários tipos de vinhos, da’siâ wasâ/para pegar camarões, sẽ’eá wasâ/pegar piabas, para carregar os peixes, para guardar os peixes moqueados e para moquear pimentas no jirau etc. Elas que trouxeram aturá de cipó-titica entre o povo Bará, o povo Tuyuka etc. E, aos poucos, as famílias Hupda no Brasil foram se chegando nesses lugares longínquos na Colômbia. Yukî-masí deixou a arte de tecer o aturá de turi para uma colheita da roça, e, então, as mulheres Hupda transformaram o trabalho do homem para sabedoria feminina; assim, o aturá de cipó-titica se conquistou no espaço masculino. Para Dona Francisca, essa narrativa continua presente na memória, ela chegou a usar o aturá de turi que foi tecido pelo seu pai. No entanto, pela convivência com família de Hupda, os homens justificavam que o aturá de turi dava muito trabalho, por isso não quiseram mais tecer o aturá de mipiri pi’î, assim disse Dona Francisca. Por esse motivo, os especialistas de tecer o aturá de turi abandonaram suas artes e tecnologias do conhecimento masculino.
A narrativa de Ba’asehé-Boo/Dono de maniva/Dona Francisca
Para Dona Francisca, o Ba’asehé-Boo é Ser-da-Fartura da roça, o dono de manivas; para o povo Tariana é o dono da alimentação para a humanidade (Barbosa e Garcia, 2000, pp. 128-142). Para o povo Desana, “os Umukori Masá derrubam o pau de alimento” (Galvão e Galvão. 2004, pp. 421-427). Para Dona Francisca (2018), do povo Tuyuka, Kĩî dikî kũûpĩ/Ba’asehé-Boo trouxe os pés de manivas lá da Casa de Avô de Universo para alimentação de sua família. O povo no Médio Purus também mostra como a maniva foi importante na construção de parentelas entre o povo (Santos, 2016), a circulação de toletes de maniva levadas nas suas comunidades de origens se torna um elo da história de parentesco.
No começo, Ba’asehé-Boo tinha outras roças antigas, as mulheres de Ba’asehé-Boo arrancavam as mandiocas para sua alimentação. Depois de ter ficado com uma mulher com a filha de Wariró/gente pequena da floresta, planejou fazer uma nova roça para seu sogro, uma roça na mata virgem, deixando durante dois ou três meses de secagem. Nestes meses, às vezes ia à roça para verificá-la, na roça derrubada, removia as folhas secas para ver o estado da secagem para tocar o fogo. Em outra ocasião, Yukî-masí deixou a árvore de turi, exatamente, tiras de turi, a ser usado na hora de tocar o fogo na roça. Uma árvore prospectiva que já foi pensada como uma árvore a ser útil em várias das atividades femininas e masculinas. Chegou o tempo certo para ser tocado o fogo na roça. Todas estas etapas foram deixadas por Ba’asehé-Boo, a serem desenvolvidas pelos seres humanos nos dias atuais com as técnicas e regras do cultivo de manivas.
Ele acordou bem cedo com o plano de queimar sua roça. Ba’asehé-Boo foi ao caminho da roça, viu que ela estava bem seca para ser tocado o fogo, e o dia quente com vento leve. Então, ele ficou bem no meio para queimar toda a roça. Ficar bem no meio significa fazer uma circulação de suas potências vitais nas manivas e de todas as plantações da roça. Conforme o entardecer do dia foi baixando, baixando até que a terra ficasse fria e, logo à tardinha, “vários os tipos de pés de plantações começaram a levantar na roça. A roça inteira ficou bem esverdeada de tantas plantações” (Azevedo e Nascimento, 2003, pp. 83-98). Para Dahsea Hausirõ Porã/Tukano, Ba’asehé-Boo recebeu os pés de manivas das mãos de Umuko Ñehku/Avô de Universo, para dizer que as manivas são pés de Avô de Universo trazidas para o mundo humano. Para o povo Tatuyo, foram as filhas de Anaconda que trouxeram do mundo aquático para este mundo humano, mas a floresta era a própria roça (Bidou, 1972, pp. 86-90).
Antropomorfismo de maniva
A roça era o próprio corpo cosmológico de Ba’asehé-Boo, formando os seus toletes, que são corpo; os galhos da manivas são seus braços, as ramas são palmas das mãos, e dedos dos pés fincados ao chão são as mandiocas bravas, os demais dedos dos pés são dutû/macoari, yãpî/batatas e batatas-doces, ya’îro/uariá, ya’mû/todos os tipos de carás, potâ ya’mû, ohô yoori/bananeiras, sẽrá/abacaxis, i’sêpi/pés de cucuras, patúpi/pés de ipadú, biapi/pés das pimenteiras, ire yõori/pés de pupunheiras, kã’rêpi/pés de abiu, etoâpi/pés de cubiu, ohôka/milho etc., cresciam junto com os pés de manivas. Para Dona Francisca, wesé pehé otosehé kió”/roça que tem multiespécies comestíveis da roça.
Uma tradução de equivalência funcional: wesé/roça; pehé/muito; otosehé/plantações e kio/possuir. A roça que tem muitas plantações. Me inspirei no conceito de multiespécies vegetais do atual estudo da antropologia multiespécies. A roça que tem muitas plantações, para mim, não tem um aspecto afetivo sentimental, os multiespécies cultivados ou plantados na roça têm um vínculo de uma relação social, o vegetal e o animal. A roça de uma mulher tukana tem várias espécies, e os tipos de plantações que se planta, essas requerem um aspecto afetivo sentimental para dar frutos. Ao invés de elencar todos os tipos de plantações da roça, usei o termo multiespécies comestíveis da roça. Para Dona Francisca, essas plantações da roça são masá/gentes ou pessoas do universo de maniva. Uma sociedade de maniva é uma sociedade patrilinear e hierárquica. Ba’asehé-Boo é o principal ordenador da vida social de maniva, uma relação social, o vegetal e o animal.
Na organização social de maniva existe uma estrutura social patrilinear e hierárquica: de irmãos maiores, ficam bem no meio da roça, bem distribuídos em quatros direções, e os irmãos menores carregavam água para as manivas maiores, e as manivas de irmãos menores são manivas pequenas, que ficam à beira da roça.
Ba’asehé-Boo contava com outros colaboradores da família de Yoasõ/Calango, a família Booga/pássaro bem esbranquiçado e listrado, família de Taâ-miri yĩígi/curió e família de Wekó/papagaio, que cuidavam a limpeza da roça. Uma relação social entre maniva e o dono da roça. No contexto da narrativa, eram masá/pessoas que cuidavam das roças de Ba’asehé-Boo. Por decisão pessoal, ele não quis que se tornassem masá/pessoas e, hoje, os conhecemos como pássaros e calangos. Para Ba’asehé, essas pessoas eram seus colaboradores, eram marcadores do trabalho da roça e da qualidade de mandioca. Atualmente, continuam sendo os marcadores para as mulheres tukanas.
O kií butîsehé/massa branca e sõ’âsehé/massa amarela da mandioca são a carne de Ba’asehé-Boo. Quando rala a mandioca no ralo, a massa fica homogênea em três elementos do corpo de Ba’asehé-Boo, a casca marrom da mandioca é a pele e o líquido é o sangue, o líquido ácido cianídrico da mandioca. Os galhos são braços, as ramas de manivas são palmas das mãos levantadas pegando o sol e o vento, e os dedos dos pés fincados ao chão são mandiocas.
Ba’asehé-Boo tinha o poder da palavra-transformadora, de tirar de seu próprio corpo um pedaço de beiju para o alimento cotidiano. Para ter isto, era necessário seguir uma regra do cuidado. Tudo estava indo segundo seu modo de trabalho dentro do tempo e do espaço. Ba’asehé-Boo mostrou todas as etapas que estavam sendo construídas para a atividade da roça. Ele voltou para a sua casa e, enquanto isso, todas as plantações da roça começaram a brotar e a crescer junto com as manivas, e já estavam às alturas dos troncos. Nas palavras de Dona Francisca, as pessoas afirmam que - wesêkase otosehé na’îtori niîro bikiâ miyã niîparo/plantações da roça correm no contratempo do dia para dar uma boa colheita.
Dois dias depois, Ba’asehé-Boo retornou novamente para ver sua roça queimada e toda a roça estava enverdejada de tantas plantações. Ao ver o que havia acontecido, ficou muito feliz. A roça de Ba’asehé-Boo estava carregada de muitas multiespécies comestíveis. Outras roças também estavam como esta nova roça. Os pés de manivas foram deixados para o sustento de sua família. Para João Paulo Barreto do povo Tukano, antropólogo, autor do livro Omerõ, Ba’asehé-Boo deixou certas regras comportamentais (Barreto, 2018b, p. 34). Ele mandava fazer caxiri/bebida bem fermentada de mandioca para dançar os rituais de kapiwaya e tocaram a flauta-pã com a parentela de seus sogros e, assim, viviam muito felizes com toda essa fartura em certo período. Para Gabriel Maia do povo Tukano, foram deixadas as etapas de trabalho da roça, especialmente “as regras de be’tîse/dietas alimentares a serem observadas durante no trabalho da roça” (Maia, 2018, p. 175). A roça é a sua própria extensão corpórea de Ba’asehé-Boo. No começo, todas as roças de Ba’asehé-Boo estavam bem limpas e tinham muitas plantações. Vendo suas roças bem esverdeadas, ficou contente pelo seu trabalho da roça.
Urina transformou para trabalho pesado da roça
Na última roça que foi feita por Ba’asehé-Boo, suas mulheres, de sua convivência marital, trouxeram outra forma de encarar o trabalho da roça. Porém, não se sabe exatamente quem seriam essas moças, se eram suas netas, ou se elas pertenciam a uma categoria de gente da floresta, mulheres do mundo aquático ou se eram suas afins. Então, as filhas de Diâ Pĩrô põ’rá numiâ/então, as filhas da Cobra do Rio foram à roça. Ba’asehé-Boo havia aconselhado que ninguém fosse, ainda, à roça: Deixa primeiro que eu vá sozinho e depois vocês serão liberadas. Elas nem sequer deram atenção às palavras de Ba’asehé-Boo. Então, duas irmãs foram correndo ao caminho da roça, e, enquanto isso, ele estava disseminando várias plantações da roça. Ele não havia terminado de queimar tudo, de deixar a terra fria, de fazer todo o processo de brotar e crescer todos os cultivos da roça.
Ba’asehé-Boo viu suas mulheres chegando à roça, e, enquanto isso, ele rapidinho adentrou um pouco no mato e voltou para sua casa muito triste pela ação de suas mulheres. Uma delas correu, correu à frente de sua irmã mais velha e, já chegando à roça, sentiu a necessidade de urinar. Outra irmã, a mais velha, repreendeu-lhe. Porém, a irmã menor estava muito apertada, e, se urinou, olhando em direção à roça. Não demorou muito e começaram a crescer rapidamente os matos, os capins, moitas, começaram a brotar e a crescer, e, assim, tomaram conta de todas as roças. Até os alimentos da roça começaram a ter cascas, e isso aconteceu porque ela estava tão empolgada de ver a sua roça bem queimada. Elas diziam uma para outra: Yaá wesê, yaá wesê, ayuró ĩhîapã, yaá wesê! Oh, minha roça, minha roça, a minha roça está bem queimada!
Ele já sabia do estrago que suas mulheres fariam de suas roças. Todo o plano de execução de Ba’asehé-Boo foi interrompido pelas mulheres. Ele já sabia do que iria acontecer, no caminho à volta da roça já ficou bravo, elas não ouviram nada de meus conselhos, da’rarasama, naâ da’rasiri karo nohota, da’rasama naâ wesêrire/vocês vão trabalhar muito, como vocês quiseram trabalhar muito nas suas roças, trabalharão. Ele chamou suas mulheres e assim disse: -Vocês, mulheres vão trabalhar muito pelo suor de seu rosto para sustento de suas famílias. Christine Hugh-Jones (2011) apresenta a produção da yuca/mandioca na comunidade Barasana, Caño Colorado, “trazendo todo procedimento da produção para o consumo” (Hugh-Jones, 2011, pp. 218-251).
Õ’rê yã’âsehe kió/A urina têm elementos ruins do corpo. Sugiro que a urina é um líquido prejudicial para saúde de gênero tukano. Quando pisa no local urinado, pega uma frieira. Especialmente os adolescentes ou os jovens que estão na fase de crescimento, não podem cheirar o odor da urina, a urina desqualifica a mente na formação de gênero. Os adolescentes e os jovens não podem cheirar o odor da urina, porque estraga o processo de inalação de pimenta para estética facial, para ter o rosto oleoso para pintura facial com a carajuru.
A irmã menor regou outros elementos, formando e transformando uma arte de capinar a roça. Este trágico fator trouxe reações como a raiva, o nojo e a maldição de Ba’asehé-Boo. Porque as mulheres quebraram o conselho de Ba’asehé-Boo, pois tinham muita pressa e curiosidade de ver sua roça. Então, a irmã menor se urinou em cima dos pés de Ba’asehé-Boo, que naquele momento não havia terminado de circular suas forças vitais em todas as plantações da roça. O próprio Ba’asehé-Boó estava se recuperando de sua ação prospectiva da roça, dikakigî/estava disseminando para dar uma boa produção de mandiocas e seus derivados.
Por esse motivo, niî pe’tise wesêri pẽ’rí pe’tia wa’â wa’âparo”/todas as roças foram afetadas pelos elementos ruins da urina. Antes, em todas as roças não existiam pragas, em todo tempo eram limpas. A urina feminina trouxe para capinar debaixo do sol e da chuva, levando picada de cobra, lagartas, mordida das formigas e dos insetos. Em minha dissertação de mestrado, havia entendido que “a roça estava cheia de Bikîrã/todos tipos de insetos” (Barreto, 2019, p. 110). Antes era conhecido como Butu yaari Õ’âkîhi/é o criador das coisas que cria uma ação simétrica, uma terra sem males; agora, é Ba’asehé-Boo, quando ele trouxe alimentação para a humanidade. Por essa razão, ficou conhecido como Ba’asehé-Boo/Ser-da-fartura. Tudo o que quisesse comer já vinha pronto para o consumo. Um tempo de muita fartura, sem ter que suar muito.
Depois de três dias, Ba’asehé-Boo retornou à sua roça e viu que ela estava toda um matagal. Suas plantações e manivas estavam toda tomada de capins e mais uma vez sussurrou por pensamento que suas mulheres trabalhariam muito na roça. Todos os tipos de multiespécies comestíveis ficaram amarelados, secos e sem vida. Ao retorno da roça, voltou muito triste, estava muito triste e preocupado o tempo todo e não dizia nada.
No seu pensamento, dizia que suas mulheres iriam trabalhar muito para seus sustentos: Agora, vocês vão trabalhar muito nas suas roças. O antropólogo Patrice Bidou (1996), sobre o povo Tatuyo, do rio Waupés, “descreveu, com riqueza de detalhes, o trabalho duro e cansativo da roça e da fabricação de farinha de mandioca, exclusivo das mulheres”.2
Ouvindo isso, suas mulheres foram limpar e capinar suas roças, mas não deram conta. As roças estavam todo o tempo um matagal. Todo trabalho de Ba’asehé-Boo era para nossa humanidade de hoje e, na atualidade, não haveria tanto trabalho pesado na roça. Todas as roças de Ba’asehé-Boo foram afetadas pela urina. Isso trouxe outra perspectiva de trabalho humano para o sistema capinar e da coivara até os dias de hoje, mas, também, pode-se conferir outra versão em Bernstein (2019).
Compreensão da Categoria de especialista sobre mandioca
Para o Senhor Benedito, basegi/pajé, há outro entendimento sobre mandioca. Para ele, a mandioca ficou impregnada de substâncias prejudiciais à saúde, porque a irmã menor urinou na roça de mandioca. A urina possui elementos ruins do corpo humano. Primeiro, quando arrancava mandioca já saía sem casca, nem precisava arrancar muitos pés de mandiocas para encher o aturá. Especialmente, kií/mandioca antes não tinha kãstise/ácido cianídrico e nenhuma substância prejudicial à saúde. Desde que foram contaminados pela urina, os alimentos da roça ficaram para serem assepsiados pelo pajé. Ele que os descontamina dessa substância prejudicial, para um alimento saudável para o consumo.
O trabalho de Gilton Santos (2016) menciona “o pão de índio” como alimento cotidiano e, ao mesmo tempo, como fator cosmopolítico e mercantil. Agora, para Kumû/pajé Tukano, vai além desse conceito, como produto de venda, como fator histórico de relações sociais. A narrativa de Ba’asehé-Boo/Ser-da-Fartura abordada aqui traz uma atribuição importante, como na formação e transformação para ser uma boa pessoa, em relação de gênero, alimentação, kã’rákonismo/xamanismo, e, sobretudo, nas relações sociais. Para Rosiane, do povo Tukano, minha interlocutora de pesquisa, “o beiju é do universo feminino, o bem material de uma mulher tukana que vem da roça. O homem tukano oferecia peixe (carne da caça, frutas da floresta) para sua futura esposa como sinal de pedido de casamento e a mulher retribuía com seu beiju para a vida conjugal”. O beiju e o peixe são marcadores para formação de gênero tukano.
Então, o pajé aciona primeiramente usando manicuera para transmutação no alimento saudável. O pajé utiliza espuma da manicuera na cuia, descontamina das substâncias prejudiciais à saúde. Em minha dissertação de mestrado, sugeri que todo produto da maniva tem de “transmutar no leite e espuma de buiuiu, num alimento saudável” (Barreto, 2019, p. 69). A roça é uma das casas de pessoas humanas da roça, por causa da urina, porque ela atraiu muitos outros bikîrã (formigas, abelhas, moscas, borboletas, cabas, lagartinhas, joaninhas). Elas pertencem à categoria das pessoas da roça. Estas pessoas da floresta efetuam suas ações dando flechadas, lambadas, trovoadas, relâmpagos, ventanias, febre, ferradas, picadas ou mordidas, dor de cabeça, vômito verde, corpo inchado e dolorido, hematomas, bolhas e dores agudas. Todos os alimentos da roça são descontaminados pelo basegi/pajé para se tornarem bons alimentos na formação e transformação social de ser uma boa pessoa para convivência coletiva.
O saber localizado do alto rio Tiquié
Proponho neste artigo uma reflexividade indígena do Alto rio Negro para construção de pensamento sociológico e antropológico sobre trabalho da roça. Para dizer que, a maniva, no Alto rio Tiquié, é um dos alimentos cotidianos para construção de uma boa pessoa. O Alto rio Tiquié, para Aloísio Cabalzar, está situado a partir de “Pari-Cachoeira, com duas fortes corredeiras separadas por um estirão de cerca de duzentos metros, é um marco da navegabilidade do rio. Sede de uma missão católica com grande colégio, construídos nos anos 40, reúne a maior população (454 habitantes) e é o centro comercial do Tiquié. Esse é o ponto de partida para o alto curso do rio, que se estende até as cabeceiras, já em território colombiano. A divisão entre médio e alto Tiquié leva em conta significativas mudanças ecológicas e sociais. O alto Tiquié tem aproximadamente 96 km de extensão. Entre Pari-Cachoeira e a fronteira Brasil-Colômbia são 43 quilômetros; daí até as cabeceiras do rio são mais 53 quilômetros. Pari acima, como também chamam o alto Tiquié, é um trecho com três cachoeiras intransponíveis em qualquer estação do ano, além de várias corredeiras e muitas rochas salientes pontilhando o canal do rio. Devido ao curso em grande parte encaixado, margeado diretamente por terra firme, o alto Tiquié possui poucas matas de igapó, limitadas a trechos ao longo dos igarapés Onça e Açaí, no trecho do rio acima de Caruru e, principalmente, acima da comunidade de Fronteira, no Tiquié colombiano” (Cabalzar, 2005, p. 32).
Para o tronco linguístico tukano oriental, são kití/narrativas carregadas de teorias e práticas na vida social. É nesse sentido que narrativas são transportadas, que refletem na vida do povo Tukano, a ciência do concreto (Lévi-Strauss, 1989). Para Mircea Eliade (1972), contar, narrar as histórias antigas, é “narrar às histórias verdadeiras de seu povo, de seus antepassados” (pp. 6-16), amplas e complexas, para as pessoas da nova geração situarem a história do passado no presente, nas suas vidas. O pão de índio e massas vegetais são, assim, elos entre passado e presente na Amazônia indígena (Santos et al., 2021).
Para a pesquisadora Dany Rubio (2004) do povo Macuna, baixo Apaporis/Colômbia “personas verdaderas”. O corpo da mulher é formado por substâncias da mandioca brava, carás e seus derivados, e frutas cultivadas, pintura facial de carajuru, pimenta e pintura de jenipapo; agora, o corpo do homem é formado por pó da coca, cigarro, haste da onça e tinta de jenipapo. Para o povo Macuna, as plantas da roça são defesas de seus corpos, que provêm substâncias, conhecimentos e poderes para existir na reprodução. Os alimentos da roça são fontes de vida, pois constituem, protegem e defendem seus corpos físicos e espirituais. Os alimentos da roça são elementos essenciais para os humanos: “a mandioca brava, a coca e tabaco, são elementos considerados pelo povo Macuna, os principais componentes dos corpos espirituais femininos quantos masculinos” (Rubio, 2004, pp. 136-142). Todos esses alimentos proporcionam para ser uma pessoa verdadeira do povo Macuna: “La vida de las mujeres y los hombres fluye en torno al manejo, a la producción, transformación y consumo de los alimentos, como las sustancias derivadas de la yuca brava, la coca y el tabaco, a través de los procesos domésticos cotidianos de lavar, colar, exprimir, cernir, tostar, cocinar y limpiar con curaciones chamánicas, cuyo propósito es hacerlas benéficas y aptas para los humanos” (Rubio, 2004, p. 136).
Os alimentos da roça, tanto para o povo Tukano quanto para o povo Macuna do baixo Apaporis, proporcionam a formação de uma pessoa verdadeira. Para isso, os alimentos da roça têm de ser acionados pelo conjunto de benzimentos, ou melhor, descontaminados das substâncias prejudiciais à saúde. Especialmente para a mãe da criança, para a criança recém-nascida e para a jovem de menarca. Se não se fizer a assepsia dos alimentos da roça, a criança vai ter diarreia, dor de cabeça, tonteira etc., e isso prejudica o desenvolvimento, o crescimento, a construção da pessoa (Seeger, Da Matta e Viveiros de Castro, 1979), e a transformação de ser uma boa pessoa (Barreto, 2019).
Para Senhor Benedito, as árvores da floresta são gentes como humanos, que se “constitui como masá/pessoas, conforme a sua organização social”. Isso também é levantado no trabalho de João Paulo Barreto do povo Tukano, na coleção de reflexividade indígena: ahko-pati/morada de wa’îmahsa e dos peixes (Barreto, 2018a, pp. 84-91). Tim Ingold também faz uma afirmação interessante ao se referir aos seres não-humanos como gente como a gente, porém, não culturalmente (Ingold, 2011).
Quando não se faz nenhuma proteção do corpo e da alma, as pessoas são visadas aos olhos dos ataques dessas pessoas. A mãe da criança recém-nascida, quando for à roça a primeira vez, tem de proteger o corpo e a alma da criança, baforando o cigarro benzido ou pintando todo o corpo com o carajuru. Porque, ao longo do caminho da roça se encontram várias árvores, identificadas como gentes da floresta (Descola, 1988, pp. 131-141). As árvores são gentes da floresta que têm toda uma estrutura social como os seres humanos. Estas árvores não são simples árvores que ficam por toda extensão da floresta ali em pé, mas são masá/gente espalhadas por toda a floresta. O corpo da criança recém-nascida corre o risco de ser atacado e a alma de ser trocada pela alma das pessoas da floresta. Isso acontece quando não se faz nenhuma proteção de seu corpo e de sua alma, quando vão pela primeira vez à roça.
Para uma jovem de menarca, gente do mundo aquático, da floresta, se transforma em uma pessoa muito bonita, ) em alguma pessoa conhecida para ter relação íntima. Para Eduardo Viveiros de Castro (2008), “todos os seres têm alma, e essa alma é a mesma, entenda-se, é do mesmo tipo, dotada das mesmas capacidades e, por isso mesmo, no começo dos tempos homens e animais podiam se falar” (p. 89). Antigamente, nesse período, a avó que lhe acompanhava no lugar restrito do resguardo. Tem de ter muito cuidado para esse período de vulnerabilidade. No local de resguardo, numa linguagem dos pajés, o corpo e a alma da pessoa têm de ser cobertos, e esticadas várias esteiras de arumã para proteção dos ataques de Yukî-masá/gente da floresta.
Sobre o entendimento do Senhor Benedito, em relação à roça, antigamente, em outros tempos, a roça foi urinada e, por essa razão, surgiram outros tipos de matos, que atraíam insetos, formigas, cabas, lagartas, minhocas, borboletas, moscas, cupins etc. A roça é uma das casas das pessoas não-humanas. Elas pertencem a esta categoria das pessoas humanas da roça. Essas pessoas efetuam suas ações dando flechadas, lambadas, trovoadas, relâmpagos, ventanias, febre, dor de cabeça, vômito verde, corpo inchado e dolorido, hematomas, bolhas e dores agudas. A dor de cabeça, febre, tonteira, vertigem e vômito são odores das axilas dessas pessoas, o conceito de doença. Em minha dissertação de mestrado, entendi que “estes sintomas têm de ser transmutados em leite e espuma de buiuiu” (Barreto, 2019, p. 69) para abrandar e aliviar a dor, física ou da alma. Essa é a prática de fazer assepsia alimentar no alto rio Negro.
O basedor/pajé é um interlocutor entre as categorias de pessoas humanas e gente da floresta e do mundo aquático para uma boa convivência. Ele tem o papel importantíssimo de ser gestor cosmopolítico. Às vezes, o basedor/pajé agride e machuca pessoas da floresta defumando com as pimentas secas, furando os olhos, mandando embora, para outros lugares bem distantes e desconhecidos. Para Dona Francisca, segundo o meu pai falecido (Paulo Emilio Barreto, in memoriam), quando se faz a proteção ou cura para uma boa recuperação da saúde não é para agredir, em minhas palavras “é oferecer uma cuia de coca, cigarro, uma cuia de caxirí/bebida bem fermentada da mandioca e um bom assento” (Barreto, 2019, pp. 69-70). Nesse sentido, Carlos Fausto afirma que é preciso “oferecer os alimentos” (Fausto, 2008, pp. 329-366).
O conjunto de kã’rákonismo/xamanismo é para apaziguar, harmonizar, para uma eficiência simbólica; abrandar e transmutar para uma boa convivência simétrica entre natureza e cultura e, assim, gentes da floresta não se sentem ameaçados nem sentem estranheza. Até porque, estas pessoas ficam consumindo o pó da coca para exercício de memória, fumando cigarro e tomando caxirí, ocupando o tempo em uma roda de conversa. Por fim, é preciso, para uma boa convivência, ter afeto, carinho e conversar com as manivas, com as multiespécies comestíveis da roça. Uma relação feminina com a maniva para o ter o pão de índio na roda da quinhapira para gênero tukano no Alto rio Negro, noroeste amazônico.
Considerações finais
Há várias versões das narrativas de Ba’asehé-Boo/Ser-da-Fartura, um produto final sendo a mandioca da maniva, que contam da origem de manivas na paisagem Amazônica. Em diferentes regiões, veio a existir, foi levada ou trazida para se tornar um elo entre passado e presente na construção de uma paisagem de plantas e parentelas (médio Purus e no noroeste amazônico). No começo dos tempos, as manivas eram levadas às escondidas para serem cultivadas nas suas comunidades de origens para ser o pão de índio. No noroeste amazônico, existe a narrativa de Ba’asehé-Boo/manivas que veio ficar entre o passado e o presente para o cultivo de dikî/maniva, para funcionar a relação social. Dikî/maniva são gente como a gente, que tem afetivo sentimental, para uma relação social, vegetal e animal de autossustentos para tukano sendo ãhúga/beiju.
No começo da história, nem todas as famílias cultivavam a maniva, nem animais se alimentavam com mandioca. As pessoas comiam cogumelos, que eram seus beijus e tomavam manicuera que era lama. Para o povo Tukano, foi Ba’asehé-Boo que trouxe para nosso mundo humano a mandioca. Pois o Avô de Universo era o próprio conhecimento do cultivo da maniva, o próprio alimento e os instrumentos musicais que eram membros de seu corpo. Onde neto do Avô de Universo morava, faltava alimento. Os bens materiais e imateriais existiam na Casa do Avô de Universo. Os netos subiram na Casa do Avô de Universo em busca de alimentos. Naquela casa do Avô de Universo aconteceu uma negociação para trazer o alimento para este mundo humano. Os netos contaram para seu Avô, no mundo em que eles moravam estava faltando alimento e não estavam muitos felizes. Ouvindo isso, o Avô de Universo atendeu a necessidade de seus netos.
Então, o Avô de Universo deu conselho para ter alimento como maniva, no caso, aqui, maniva para ser cultivada, especialmente, para ter cuidado (menstruação e dietas), a saúde de maniva para eficiência e ter fluidez de pensamento. A mulher que estivesse no ciclo menstrual não deveria ir à roça, o sangue de menstruação contamina as manivas. O corpo se alimenta dos produtos da maniva e a alma se alimenta de leite e espuma de buiuiu. Antes tem de ser feita uma assepsia alimentar pelo pajé, para proteger das doenças e males sociais.
A narrativa de Ba’asehé-Boo mostra a quebra de conselho de suas esposas. A necessidade de urinar foi maior do que de ter uma roça limpa, do que comer dos alimentos bem saudáveis, sem substâncias prejudiciais à saúde. A urina regou outros elementos, fez brotar e crescer os elementos não comestíveis na roça, que transformou o modelo de trabalho em outro. Em consequência disso, “surgiu o sistema de coivara da roça” (Lima, 2016, pp. 88-115), coivarar e capinar a roça o tempo todo.
Para a mulher tukana do noroeste amazônico, a narrativa de Ba’asehé-Boo transporta ou reflete na vida de uma mulher, mas não é um pessimismo sentimental. Foi a urina feminina que transformou, para suar muito no trabalho da roça, pois a roça foi regada de outros elementos atraindo os insetos nocivos. A roça foi transformada numa casa de Wa’î-masa da roça/gente da floresta que são formigas, lagartinhas, joaninhas, moscas, minhocas, etc., pois, houve o contágio das coisas ruins nas mandiocas e seus derivados, tudo necessitando da prática de descontaminar os alimentos cotidianos. Palavras-transformadoras de Ba’asehé-Boo, porque havia ficado com muita raiva e acabou transformando em novo modo de trabalho da roça para ter o beiju e seus derivados. Trabalhar na roça de maniva é ter cuidado com a saúde das manivas, para que se tenha uma sincronia de sinergia vegetal e para ter uma boa colheita para ter o pão de índio. No Alto rio Tiquié, isso veio a se tornar uma prática de descontaminação alimentar.
As manivas são masâ/gentes, querem ter um vínculo afetivo sentimental para dar uma boa colheita. Isso não só se trata de capinar a roça, vai além da limpeza, sim, uma sinergia vegetal com a dona da roça. Até hoje continua presente de que na roça não se pode urinar, senão capim cresce mais rápido do que maniva. Para Patrice Bidou, que pesquisou o povo Tatuyo, a mandioca como reprodução humana (Bidou, 1996, pp. 63-74). Isso traz outro sentido, o trabalho vegetal para ter o pão de tukano. De acordo com o costume local, as pessoas escutam a necessidade de outra pessoa que estaria precisando de maniva ou da mandioca. As pessoas se articulam para fazer dabucuri/oferta ou retribuição da maniva ou da mandioca. O sentido da oferta de maniva é de ma’í/sovinar ou no sentido de querer bem (incondicional) seu parente. Este ritual de oferta da maniva ou da mandioca é para manter uma estrutura patrilinear e hierárquica. Isso vai além da necessidade básica para a ampliação de seu parentesco; neste caso, a maniva é uma construtora de papeis, da relação afetivo sentimental pessoal e do coletivo.
Por fim, para a categoria de especialista/pajés, os produtos da mandioca ficaram contaminados pela urina. Os alimentos da roça antes do consumo têm de ser assepsiados, pois, a urina contaminou a essência da mandioca trazendo doença e males sociais. Na região do noroeste amazônico, nas aldeias e nas comunidades, as pessoas ou as famílias comem o peixe (carne da caça, lagartas de espécies comestíveis, formigas, manivaras, cogumelos de espécies comestíveis, tanajuras de formigas e manivaras etc.) sob beiju. Isso significa que o beiju é o bem material e imaterial feminino enquanto peixe é o bem material e imaterial masculino, que formam um só alimento para a vida conjugal. Ãhûga bu’i wa’î kã’rá koo weta, kã’rá koo sopori/o peixe sob beiju é leite e espuma de buiuiu. O peixe sob beiju é um marcador, sendo leite e espuma de buiu para alimentação do corpo e da alma para construção de pessoa nas sociedades indígenas (Seeger et al., 1979, p. 14) e para a transformação de ser uma boa pessoa, para vida familiar e para uma vida coletiva. O alimento cotidiano vem de dikî/maniva, são gente com a gente que tem um aspecto afetivo sentimental, para uma relação social, vegetal e animal de autossustento para tukano sendo ãhúga/beiju. Os alimentos da roça para uma boa recuperação da saúde, em outros momentos são alimentos das dietas, em outros são alimentos cotidianos, sendo pão de índio na paisagem amazônica.