1. Introdução
No Brasil, a morte precoce do pessegueiro foi observada pela primeira vez no final da década de 1970 em pomares no município de Pelotas-RS, por técnicos da extensão rural da Emater/RS (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do estado do Rio Grande do Sul). A síndrome ocorre em plantas com idade variável (entre um e oito anos), em reboleiras ou em plantas isoladas no pomar. Apresentam sintomas visíveis no inverno, com necrose e queda de gemas, necrose sob a casca de ramos e de pernadas, que evoluem para florescimento irregular ou inexistente, exsudação de seiva com odor de vinagre, brotações fracas ou murchas, podendo ocasionar morte de ramos, de pernadas ou de toda a copa da planta1)(2)(3)(4. A mortalidade de plantas é variável de um ano para outro e não há uma relação direta entre severidade dos sintomas ou mortalidade com o nível tecnológico adotado nos pomares. Em casos extremos, em alguns pomares foi observada mortalidade de plantas de até 90%5.
Os sintomas observados no Rio Grande do Sul assemelham-se aos de Peach Tree Short Life (PTSL) relatado nos estados da Carolina do Sul, Carolina do Norte e Geórgia, nos Estados Unidos2)(6. Danos nas plantas e elevadas porcentagens de mortalidade devido ao PTSL nos pomares do Sudeste dos Estados Unidos já eram relatados desde os anos 1950 e, aparentemente, os prejuízos foram intensificados quando ocorreu a substituição do porta-enxerto ‘Lovell’, suscetível aos nematoides-das-galhas, pelo ‘Nemaguard’, que é resistente aos nematoides-das-galhas. Para o Sudeste dos Estados Unidos, foram elencados os dez pontos-chave para a redução dos sintomas de PTSL, sendo que um deles era a recomendação dos porta-enxertos ‘Lovell’ ou ‘Halford’7. Com os avanços das pesquisas sobre porta-enxertos, a pesquisa americana lançou os porta-enxertos ‘Guardian®’, ‘Sharpe’ e ‘MP-29®’, que são tolerantes ao PTSL8)(9)(10.
No Rio Grande do Sul, nas décadas de 1980 e de 1990, foram desenvolvidos projetos de pesquisa para estudar a morte precoce do pessegueiro, no então Centro Nacional de Pesquisa de Fruteiras de Clima Temperado (CNPFT) em Pelotas-RS, que, em 1993, deu origem a atual Embrapa Clima Temperado. Em relatório de pesquisa da época, a complexidade do problema é resumida da seguinte forma: “Qualquer evento que altere a fisiologia da planta se refletirá na capacidade destas para suportar estresse, tais como: falta ou excesso de água, ataque de nematoides, podas drásticas e doenças, associadas com as ocorrências de diferenças bruscas de temperatura”. Assim, diagnósticos de campo foram realizados para identificar microorganismos associados à síndrome, experimentos para avaliar a reação de porta-enxertos ao estresse hídrico (seca e encharcamento), a nematoides (Meloidogyne spp. e Criconemella xenoplax = Mesocriconema xenoplax), formas de reduzir populações de nematoides e estudos sobre os efeitos de épocas e intensidade de poda sobre a manifestação da morte precoce.
Dentre as principais conclusões obtidas na época, destacam-se: a) a relação direta entre a ocorrência da morte precoce com o nematóide Mesocriconema xenoplax, em níveis a partir de 100 nematoides/100 cm3 de solo; b) a associação entre altas populações de nematoides (M. xenoplax) e baixo pH de solo (entre 3,0 e 5,0) com sintomas de morte precoce; c) em função da inexistência de porta-enxertos resistentes a M. xenoplax e de nematicidas registrados para o pessegueiro no Brasil, foi proposta a rotação de plantas de cobertura nos pomares como forma de reduzir os níveis de infestação de M. xenoplax, utilizando culturas de inverno (azevém, aveias branca ou preta e nabo forrageiro) e de verão (mucuna-anã, sorgo, milheto, milho, feijão-de-porco e feijão-miúdo); d) ramos secos, gemas que não floresceram após a dormência, brotação anormal e morte de plantas foram observadas em 60% das plantas submetidas a condição de seca logo após a colheita dos frutos, no verão anterior a esses sintomas; e) ‘Flordaguard’ foi o porta-enxerto mais promissor, por ser menos suscetível a M. xenoplax11)(12)(13)(14.
Em levantamento de campo realizado entre agosto e outubro de 2007, em pomares de pessegueiro de 30 propriedades rurais da região de Pelotas-RS (as quais representavam 680.000 plantas), foi constatada maior incidência de morte precoce nas cultivares ‘Sensação’, ‘Precocinho’, ‘Granada’ e ‘Jubileu’, com ocorrência e intensidade menores em outras cultivares. Em casos extremos, alguns talhões apresentaram mortalidade de plantas acima de 80%. Nesse trabalho, dois fatores importantes foram apontados como causas da síndrome: o frio intenso e irregular do inverno e o uso de misturas varietais de diversas cultivares copa para a produção dos porta-enxertos (os caroços são resíduo da industrialização do pêssego), o que promovia diferenças entre as plantas15. A grande variabilidade genética dos porta-enxertos nos pomares com morte precoce também foi indicada como problema em outro estudo16, por impedir a identificação de possíveis fontes de resistência a M. xenoplax. Em levantamento nematológico de campo foi comprovado que os níveis populacionais de M. xenoplax e Helicotylenchus sp. foram maiores na rizosfera de plantas com sintomas de morte precoce, comparativamente às coletadas da rizosfera das plantas sem sintomas17. O uso de misturas de caroços de diversas cultivares copa para a produção de porta-enxertos (de pessegueiro, nectarineira ou ameixeira) é um atraso tecnológico que impede avançar, não só no conhecimento, sobretudo no tema morte precoce, como também na melhoria do sistema de produção do pessegueiro na região.
O uso de porta-enxertos tolerantes, adaptados aos problemas relacionados ao solo, é a estratégia mais prática, viável, barata e sustentável ao longo do tempo, comparativamente a outras alternativas de manejo. Adicionalmente, porta-enxertos selecionados e avaliados na região produtora também podem conferir outros ganhos agronômicos às plantas, como produção e qualidade de frutos. Com base nas pesquisas realizadas no Sudeste dos Estados Unidos e considerando as evidências e a realidade da persicultura gaúcha, que não dispõe de uma cultivar de porta-enxerto devidamente testada e adaptada para áreas com histórico de morte precoce, a Embrapa Clima Temperado retomou as pesquisas com porta-enxertos em 2007. O objetivo, no presente trabalho, foi o de relatar os principais avanços técnico-científicos sobre a morte precoce do pessegueiro no Rio Grande do Sul e o foco das pesquisas na busca de porta-enxertos tolerantes e mudas de qualidade.
2. Seleção e avaliação de porta-enxertos com foco na tolerância à morte precoce do pessegueiro
Para abordar o problema da morte precoce do pessegueiro no estado do Rio Grande do Sul, a Embrapa Clima Temperado tem concentrado esforços na busca de porta-enxertos tolerantes a essa síndrome. Além dos objetivos de aumentar a longevidade dos pomares, a produtividade e melhorias na qualidade dos frutos, o trabalho de pesquisa e de difusão dos conhecimentos visa apresentar soluções para mudar o atual sistema de produção de mudas da maioria dos viveiros (denominado sistema convencional), que é considerado um dos principais gargalos técnicos da cultura no estado. Especificamente com porta-enxertos, duas estratégias estão em desenvolvimento e serão descritas a seguir. Para ambas estratégias, plantas matrizes são mantidas na “Coleção Porta-enxerto de Prunus” da Embrapa Clima Temperado, que atualmente é composta de 220 acessos.
2.1. Seleção, resgate e clonagem de porta-enxertos potencialmente tolerantes
Em 2007, a Embrapa Clima Temperado iniciou um trabalho de seleção, resgate e clonagem de porta-enxertos potencialmente tolerantes, em pomares comerciais afetados pela morte precoce. Esta hipótese baseia-se na variabilidade genética entre os porta-enxertos (propagação por sementes de diversas cultivares tipo indústria) e na “pressão de seleção” existente nos pomares, devido à variabilidade física, química e biológica dos solos do estado do Rio Grande do Sul, além dos diferentes níveis de adoção de tecnologias pelos fruticultores, os quais afetam a fisiologia das plantas5. A decisão de investir nessa estratégia também é exemplificada com o lançamento do porta-enxerto ‘Guardian®’, tolerante ao PTSL e que não é resultante de um cruzamento interespecífico, mas sim é um pessegueiro (P. persica), evidenciando ser possível existir fontes de tolerância na espécie8. Foi inicialmente selecionado em seedlings cultivados em área com severo histórico de PTSL na Estação Experimental Musser Farm da Universidade de Clemson, em Seneca, Carolina do Sul, demonstrando que a “pressão de seleção” local é um fator extremamente importante quando se trata de uma síndrome.
O trabalho desenvolvido pela Embrapa Clima Temperado no estado do Rio Grande do Sul tem caráter participativo e inicia-se com uma conversa com o fruticultor, trocando-se informações sobre o histórico da área e do manejo adotado no pomar, bem como esclarecendo as etapas a serem realizadas e os objetivos do trabalho de seleção. No pomar afetado pela morte precoce, são selecionadas plantas assintomáticas vizinhas de plantas sintomáticas ou, preferencialmente, plantas assintomáticas em meio a reboleiras com várias plantas sintomáticas. Nas plantas selecionadas, realiza-se a decepa da copa abaixo do ponto de enxertia para estimular a brotação do porta-enxerto (Figura 1, Fase 1).
A cepa (porta-enxerto) é georreferenciada e recebe um código de identificação, composto pelas letras iniciais do nome do fruticultor, da cultivar copa, ano da seleção e número da planta. Em janeiro, as brotações são coletadas separadamente de cada cepa, para o preparo de estacas herbáceas e enraizamento em câmara de nebulização intermitente, viabilizando a clonagem de cada porta-enxerto de interesse5. Transcorridos 60 dias, as estacas enraizadas são classificadas quanto à qualidade das raízes e as aptas são transplantadas e aclimatadas em citropotes (embalagens de plástico rígido desenvolvidas para mudas de citros, no estado de São Paulo), completando o ciclo bianual de seleção (Figura 1, Fase 2).
Com as visitas realizadas a mais de 50 pomares afetados pela morte precoce no estado do Rio Grande do Sul, foram selecionadas 352 plantas, das quais 218 porta-enxertos brotaram (61,9%). Após resgate das brotações, enraizamento das estacas e aclimatação, exemplares de cada clone são estabelecidos na “Coleção Porta-enxerto de Prunus” da Embrapa Clima Temperado, para formação de plantas matrizes (Figura 1, fase 2). Atualmente, a coleção conta com 146 acessos selecionados por essa metodologia (Tabela 1) e representa o melhor material selecionado nas condições edafoclimáticas do Rio Grande do Sul (regiões de Pelotas, Campanha e Serra Gaúcha), com base nos critérios de eleição dos pomares e seleção das plantas assintomáticas de morte precoce5, considerando-se as condições físicas, químicas e biológicas de solo onde foram selecionadas, que muitas vezes não são as ideais para o pessegueiro e assim constituem “pressão de seleção” dos porta-enxertos.
Na continuidade dos estudos, alguns trabalhos de screening já foram realizados, outros se encontram em andamento ou planejados, para identificar acessos com maior facilidade de propagação vegetativa, tolerância a estresses hídricos (seca e encharcamento), efetividade na absorção e translocação de nutrientes, sanidade vegetal e caracterização de germoplasma. Outra importante e trabalhosa etapa envolve a produção de mudas de pessegueiro enxertadas nas seleções clonais de porta-enxertos e a formação de unidades de observação em áreas com histórico de morte precoce, para verificar a veracidade da hipótese de tolerância.
Como parte integrante desta estratégia, uma das unidades de observação foi estabelecida a campo em 2014, em área com severo histórico de morte precoce (pH = 7,0; matéria orgânica = 2,9%, na camada de 0-20 cm; com teores de fertilidade médios ou altos, porém com limitações físicas, com solo raso e pedregoso), com o uso de mudas produzidas em citropotes da cultivar Granada enxertada sobre diferentes seleções clonais, utilizando ‘Sharpe’ (tolerante à morte precoce) como porta-enxerto controle9)(18. Aos três anos de idade do pomar, verificou-se que os sintomas de morte precoce eram significativamente menores nessas plantas com porta-enxertos clonais selecionados, quando comparado às plantas de área adjacente cujas mudas da cv. Granada foram provenientes do sistema convencional (mudas de raiz nua, com porta-enxertos produzidos a partir de mistura de caroços da indústria de conservas e plantadas no mesmo ano)19. Dos clones testados, seis se destacaram nos primeiros três anos (VEH-AGA-12-04, VEH-AGA-12-06, RB-MAC-12-08, WFM-ESM-07-01, WFM-ESM-07-03 e WFM-ESM-07-04), com menor incidência de sintomas de morte precoce, enquanto o porta-enxerto ‘Sharpe’ não apresentou desempenho satisfatório, com problemas de incompatibilidade de enxertia e baixo vigor. Aos quatro anos de idade do pomar, praticamente todas as plantas sucumbiram com severos sintomas de morte precoce, provavelmente agravada pelos estresses hídricos do verão (falta de água) e inverno (excesso de umidade), aliados as limitações físicas de solo e oscilações de temperatura no inverno. Ainda nessa estratégia, outra unidade de observação foi conduzida durante seis anos (entre 2009 e 2014) em área com histórico de morte precoce e limitações físicas de solo (solo raso e pedregoso), explorando a variabilidade genética de diferentes fontes de sementes de umezeiro (P. mume) como porta-enxerto das cultivares BRS Bonão, Esmeralda, Jade e BRS Âmbar, com o objetivo de seleção20. Foi constatada significativa variabilidade genética do umezeiro quando propagado por sementes, manifestada principalmente nas diferenças de vigor, além do elevado número de plantas com incompatibilidade de enxertia. Entretanto, as melhores plantas apresentaram boa rusticidade, tolerância à seca e ao frio, além da ausência de sintomas de morte precoce, o que permitiu a seleção e clonagem de 12 acessos de umezeiro (Tabela 1, ciclo 2014/2015).
2.2. Avaliações de espécies, híbridos interespecíficos e cultivares de Prunus spp. como porta-enxerto
A partir dos resultados promissores obtidos com o porta-enxerto ‘Flordaguard’13, foram instaladas duas unidades de observação em 2010 (uma delas em área com histórico de morte precoce) com a cv. Maciel enxertada sobre ‘Aldrighi’, ‘Capdeboscq’, ‘Okinawa’, ‘Nemaguard’ (P. persica) e ‘Flordaguard’ (sexta geração do cruzamento entre ‘Chico 11’ e Prunus davidiana). Os porta-enxertos foram propagados por sementes coletadas de plantas matrizes da Frutplan Mudas Ltda. (Pelotas-RS) e as mudas foram produzidas em embalagens com substrato. Após seis anos de avaliações, nenhum sintoma de morte precoce foi observado em ambos os pomares experimentais. Entretanto, em área adjacente ao pomar experimental com histórico de morte precoce, um lote de plantas também plantado em 2010 (porém com mudas adquiridas no comércio local, de raiz nua da cv. Maciel, com porta-enxertos formados de misturas de caroços da indústria conserveira), apresentou 37% de mortalidade de plantas em apenas três anos, algumas, inclusive, devido à morte precoce do pessegueiro21. Esse estudo reforça a premissa de que, além do conhecimento da identidade genética do porta-enxerto, a produção das mudas em embalagens com substrato tem importância decisiva na sobrevivência inicial a campo, devido à manutenção do torrão que envolve as raízes, a abundante quantidade de radicelas e sua preservação no transplantio (ver item 3)21.
Ao testar outras espécies, híbridos interespecíficos e cultivares de Prunus spp. como porta-enxerto, objetiva-se avaliar parte da variabilidade genética do gênero, disponível na Embrapa Clima Temperado, como forma de aumentar a amplitude dos efeitos da interação entre copa/porta-enxerto e o ambiente. O uso dessa estratégia é exemplificado em diversas plantas frutíferas (citros, pereira, macieira, videira, maracujazeiro) e olerícolas (das famílias Solanaceae e Cucurbitaceae) em que são utilizadas, com sucesso, outras espécies como porta-enxerto para superação de adversidades de solo. Os porta-enxertos ‘Sharpe’ (‘Chickasaw’ (P. angustifolia Marsh.) x Prunus spp.) e ‘MP-29’ (‘Edible Sloe’ x SL0014 (P. persica)) são exemplos de que outras espécies e híbridos interespecíficos podem ser fontes de tolerância ao PTSL9)(10.
A Embrapa Clima Temperado liderou dois amplos projetos sobre porta-enxerto de Prunus (entre 2009 e 2018) em que foram produzidas mudas de 11 cultivares copa de pessegueiro, ameixeira e nectarineira enxertadas sobre 26 acessos propagados por enraizamento de estacas herbáceas, que totalizaram 230 combinações copa/porta-enxerto22. Também foram produzidas mudas por meio de estacas autoenraizadas das 11 cultivares copa, para constituírem os tratamentos controle. As mudas formaram 20 unidades de observação em 2014, distribuídas nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Minas Gerais e Mato Grosso do Sul, as quais são conduzidas por diversas instituições parceiras, objetivando a recomendação de porta-enxertos em nível microrregional. Dentre as unidades de observação instaladas, duas delas foram estabelecidas em áreas com histórico de morte precoce do pessegueiro no município de Pelotas, com as cultivares copa Jade e Maciel. Os porta-enxertos testados e principais características de interesse são apresentados na Tabela 2.
Com os resultados preliminares23 e os obtidos nos primeiros seis anos de avaliação (não publicados), pode-se destacar que, dentre os acessos testados como porta-enxerto, ‘De Guia’ e ‘Flordaguard’ se destacam. Além da ausência de sintomas de morte precoce, esses dois porta-enxertos induzem elevado vigor às plantas e produção maior do que os tradicionais ‘Aldrighi’ e ‘Capdeboscq’. As plantas autoenraizadas de ‘Maciel’ e de ‘Jade’ são bastante vigorosas, produtivas, apresentam desempenho agronômico similar aos melhores porta-enxertos testados e não apresentam quaisquer sintomas de morte precoce, o que pode ser uma alternativa ao enfrentamento da síndrome. Como desvantagem, as plantas autoenraizadas dessas duas cultivares tendem a apresentar crescimento mais vertical e maior produção de ramos ladrões, o que dificulta a formação das plantas em formato de “taça”. Salienta-se que a possibilidade do uso de mudas autoenraizadas deve ser investigada para cada cultivar, levando em conta as condições edafoclimáticas da microrregião.
Conforme já destacado, a morte precoce é uma síndrome complexa, especialmente devido à interação simultânea de vários fatores no campo (climáticos, edáficos, biológicos e de manejo por ação humana), cuja combinação predispõe as plantas mais vulneráveis. Os sintomas de morte precoce também podem ser facilmente confundidos com os causados por umidade excessiva do solo, aliado com as baixas temperaturas do inverno. No campo, não é possível isolar cada um desses fatores para identificar o agente causal, logo, não há uma metodologia para distinguir os sintomas de morte precoce daqueles causados exclusivamente por encharcamento de solo. Independentemente da real causa e sintomatologia, os prejuízos e a mortalidade de plantas só serão reduzidos com a identificação de porta-enxertos tolerantes e de sua preservação genética, contempladas em mudas de elevada qualidade genética, morfológica e sanitária. Espécies, cultivares e híbridos interespecíficos do grupo das ameixeiras são mais tolerantes ao excesso de umidade no solo24)(25, entretanto, quando utilizadas como porta-enxerto de pessegueiro, apresentam incompatibilidade de enxertia, o que impede seu uso. Nas unidades de observação conduzidas pela Embrapa Clima Temperado desde 2014, observou-se que diversos acessos do grupo das ameixeiras ou híbridos interespecíficos (‘Marianna 2624’, ‘Mirabolano 29C’, ‘Genovesa’, ‘Santa Rosa’, ‘Ishtara’, ‘GxN.9’ e P. mandschurica) apresentam incompatibilidade de enxertia com o pessegueiro, o que não permitiu obter maiores avanços nessa área26)(27.
3. Considerações sobre sistemas de produção de mudas e métodos de propagação do porta-enxerto
Conforme já mencionado, o sistema convencional de produção de mudas realizado em condições de campo, em que os porta-enxertos são formados de misturas de caroços (resíduos coletados nas indústrias de conservas), ainda é adotado na maioria dos viveiros do Rio Grande do Sul28. Após a enxertia e crescimento no verão e outono, as mudas produzidas nesse sistema são comercializadas no inverno na forma de raiz nua e, em geral, apresentam sistema radicular fraco e com poucas radicelas, o que dificulta o pegamento e o crescimento inicial a campo em função da menor quantidade de carboidratos não estruturais contidos nas raízes (Figura 2-A, sistema convencional). Com as diversas situações presenciadas nos pomares afetados pela morte precoce, é possível afirmar que existe relação direta da síndrome com o uso de mudas de baixa qualidade e com porta-enxertos com identidade genética desconhecida, devido à variabilidade genética dos caroços da indústria conserveira. Mudas de baixa qualidade, provenientes desse sistema convencional, ainda são comumente adquiridas pelos fruticultores no Rio Grande do Sul, especialmente pelos produtores de pêssego tipo indústria da região de Pelotas que, devido à necessidade de redução dos custos de produção para se manterem na atividade, tendem a utilizar menos tecnologia. Em julho de 2019, mudas de pessegueiro produzidas neste sistema foram comercializadas a R$ 1,80 a unidade (≈ US$ 0,48). Logo, a muda de pessegueiro ainda é vista como custo, e não como investimento.
É possível constatar que a severidade da morte precoce tem aumentado nos últimos anos, em comparação aos anos 1980, o que pode ter relação com a disponibilidade de cultivares copa tipo indústria de menor exigência em frio e de ciclo mais curto, além da oferta de maior número de cultivares. Com a manutenção do sistema de produção de mudas, que utiliza caroços provenientes da indústria conserveira para produzir porta-enxertos, além da maior heterogeneidade genética, os caroços também apresentarão menor capacidade de germinação e menor adaptação para uso como porta-enxerto, pois, se utilizado para esta finalidade, terão de conviver com as baixas temperaturas de solo combinadas com excesso de umidade, no inverno. Além disso, no verão, déficits hídricos são muito comuns na região de Pelotas, o que pode levar ao menor acúmulo de reserva de carboidratos na planta, após o período de colheita.
Um dos principais motivos para a realização da enxertia é o uso de um porta-enxerto com características adequadas e que suporte as adversidades do solo em que será cultivado, premissa que não está sendo atendida com o uso de mudas do sistema convencional (Figura 2-A). Além disso, mudas enxertadas de qualidade exigem a preservação da identidade genética também do porta-enxerto, e não somente da cultivar copa. A preservação da identidade genética do porta-enxerto pode ser obtida, basicamente, de duas formas: a) levando-se a seleção de porta-enxerto à homozigose (normalmente até a sexta geração), através de sucessivas autofecundações, e propagação por sementes coletadas de plantas matrizes; b) adoção de um método de propagação vegetativa, como estaquia ou micropropagação. Pela redução significativa do tempo necessário para atingir esse objetivo, facilidade de execução e domínio da técnica, a segunda opção tem sido adotada na Embrapa Clima Temperado para estudos com porta-enxertos, por meio da propagação por estacas herbáceas sob câmara de nebulização intermitente28.
Independentemente da estratégia adotada (introdução, seleção, avaliação de germoplasma existente ou hibridação), a adoção de porta-enxertos com características desejáveis deve ser acompanhada de um eficiente sistema de propagação e de produção de mudas, no qual a disponibilidade de plantas matrizes é a primeira e fundamental etapa. A formação de plantas matrizes para a finalidade específica de fornecimento de ramos e seu manejo com podas drásticas (agosto) para estimular intensa e vigorosa brotação (Figura 2-B1), viabilizam o preparo de estacas herbáceas ideais para o enraizamento adventício, no verão. A adequada programação da câmara de nebulização intermitente, o uso de ácido indolbutírico (AIB), substrato e recipientes adequados ao enraizamento, permitem a formação de grande quantidade de raízes adventícias (Figura 2-B2), característica fundamental, pois o número de raízes primárias que a planta terá é definido durante o período de enraizamento (normalmente em 60 dias). Por fim, o uso de substratos, embalagens plásticas para crescimento e sistema de fertirrigação localizada (Figura 2-B3) permite a produção de mudas com excelente padrão morfológico, tanto da parte aérea como do sistema radicular, com abundante quantidade de radicelas (Figura 2-B4). Cabe aqui destacar que alguns viveiros no Brasil têm procurado elevar o padrão das mudas de frutíferas de caroço, com formação de matrizeiro próprio de cultivares de porta-enxerto, produção de mudas em embalagens ou ainda em sistema semi-hidropônico de produção em viveiro a céu aberto (Frutplan Mudas Ltda.), onde as mudas são produzidas em bancadas preenchidas com turfa e equipadas com fertirrigação.
4. Outros fatores envolvidos com a morte precoce do pessegueiro
Um fator comumente questionado é o papel da fertilidade do solo na manifestação dos sintomas de morte precoce, com a hipótese de que a morte precoce só ocorre em solos com baixos níveis de fertilidade e pH. Para estudar esse aspecto, foi realizado um estudo com a amostragem da rizosfera (0-20 cm de profundidade) sob a copa de 54 pares de plantas localizadas lado a lado (sintomáticas x assintomáticas), em nove pomares comerciais de pessegueiro dos municípios de Pelotas e Canguçu. Os resultados evidenciaram que a maioria dos pomares estudados apresenta alguma deficiência química na fertilidade do solo, como baixos teores de matéria orgânica (< 2%), baixos níveis de pH e altos níveis de alumínio, sendo que em 84,3% das amostras havia necessidade de realizar calagem, para satisfazer a recomendação para a cultura do pessegueiro, segundo o manual de adubação e de calagem para os estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina29. Embora a fertilidade do solo, na maioria dos pomares amostrados, estivesse aquém das classes recomendadas para a cultura do pessegueiro, a ocorrência da morte precoce não apresentou relação direta com os atributos químicos de fertilidade do solo30. Os resultados desse trabalho reforçaram hipóteses de que outros fatores, como os aspectos físicos do solo e o uso de misturas varietais de cultivares copa como porta-enxerto, possam estar diretamente envolvidos na ocorrência de morte precoce.
Com as situações presenciadas a campo, observa-se que existe relação da morte precoce com as características físicas do solo, como teores elevados de areia (principalmente areia grossa), pedregosidade, solos rasos e camadas subsuperficiais impermeáveis. Solos com estas características, e na maioria das vezes não subsolados, são mais suscetíveis ao déficit hídrico no verão, bem como ao encharcamento pelo excesso de chuvas no inverno, o que interfere na fisiologia do pessegueiro e compromete seu desempenho. O capim-natal ou capim-favorito (Rhynchelytrum repens) ocorre naturalmente em beiras de estradas e é conhecido por ser planta indicadora de solos secos, pedregosos e com limitações físicas. Diversos pomares de pessegueiro naturalmente infestados com esta gramínea, na região de Pelotas, foram diagnosticados com severos sintomas de morte precoce. Logo, essas áreas devem ser evitadas para o cultivo do pessegueiro.
Até a década de 1980, o preparo de camalhões com pequeno desnível (normalmente 0,6%) para o plantio das mudas era uma prática bastante comum na implantação de pomares na região de Pelotas, o que reduzia a erosão, facilitava a drenagem superficial e elevava o sistema radicular dos pessegueiros, reduzindo danos por encharcamento. Entretanto, com a redução da disponibilidade da mão-de-obra e menor lucratividade da atividade, a prática de construção de camalhões para o cultivo do pessegueiro raramente é adotada na atualidade, o que pode estar contribuindo para a mortalidade de plantas.
Outro aspecto também investigado nos pomares de pessegueiro da região de Pelotas foi a nutrição. A inadequada nutrição31 e alta relação C/N32 são citados como fatores que favorecem a ocorrência de PTSL. Amostras de cascas das pernadas de pessegueiros sintomáticos e assintomáticos da morte-precoce, coletadas no início da brotação (meados de agosto a meados de setembro), foram analisadas quimicamente (N, P, K, Ca, Mg, Fe, Mn, Zn, Cu, B, C e C/N). Constatou-se que pessegueiros com sintomas visíveis de morte-precoce apresentaram maiores (e não menores, como esperado) teores de N, P e K e menor relação C/N na casca das pernadas principais33. Resultados similares34) foram obtidos em pomares da Carolina do Sul (EUA) afetados pela PTSL, onde as plantas sintomáticas apresentaram maiores teores de N e relação C/N significativamente menor, comparativamente às plantas sadias.
Os teores de amido nas gemas das plantas com sintomas de morte-precoce são reduzidos abruptamente no período de pré-florescimento, indicando a antecipação na mobilização destas reservas de carboidrato para o fornecimento de energia e a saída da dormência16. Segundo os autores, ocorre redução na concentração de açúcares solúveis totais nos tecidos das gemas das plantas com sintomas no período de pré-florescimento, devido, principalmente, à degradação da sacarose e do sorbitol para a retomada do crescimento das gemas. A atividade da peroxidase nos ramos das plantas sintomáticas ao longo do período de repouso indicaria uma condição de estresse fisiológico que estaria repercutindo no baixo potencial de brotação e floração das gemas. Nessas plantas sintomáticas foram verificadas alterações na conexão vascular, como a falta de continuidade dos feixes vasculares, a maior intensidade da coloração e o escurecimento acentuado do lenho, além da maior atividade da enzima peroxidase nos tecidos das gemas e dos ramos durante o inverno, em relação às plantas sem sintomas da síndrome17.
Quando o pessegueiro está com reserva muito baixa de carboidrato, pode acabar usando a prunasina existente na casca das plantas, que é um glicosídeo cianogênico, como fonte de carboidrato. O produto da degradação da prunasina é o cianeto, substância altamente tóxica, que é inibidora da respiração celular e das reações enzimáticas de oxirredução das células. Portanto, o acúmulo de cianetos acaba necrosando rapidamente o tecido da casca, especialmente no tronco e nas pernadas da planta afetada pela morte precoce. Assim, provavelmente os fatores bióticos e abióticos envolvidos com a morte precoce contribuem para a maior degradação da prunasina em cianeto4. Áreas de replantio com pessegueiro apresentam maiores níveis de ácido hidrocianídrico (HCN), o que compromete o crescimento das plantas35.
Além dos fatores já mencionados, a fisiologia do pessegueiro também é influenciada pelas condições climáticas que, quando não favoráveis, tornam as plantas mais vulneráveis a ocorrência da morte precoce. A intensificação da morte precoce, no ano de 2007, foi atribuída ao frio intenso ocorrido naquele ano, com 589 horas de frio (≤ 7,2 °C) entre maio e julho, sendo que a média anual para o período de 1984 a 2006 foi de 345 horas de frio. Além disso, a irregularidade do frio no inverno também foi indicada como fator contribuinte, com amplitudes térmicas de até 24 °C em apenas três dias15. Pessegueiros jovens (de três ou quatro anos) são mais vulneráveis do que pessegueiros adultos (com quinze anos) às injúrias provocadas pelo frio, pois apresentam pouco acúmulo de amido no outono e o conteúdo de açúcares no tronco principal permanece baixo, durante o inverno36.
Na região de Pelotas, o pessegueiro normalmente é cultivado sem irrigação. Nos poucos pomares que possuem sistema de irrigação, raramente o mesmo é utilizado em pós-colheita, que é justamente o período em que as temperaturas e a evapotranspiração são mais elevadas, o que provoca estresse hídrico nas plantas e prejudica a absorção de nutrientes. A disponibilidade adequada de água no solo é muito importante para que ocorra a absorção de nutrientes de maneira satisfatória e permita o adequado desempenho fotossintético e metabólico na planta, resultando em bom acúmulo de carboidratos após a colheita, suficiente para preparar a planta para o período de dormência e garantir boa produção na próxima safra.
Em estudo de uma série de dados climáticos da Embrapa Clima Temperado do período 2005 a 2015, foi demonstrado que o período com menor armazenamento de água no solo ocorre entre a metade do mês de dezembro e o fim do mês de janeiro, quando o solo encontra-se com aproximadamente 60% de sua capacidade (considerando a capacidade de água disponível CAD = 100 mm). Durante os meses de novembro, fevereiro, março e abril, solos de CAD 100 encontram-se com armazenamento entre 60% e 80% de sua capacidade, enquanto que, de maio a outubro, esses solos ficam com capacidade de armazenamento de água acima de 80%. Segundo os autores, a variação da evapotranspiração de referência (ETP) é grande ao longo do ano, desde 40 mm por mês (entre maio e agosto) até acima de 100 mm por mês (entre novembro e fevereiro), sendo este o principal responsável pelas alterações na curva de disponibilidade de água no solo. Ainda, segundo os autores, a média total anual de chuva para o período estudado foi de 1.341 mm na Sede da Embrapa Clima Temperado, sendo o mês de abril o menos chuvoso (76 mm) e setembro o mais chuvoso (159 mm)37.
Em síntese, a síndrome da morte precoce é um complexo problema devido às variações climáticas, à heterogeneidade dos solos das áreas mais afetadas, especialmente com relação às características físicas. Mesmo em pequenas propriedades rurais (menores do que 30 hectares), o relevo é diverso e ocorrem significativas alterações das propriedades físicas do solo (profundidade, teores de areia e pedregosidade, camadas subsuperficiais impermeáveis, existência de pedras)38. Esses aspectos interferem na capacidade de armazenamento de água do solo entre diferentes talhões que, aliado à qualidade das mudas, principalmente do sistema radicular, torna-os mais ou menos suscetíveis a estresses e, consequentemente, aos sintomas de morte precoce que se manifestarão visualmente no inverno.
Com os estudos realizados é possível melhorar significativamente o padrão morfológico das mudas de pessegueiro adotando-se um sistema alternativo de produção de mudas (Figura 2-B), adaptando-se conhecimentos técnicos empregados em outras espécies frutíferas. Com as unidades de observação estabelecidas pela Embrapa Clima Temperado nos últimos 10 anos, constata-se que mudas do sistema alternativo (Figura 2-B) possibilitam adequado estabelecimento e rápido crescimento inicial, em solo adequado. Se as condições físicas de solo não forem restritivas, mudas produzidas em embalagens e com abundante quantidade de radicelas dificilmente apresentem problemas de morte precoce21. Entretanto, em situações com solos rasos, com areia grossa, camada subsuperficial impermeável, ainda que tenha relevo favorável para facilitar a drenagem superficial, o uso de mudas em embalagens com adequado padrão morfológico não é suficiente para impedir morte de plantas e os sintomas da morte precoce.
5. Considerações finais
Transcorridos mais de 40 anos desde a primeira constatação, a morte precoce do pessegueiro ainda provoca prejuízos econômicos significativos aos produtores de pêssego no estado do Rio Grande do Sul, porém tem maior intensidade nos pomares das regiões de Pelotas e da Campanha Gaúcha. A síndrome é complexa devido à ocorrência simultânea de diversos fatores ― alguns dos quais não são controláveis ― que interagem nos pomares, o que provoca danos e até morte nas plantas mais vulneráveis, normalmente naquelas originadas de mudas de baixa qualidade e com sistema radicular inadequado. A redução dos prejuízos devido à morte precoce certamente envolverá um porta-enxerto tolerante produzido em sistema de produção de mudas de alta qualidade morfológica, genética e sanitária. Avanços técnicos foram obtidos com a clonagem de porta-enxertos por estacas herbáceas em câmara de nebulização intermitente a partir de plantas matrizes para esta finalidade que, combinados com sistema de produção de mudas em embalagens e fertirrigação, possibilitam a obtenção de mudas com excelente padrão morfológico. A busca por porta-enxertos tolerantes à morte precoce parece estar também ligada à tolerância aos estresses hídricos (déficit hídrico no verão e excesso de umidade no inverno), que historicamente ocorrem nas regiões gaúchas mais afetadas pela morte precoce. O “bom porta-enxerto” também deverá ser de fácil propagação vegetativa, com abundante produção de radicelas, adequado vigor, compatível com o pessegueiro e que induza satisfatória produção e qualidade aos frutos. Os resultados de pesquisa indicam as cultivares ‘Flordaguard’ e ‘De Guia’ como os mais promissores porta-enxertos para áreas com histórico de morte precoce, desde que o local não apresente limitações físicas restritivas ao cultivo do pessegueiro.