1. Introdução
O Brasil é considerado a nação com a maior megadiversidade do mundo1. Essa diversidade é resultado de interações milenares de fatores sociais e ambientais. Porém, essa coevolução está sendo ameaçada por um modelo de globalização, derivado de um pensamento colonial, que visa implantar um único modo de produzir, se alimentar, comercializar, validar o conhecimento e se relacionar com a natureza: a globalização hegemônica2.
Este cenário apresentado acarreta impactos severos nas espécies arbóreas frutíferas nativas do bioma Mata Atlântica, que intitulamos neste trabalho de “frutas nativas”. Isso ocorre porque elas são invisíveis aos olhos dos que promovem tal globalização. Como resultado, tanto o processo coevolutivo quanto as árvores são prejudicados. Em seu lugar emergem áreas de monoculturas vinculadas à revolução verde e aos impérios alimentares3.
Por outro lado, este modelo de globalização não é a única maneira de existir. Outros mundos não só são possíveis como também existem. Estes outros mundos são por essência diversos e se unem sob outra forma de articulação: a globalização contra-hegemônica2. Esse é o caso da agroecologia, que, através de um olhar complexo para as dimensões ecológico-produtiva, socioeconômica e sociopolítica, busca criar relações mais justas entre os seres humanos e a natureza4. Nesse contexto, as frutas nativas, e seu processo de domesticação, são valorizadas e promovidas3.
É dentro deste cenário que esta pesquisa emerge. Seu objetivo é identificar as principais estratégias de multiplicação das frutas nativas e propor um caminho para estimular sua promoção. O público foi formado por seis grupos de agricultores do Núcleo Luta Camponesa, enquanto os procedimentos metodológicos levaram em conta os princípios da pesquisa-ação5.
Cabe destacar que este estudo faz parte de um conjunto de publicações, ações de extensão e pesquisa vinculadas às frutas nativas, realizadas desde 2014 pelo Laboratório Vivan de Sistemas Agroflorestais da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), o Núcleo Luta Camponesa da Rede Ecovida de Agroecologia e o Centro de Desenvolvimento Sustentável e Capacitação em Agroecologia (CEAGRO), especialmente a dissertação de Silva6.
2. Metodologia
2.1 Os atores sociais e seu contexto
Os atores sociais deste trabalho são agricultores do Núcleo Luta Camponesa, vinculado à Rede Ecovida de Agroecologia. Fundado em 2012, seu público é de 220 famílias, desse total, 53 famílias e seis agroindústrias são certificadas como agroecológicas. O Núcleo é influenciado pelo Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o Movimento de Pequenos Agricultores (MPA), além de estar inserido em dois Territórios da Cidadania do estado do Paraná: Cantuquiriguaçu e o Paraná Centro. A Floresta Ombrófila Mista, um dos ecossistemas do bioma Mata Atlântica, é a vegetação predominante na região7. Deste contexto maior, seis grupos formados por 117 pessoas de 33 famílias foram selecionados. Observa-se na tabela 1 o nome dos grupos e os municípios dos que eles fazem parte e, na figura 1, a classificação vegetal dos municípios.
2.2 Método
O método foi elaborado com base nos princípios da pesquisa-ação, conforme Thiollent5, sendo composto por quatro fases complementares.
A primeira buscou problematizar a importância das frutas nativas e indicar as espécies prioritárias, sendo dividida em dois momentos: a observação direta de atividades dos grupos e a realização de seis oficinas, uma em cada grupo, onde, através da ferramenta matriz de priorização8, foram listadas quatro espécies de frutas nativas prioritárias por grupo.
Na segunda fase foi realizada a caracterização socioambiental das espécies prioritárias através da ferramenta matriz estrela ou gráfico de radar9. Em seguida foram caracterizadas árvores apontadas como matrizes pelos grupos por meio de entrevistas semi-estruturadas, conforme Geilfus8, sendo esse procedimento a terceira fase da pesquisa. Na quarta fase, identificou-se as paisagens mais adequadas para multiplicar as frutas nativas através da realização de observação direta e conversa com atores chaves. Em Silva e outros10, há o detalhamento dos procedimentos citados.
3. Resultados e discussão
3.1 Quais são as frutas nativas indicadas como prioritárias?
Cada grupo dessa pesquisa indicou quatro espécies como prioritárias para promover um processo de domesticação, por meio da ferramenta matriz de priorização8).
Como resultado, sete espécies foram selecionadas: i) guabiroba (Campomanesia xanthocarpa O. Berg); ii) pitanga (Eugenia uniflora L.); iii) uvaia (Eugenia pyriformis Cambess); iv) cereja (Eugenia involucrata DC.); v) guabiju, (Myrcianthes pungens O. Berg); vi) araçá vermelho (Psidium longipetiolatum D. Legrand); e vii) ingá-feijão (Ingá marginata Willd).
Também foi construída, por grupo, uma escala de importância das frutas nativas prioritárias. Tal classificação pode ser observada na tabela 2.
No total, foram identificados 1834 indivíduos dessas espécies nos agroecossistemas das famílias que fizeram parte dessa pesquisa10. Sua localização é heterogênea, mas as principais paisagens onde elas foram encontradas são tema do próximo item.
3.2 Onde estão as frutas nativas no Núcleo Luta Camponesa e como promovê-las?
Em virtude da floresta ser a fitofisionomia original, predominante no local onde os grupos estão inseridos, assim como o local de origem das frutas nativas, acredita-se que as paisagens indicadas para o plantio destas espécies sejam os Sistemas Agroflorestais ou SAFs.
Estes sistemas englobam vários tipos de arranjos. O pesquisador e extensionista Jorge Luiz Vivan11 articulou uma proposta de organização dos SAFs. Ele argumenta que o conhecimento humano responsável pela construção dos SAFs se compara a uma árvore. Os troncos e as raízes maiores são os princípios, as folhas, ramos e raízes finas são os arranjos (manejo e fisionomia) dos sistemas. Estas partes menores se renovam de tempos em tempos, influenciadas pelo ambiente externo, mas os princípios seguem os mesmos. Já os frutos carregam em si toda a informação genética, os princípios e as adaptações de cada tempo. Caso não sejam consumidos, caem e apodrecem ao lado da árvore. Se consumidos, espalham a informação para outros contextos, criando novos ramos e promovendo a evolução e adaptação dos SAFs no tempo e espaço.
Durante a convivência com os atores sociais desta pesquisa, identificou-se que as frutas nativas estão inseridas, principalmente, em três tipos de SAFs ou, a partir da perspectiva de Vivan11, em três ramos: i) quintais agroflorestais; ii) potreiros; e iii) agroflorestação dos sistemas de produção de base ecológica.
Os quintais agroflorestais (figura 2) são áreas ao redor das moradias das famílias, via de regra manejadas pelas mulheres.
Os quintais são sistemas complexos com alta diversidade de espécies de ciclo curto, médio e longo. Em vários contextos são integrados com a criação de pequenos animais (porcos e galinhas). Os quintais são fonte de plantas de uso medicinal, energia térmica (lenha), ornamentação, ingredientes para rituais religiosos e afins. Eles são responsáveis pela soberania e segurança alimentar da maioria da população mundial que reside nas áreas rurais, além de ser um “banco vivo” de sementes e material propagativo12.
Identificou-se como estratégia para aumentar o número de indivíduos de frutas nativas nos quintais o plantio, em forma de sementes e mudas, nos espaços com densidade menor de árvores. Soma-se a isso a possibilidade de podar ou substituir indivíduos de outras espécies por frutas nativas.
O terceiro ramo são os potreiros (figura 3). Eles são agroecossistemas que mesclam o elemento arbóreo com gramíneas (capim) e animais, geralmente bovinos. Os frutos oriundos das árvores dos porteiros são utilizados, historicamente, na alimentação dos animais e dos seres humanos12. Assim como os quintais, têm papel central na conservação da sociobiodiversidade13. Sua dimensão é heterogênea, em alguns contextos ocupam uma grande área, em outros, como identificado nesta pesquisa, são áreas menores, geralmente ao redor das casas e com aproximadamente dois hectares.
Para multiplicar as frutas nativas nos potreiros, é necessário se atentar à influência dos animais. Segundo relatos dos agricultores, até o tronco da árvore possuir o mesmo diâmetro de uma garrafa com capacidade de um litro, o animal pode quebrar a árvore ao se coçar nela. Deste modo, além de analisar o modo de plantio, é necessário avaliar técnicas para evitar os impactos dos animais. Uma alternativa é rodear as árvores com fios elétricos ou com grimpa de pinheiro.
O terceiro ramo é nomeado de multiplicação das frutas de agroflorestação dos agroecossistemas de base ecológica (figura 4).
Na figura em questão, à esquerda, está em destaque uma linha de bananeiras (Musa sp.) que, além de produzir frutos, gera matéria orgânica para cobrir o solo na linha de árvore que está à direita, indicada pelas “flechas”. Nessa linha foram plantadas mudas de laranja (Citrus sp.) e de araçá vermelho, uma das frutas nativas indicadas como prioritárias pelo grupo.
Cabe destacar que a descrição de tal ramo é influenciada por uma conversa com Alvir Longhi, colaborador do CETAP (Centro de Tecnologias Alternativas Populares) e membro da Cadeia das Frutas Nativas do Rio Grande do Sul, durante uma atividade organizada pela ANA (Articulação Nacional de Agroecologia).
A agroflorestação dos sistemas produtivos abarca diversos arranjos, mas sua característica central é a inserção do elemento arbóreo nos sistemas já existentes nas unidades familiares, incluindo as frutas nativas. Este movimento de agroflorestação vem ganhando destaque junto aos grupos de agricultores vinculados ao Núcleo Luta Camponesa. Neste movimento, busca-se trazer os princípios dos SAFs para os locais onde as famílias já trabalham, em detrimento da criação de uma nova área.
Nesta estratégia, as frutas nativas podem ser inseridas em linhas (como na figura 4) ou distribuídas de forma dispersa nos agroecossistemas existentes. Também é possível plantar espécies com elevada capacidade de crescimento e, preferencialmente, com boa capacidade de rebrota em alta densidade. Estes indivíduos são podados sazonalmente e sua biomassa promove a fertilidade do sistema, como acontece no cultivo em aléias14. Porém, em tal estratégia as frutas nativas não são os indivíduos podados, mas podem se beneficiar da matéria orgânica gerada. Outra opção é o plantio de forma pouco adensada na produção de grãos, nas hortas ou nos pomares, enfim, em qualquer paisagem produtiva dos agroecossistemas. Na medida em que tais árvores se desenvolvem, é possível manejar sua copa e altura de tal forma que convivam em sinergia com as demais espécies.
3.3 Aprendizados para multiplicação em outros territórios
A partir da descrição das estratégias utilizadas pelos grupos do Núcleo Luta Camponesa no plantio das frutas nativas, assim como as paisagens onde elas estão inseridas, é possível fazer uma extrapolação do processo para outros territórios. Longe de ser uma receita pronta, pode-se apontar o seguinte guia para problematizar a multiplicação das frutas nativas.
i) Resgatar olhares para as frutas nativas: através da construção de ambientes de aprendizagem que englobam agricultores, técnicos, pesquisadores, consumidores e afins, deve-se problematizar a invisibilidade e desqualificação das frutas nativas, bem como resgatar e promover os saberes e fazeres vinculados as espécies.
ii) Partir do que existe nos agroecossistemas: após fortalecer os olhares para as frutas nativas, é interessante partir do que existe nos agroecossistemas. Realizar estimativas de quantidades de indivíduos e quais são as espécies prioritárias é relevante. Neste diagnóstico, também é importante caracterizar e identificar plantas apontadas como boas matrizes. Multiplicar e monitorar estas matrizes, quando possível, é uma ação pertinente.
iii) Trocar sementes e mudas com agricultores de outros contextos: em conjunto com a valorização do que já existe e a caracterização do tipo de árvore ideal, deve-se trocar sementes e mudas de árvores classificadas como boas matrizes de outros contextos. É relevante acompanhar os resultados dessa troca. Caso os novos indivíduos tenham características interessantes, podem ser utilizados como matrizes. Note-se que nesse processo de troca, é indicada sua elaboração de forma participativa e articulada com as demais entidades que atuem na região.
iv) Plantar em paisagens que os agricultores manejam: em relação ao plantio, é essencial plantar em paisagens onde os agricultores trabalham. Acredita-se que, em virtude da grande distribuição dos quintais agroflorestais e dos potreiros pelo mundo, estas duas paisagens são a porta de entrada para a multiplicação das frutas nativas. Após essa etapa, é relevante estimular a “agroflorestação” dos demais espaços produtivos, sobretudo nos locais onde a fitofisionomia original é a floresta.
4. Conclusões
Os grupos agroecológicos desta pesquisa possuem conhecimentos e indivíduos suficientes para iniciar o resgate e a promoção das frutas nativas. Nesse processo, os SAFs, sobretudo os quintais, os potreiros e o movimento de agroflorestação são arranjos chaves.
A partir da experiência analisada neste trabalho, pode-se indicar que i) resgatar olhares para as frutas nativas; ii) partir do que existe; iii) trocar sementes e mudas; e iv) plantar em paisagens que os agricultores manejam são ações com potencial para inspirar o resgate e a multiplicação de tais espécies em outros territórios.
Todavia, esta proposta de multiplicação carece de ações em outras dimensões: articular canais de comercialização que aproximem agricultores de consumidores como as feiras; estruturar espaços de processamento e regularizá-los, a fim de gerar novos produtos e aumentar os canais de comercialização; realizar novas pesquisas e fortalecer a assessoria técnica para, com os agricultores, resolver as demandas e os problemas que emergem são situações que precisam caminhar junto com o plantio e o manejo das frutas nativas.