1. Introdução
Os agricultores familiares vêm sendo expostos há pelo menos cinco décadas, de diferentes maneiras e intensidades, aos insumos da agricultura convencional, entre eles às sementes comerciais. Em decorrência desse processo, há tempos se discute na literatura seus efeitos sobre a erosão e a perda de diversidade genética dos cultivos agrícolas1)(2. Muitos autores já se perguntaram se a permanência dessas variedades nas comunidades rurais seria sinônimo de atraso ou isolamento, entendidos como barreiras para as oportunidades de acesso a variedades comerciais3)(4)(5. Outros argumentaram, ainda, que as variedades crioulas estariam fadadas ao desaparecimento pela total substituição por cultivares comerciais6 visto que componentes importantes da agrobiodiversidade estão sendo perdidos a taxas alarmantes7 ao mesmo tempo em que os esforços para sua conservação são ainda insuficientes8. Em resposta a esse processo, movimentos no Brasil e no mundo se organizam para defender e recuperar essas sementes9)(10)(11 tendo como ponto de partida os sistemas locais de sementes dos próprios agricultores12. Além disso, comunidades têm aumentado o uso de variedades crioulas como resposta às mudanças climáticas8 e promoção da soberania alimentar13.
O presente este estudo analisa a estrutura e a dinâmica de um sistema local de conservação on farm e os motivos que levam os agricultores a manter suas variedades de milho crioulo mesmo na presença de variedades comerciais. A diversidade genética encontrada nas variedades crioulas resulta das práticas adotadas pelos agricultores, entre elas destaca-se a seleção de sementes14)(15. Agricultores familiares de todo o mundo conservam recursos genéticos que lhes conferem autonomia produtiva e alimentar sem depender de insumos nem de sementes externas16)(17)(18. Por meio da seleção dirigida, os agricultores desenvolvem as chamadas variedades crioulas, determinando as características que lhes são mais desejáveis19)(20)(21. Nesse sentido, a hipótese trabalhada propõe que as sementes crioulas geram autonomia e são ao mesmo tempo fruto da autonomia dos agricultores na relação com os recursos genéticos locais, sendo que sua conservação depende do livre acesso pela agricultura familiar à agrobiodiversidade assim como de sua constante seleção para adaptação a seus sistemas produtivos e usos. Essas variedades normalmente são submetidas à seleção para preservar-se caracteres relacionados à produção a cada safra, proporcionando bom desempenho nas condições ambientais em que são cultivadas22. Essa seleção responde a critérios múltiplos definidos pelos agricultores, e refletem sua diversidade de usos e objetivos em relação à variedade23. Essa é sua natureza fundamental como sistema dinâmico de equilíbrio. Seu equilíbrio é como o de uma duna de areia: as sementes crioulas mudam ano a ano para permanecerem como sementes crioulas24.
2. Materiais e Métodos
Foram escolhidos dois municípios da região da Zona da Mata de Minas Gerais, Brasil, com a presença de famílias agricultoras que cultivam milho (Zea maiz L.), incluídas aí variedades crioulas. Um total de 20 famílias foram visitadas. As informações foram levantadas por meio de entrevistas semiestruturadas (cf. materiais suplementares). Os contatos para as entrevistas foram intermediados por uma agricultora liderança na região que acompanhou as visitas. O consentimento prévio, livre e informado para a realização da pesquisa se deu coletivamente em reunião da Comissão de Mulheres que atua na região. As indicações dos agricultores seguiram o modelo de amostragem não-probabilístico bola de neve, segundo o qual os participantes possuem característica de interesse e são indicados dentro de uma mesma rede de relações25. Buscou-se obter, assim, uma amostra da realidade que permitisse a identificação das variedades de milho localmente cultivadas e seus sistemas de conservação e uso. O questionário aplicado levantou informações a respeito (i) da propriedade e da família agricultora, (ii) dos sistemas e cultivo das roças de milho e (iii) das variedades cultivadas26)(27. As atividades de campo ainda incluíram observação participante e caminhadas pelas propriedades. As informações obtidas foram tabuladas reunindo as respostas dos informantes por pergunta e posteriormente analisadas em bloco.
2.1 Transparência dos dados
O conjunto dos dados que deu origem ao presente artigo está publicado e disponível na íntegra28.
3. Resultados e Discussão
3.1. Riqueza e abundância
A área total das propriedades dos agricultores entrevistados variou entre 0,5 ha e 28 ha, somando um total de 123,3 ha e média de 6,16 ha. Nem todos cultivam em terra própria. São 6 as famílias que produzem em sistema de meia, plantando nas terras de vizinhos ou parentes, fato que pode influenciar na variedade plantada. Dois dos entrevistados arrendam suas terras para meeiros cultivarem milho. A maior parte dos agricultores entrevistados (70%) cultiva apenas variedades crioulas de milho. Os demais cultivam variedades crioulas e comerciais em proporções diferentes, com a maioria destes tendo áreas maiores de variedades comerciais (Figura 1). Com relação à área total plantada no universo estudado, prevalecem as variedades crioulas (74%). Estimar a importância relativa das variedades crioulas no lugar de apenas constatar sua presença evita conclusões equivocadas sobre a diversidade da espécie numa dada região1.
3.2. Origem das variedades
Foram relatadas 10 formas diferentes de acesso a variedades de milho pelas quais circulam variedades comerciais (mercados e prefeitura) e crioulas (todos os demais) (Figura 2).
Os mecanismos locais de acesso às variedades (família, leilão, meeiro, troca, pais e vizinhos), juntos, correspondem a 56% das observações. Considerando que os eventos e os intercâmbios são espaços onde os agricultores praticam relações não mediadas pelo mercado, a contribuição dos canais curtos de acesso a sementes passa a representar 72%. Com exceção da semente fornecida pelo meeiro, todas as demais são variedades crioulas. Das 9 observações que fizeram menção ao vizinho como fonte da variedade, 8 delas citaram o mesmo agricultor. As relações comunitárias bem como a participação dos agricultores em eventos são fontes importantes de acesso a variedades crioulas. Canais institucionais (mercado e prefeitura) estão associados a sementes comerciais.
3.3. Origem da semente de plantio
Foram relatadas 10 formas diferentes de acesso a sementes para plantio, predominando a produção própria de sementes (63,3% das observações). Houve coincidência entre as sementes oriundas de compras, prefeitura e meeiro/patrão com os materiais híbridos comerciais (Figura 3). Para esta discussão foi adotada definição segundo a qual a origem do lote de semente de plantio é definida independentemente da origem da geração prévia da semente23. Dessa forma, o lote de sementes é “semente própria” quando as espigas das quais as sementes de plantio foram selecionadas foram colhidas pelo agricultor, mesmo se as sementes que deram origem a essas espigas (i.e., a geração prévia da semente) tiveram origem em outra região. Feiras, trocas de sementes, encontros entre agricultores e também mercados locais são espaços que permitem livre circulação desses materiais e ampliam o acesso dos agricultores a novos materiais e ao resgate de variedades perdidas8)(25)(29)(30)(31.
Nos sistemas locais de sementes, os agricultores desempenham papeis diferentes e são assim reconhecidos por suas comunidades e redes de relações, conforme seu grau de envolvimento com o aprovisionamento de materiais de qualidade para plantio23)(32. Das 9 observações que mencionaram o vizinho como fonte da variedade, 8 delas fizeram referência ao mesmo agricultor. Seu papel na circulação local de sementes é o de “agricultor nodal”25, ou “guardião das sementes”33)(34.
Duas agricultoras relataram o receio de espalhar sementes contaminadas por transgênicos, levantando questões sobre como a potencial presença de contaminação nas sementes locais afetará a confiança da comunidade nos guardiões. Para além de seus potenciais impactos ecológicos35)(36)(37, ainda são poucas as pesquisas que procuraram avaliar como essas normas sociais, valores e práticas podem ser afetadas pela presença de transgênicos numa região e a consequente possibilidade de contaminação38)(39.
3.4. Tempo de cultivo da variedade
Como visto acima (item 3.4.), 21,3% das variedades de milho localmente cultivadas no ano de 2018 vieram de fora da comunidade (Comprada, Encontros, Prefeitura e Patrão/Meeiro). Tal valor indica que o sistema local de sementes é aberto à entrada de novos materiais e ajuda a interpretar os dados sobre tempo de cultivo de cada variedade. Ou seja, é de se esperar que variedades locais (origem com a família e/ou desde os pais) sejam cultivadas há mais tempo e que variedades introduzidas mais recentemente estejam sendo cultivadas há menos tempo nos locais estudados (Tabela 1).
Se adotado para a definição de “variedade local”, o critério de ela ser cultivada há pelo menos uma geração numa dada localidade23)(32, os valores da tabela acima poderiam incluir 4 (desde os pais) e no máximo 7 variedades (considerando também os casos em que os agricultores informaram cultivar a variedade “há muito tempo”, entendida aqui como há mais de uma geração). As variedades recém-introduzidas e cultivadas entre 1 e 3 anos perfazem quase 1/3 das observações. Dessas 10 variedades recém introduzidas 8 são crioulas, sendo que 5 dessas 8 foram obtidas na própria comunidade. Nota-se haver uma combinação entre a manutenção de variedades antigas e locais e variedades introduzidas mais recentemente nos sistemas produtivos das famílias, tanto crioulas quanto comerciais. As variedades crioulas são predominantes em todas as faixas de tempo acima indicadas. Há um único registro de variedade comercial na faixa de tempo mais de 20 anos. Neste caso, o agricultor informou comprar sementes de milho a cada novo plantio e o nome dado à variedade é o nome da empresa fornecedora da semente. Dessa forma, mais do que interpretar que esta também seria uma variedade entendida como Antiga - isto é, como se estivesse sendo plantada e selecionada repetidamente para adaptação ao lugar - deve-se entender que antigo no caso é o hábito deste agricultor de comprar variedades comerciais da mesma empresa e que estas provavelmente foram se modificando ao longo do tempo, uma vez que o setor costuma lançar novos materiais com certa frequência. Feita essa consideração, pode-se concluir que os dados acima indicam que as variedades crioulas são as que permanecem por mais tempo, ou mesmo gerações numa família, e que novas variedades são introduzidas e testadas no local.
Variedades crioulas também podem deixar de ser cultivadas40. Um dos agricultores informou que “plantava o Sabuquinho”, mas que já plantou um argentino “muito duro, mas conservava bem”, mas não continuou com nenhum deles; planta atualmente uma variedade que chama de Milho de Paiol. Outro agricultor informou que “Trouxe do intercâmbio, em 1997, (milho) Asteca e Caiano”, mas acabou ficando só com o Caiano. O “Asteca era muito duro para debulhar”. Outros são os casos que revelam criação deliberada de diversidade. Um agricultor informou plantar uma variedade chamada Milho do Leilão. Essa seria resultado de um lote variado de espigas que ele adquirira em festa de sua comunidade. A criação de uma nova população de milho a partir da mistura de duas ou mais populações existentes na comunidade também foi registrada em Oaxaca41 e Chiapas42, México. Esse fenômeno indica que os sistemas tradicionais de cultivo de milho são um caso de coevolução entre os seres humanos e uma cultura agrícola43, resultado da interação das populações locais com seu ambiente e o germoplasma nele presente por meio do conhecimento e de suas práticas44.
3.6. Local do plantio de milho no agroecossistema
Os agricultores informaram cultivar o milho em áreas de roça e nos quintais, com predomínio para o primeiro (72,7%). Duas agricultoras informaram plantar tanto no espaço do quintal quanto na roça, e um único agricultor informou plantar no meio do pomar. Algumas inferências sobre os critérios de seleção do local de plantio do milho na propriedade, que dizem respeito à conservação da diversidade, podem ser extraídas cruzando-se essa informação com o tempo que a variedade está com a família e o tipo de variedade (Tabela 2). Cinco das 6 variedades crioulas plantadas nos quintais estão com a família há apenas 1 ano. Tal fato é indicativo de maior cuidado das famílias com essas sementes recém-introduzidas. Como os quintais são espaços próximos às casas e de trabalho mais intensivo, sobretudo das mulheres, isso facilita a multiplicação da variedade e sua observação, visando melhor conhecer a semente recém introduzida e avaliar seu porte, ciclo, adaptação etc. Além disso, é comum os agricultores obterem pequenas quantidades, às vezes uma única espiga, da variedade nova. Esse seria um motivo adicional à preferência dos quintais para multiplicação dessas sementes.
As variedades comerciais, mesmo que cultivadas pela família há apenas 1 ou 3 anos, estão nas roças. Da mesma forma, houve dois registros de variedades crioulas há 1 e 2 anos plantadas apenas no espaço das roças. Pesquisas futuras poderão averiguar se variedades crioulas testadas e multiplicadas nos espaços dos quintais têm seu plantio posteriormente ampliado para as roças no caso de a variedade ser aprovada. Também é possível avaliar se há relação entre o local de plantio de uma dada variedades e seus usos. Não foi registrado plantio de variedades comerciais em quintais.
3.7. Usos e qualidades
3.7.1. Usos e qualidades alimentares e nutricionais
O milho é destinado principalmente para consumo da família e alimentação animal (14; n = 25). Apenas 20% dos agricultores informaram comercializar a produção. Há uma tendência de as variedades comerciais serem destinadas às criações (“não mexemos com hibra, que é pra ração”) e, por outro lado, uma valorização das variedades crioulas para alimentação humana (Tabela 3). Foram destacadas as qualidades culinárias e alimentares das variedades crioulas. Os valores e usos associados das variedades crioulas relatados remetem a um alimento mais saudável, mais autêntico (“tem que ser no moinho de pedra”) e mais saboroso. As variedades híbridas estão mais ligadas à produção. Seu valor como alimento é secundado (Tabela 4).
3.7.2. Usos e qualidades agronômicas
A característica agronômica mais destacada nas variedades crioulas foi a boa conservação no paiol que está ligada ao fato de produzir espigas bem empalhadas e ser pouco atacada por caruncho. Aspectos ligados à sua resistência e rusticidade também foram destacados. Da mesma forma, os agricultores relataram que suas variedades produzem bem. Com relação às variedades comerciais, algumas das características destacadas são o oposto, com destaque para produzir menos palha e não fechar bem a espiga, sendo assim mais atacada por caruncho. O ciclo é mais curto e a produtividade é maior.
As desvantagens das variedades crioulas são que, às vezes, podem crescer demais e tombar, podem produzir muita palha (ou palha muito grossa que dificulta para o gado comer) ou ser difícil de descascar. Estraga no paiol e precisa de terra boa para produzir. As variedades comerciais foram citadas como sendo menos nutritivas (“tem menos proteína”), mais vulneráveis ao ataque de pragas do armazenamento (“o caruncho prejudica muito”) e menos resistentes (“se passar uma semana do trato dele ele adoece”). Os depoimentos com relação às vantagens e desvantagens das variedades crioulas apresentam aparentemente certo nível de contradição (pés fortes e grossos; dependendo do tempo pode tombar ou “milho bem empalhado; difícil de descascar”). São relatos que reforçam a interdependência entre a variedade e seu sistema de cultivo. O tombamento pode estar associado às características genéticas da variedade, mas também é função do espaçamento adotado, da época de plantio, da localização da lavoura no terreno e sua exposição ao vento etc. A diversidade disponível de variedades crioulas, bem como a possibilidade de serem selecionadas in loco para as finalidades desejadas, permite que os objetivos dos agricultores possam ser atingidos sem necessariamente ter de abrir mão da variedade crioula e, com isso, das demais características desejáveis que ela lhe fornece.
Boa produção está entre os critérios de seleção manejados pelos agricultores. Em muitos casos, as variedades crioulas de milho igualaram, ou mesmo superaram as comerciais em termos de produtividade média34)(45)(46)(47. Esses dados ajudam a entender porque mesmo com a disseminação de sementes melhoradas os agricultores seguem mantendo suas variedades48.
4. Conclusões
Os prognósticos de desaparecimento das variedades tradicionais não se confirmaram. Essas sementes continuam sendo usadas e conservadas pois atendem a interesses e demandas locais dos agricultores. Os agricultores familiares mantêm suas variedades crioulas mesmo tendo acesso a variedades comerciais. Esse quadro é resultado de uma opção ativa e consciente dos agricultores que identificam nas variedades crioulas características particulares de maior adequação e compatibilidade com seus meios de vida. São motivos que justificam o cuidado permanente com as sementes. Foi verificada uma dinâmica de circulação de sementes dentro e entre comunidades e outras regiões com diferentes formas de acesso a novos materiais para plantio. Por esses diferentes canais circulam variedades crioulas e comerciais. As relações comunitárias, bem como a participação em eventos, são fontes importantes de acesso a variedades crioulas. Os dados apresentados permitem confirmar a hipótese de que a manutenção da estrutura e dinâmica que caracteriza os sistemas locais de sementes depende da garantia do livre uso dos agricultores familiares dos recursos genéticos locais assim como de sua constante seleção para adaptação a seus sistemas produtivos e usos.