As funções executivas (FE) e as habilidades de regulação emocional (RE) têm sido alvo de estudos devido à sua forte relação com o funcionamento cognitivo e emocional na infância, assim como em outros desfechos na vida adulta, como acadêmico, laboral e de sucesso pessoal (Diamond & Ling, 2020). Programas precoce-preventivos de estimulação das FE e RE são desenvolvidos mundialmente para otimizar o desenvolvimento infantil no contexto escolar (Cardoso et al., 2016; Pandey et al., 2018), antes de existir algum prejuízo cognitivo na vida da criança. Tais ações interventivas visam ao alcance amplo da abordagem de prevenção e/ou de estimulação precoce, com melhor balanço custo-benefício para a saúde e a economia mundiais, em comparação aos desfechos mais limitados das intervenções remediativas clínicas e individuais (Diamond & Ling, 2020; Pandey et al., 2018).
Existem aspectos conceituais no conhecimento das FE e da RE que se sobrepõem e as diferenciam, como também há uma diversidade de modelos teóricos e uma série de questões ainda não respondidas sobre esses construtos (Cardoso et al., 2020). Mais especificamente, há pouco consenso sobre a integração entre elas, já que os modelos teóricos neuropsicológicos tendem a não explicar com clareza a relação das FE com as emoções, não investigando em grande parte o papel das emoções no funcionamento executivo e seus desfechos (Blair & Ursache, 2011). Contudo, pesquisas longitudinais que investigaram o desenvolvimento destas habilidades em crianças, referem que as FE e a RE podem ser consideradas componentes de uma ampla função denominada autorregulação (AR) (Blair, 2002; McClelland et al., 2010). Assim, integram emoção e cognição em um modelo neurobiológico de funcionamento infantil (Blair, 2002; Blair & Diamond, 2008; Carlson & Wang, 2007). Este modelo de AR une diferentes processos cognitivos, emocionais e comportamentais.
De um modo geral, as FE podem ser consideradas como autorregulação cognitiva e são caracterizadas como um variado conjunto de processos cognitivos necessários para a regulação do comportamento, que permitem que os indivíduos se engajem em um comportamento planejado, orientado por objetivos rumo à solução de problemas de maneira mais efetiva (Diamond, 2013; Zelazo et al., 2016). Diamond (2013) sugere que as FE são compostas por três principais componentes, sendo eles, controle inibitório, flexibilidade cognitiva e memória de trabalho. Esse modelo sugere que as FE atuam como mediadores de aspectos emocionais, apesar de enfatizar aspectos mais lógicos e racionais.
A AR emocional está relacionada à expressão das emoções de forma mais adaptativa, envolvendo manejo, modulação e inibição emocional visando a uma melhor adaptação social (Calkins, 2009). O conceito de AR emocional, por vezes, se sobrepõe ao de RE, visto que ambas podem ser consideradas habilidades que englobam tanto o processamento das emoções quanto a regulação, inibição e flexibilidade sobre as emoções (Berger, 2011). A RE está relacionada com a capacidade que o indivíduo tem de gerenciar e regular o seu próprio comportamento, sentimento e resposta fisiológica advindas das emoções, possibilitando uma adaptação adequada às demandas ambientais (2). Assim como as FE, a RE é utilizada em diferentes contextos e faz parte da vida cotidiana dos indivíduos ao longo de toda a vida.
Frente à importância das FE e da RE para o desenvolvimento positivo das crianças, têm-se construído programas de intervenção visando a promoção de estratégias para estimulação destes componentes (Blair & Diamond, 2008; Cardoso & Fonseca, 2016; Cardoso et al., 2020). Dentro desta temática, Diamond e Ling (2016) mencionam que os estímulos que o cérebro recebe são considerados essenciais para a formação e aprimoramento dessas habilidades, e que dentre estes estímulos encontram-se os programas de estimulação neuropsicológica precoce-preventiva.
Neste contexto, os programas de estimulação das FE na infância vêm demonstrando desfechos positivos e significativos em relação ao aprimoramento das habilidades de memória de trabalho (Bierman et al, 2008), controle inibitório (Dias & Seabra, 2016), flexibilidade cognitiva, metacognição, e melhor desempenho acadêmico (Lizarraga et al, 2003). Em paralelo, os programas de RE em escolares vêm mostrando desfechos também positivos quanto à melhoria em resolução de problemas emocionais, habilidades de atenção concentrada (Arda & Ocak, 2012), monitoramento de comportamento de risco e de agressividade (Arda & Ocak, 2012; O'Connor et al., 2014), níveis de intensidade de ansiedade e depressão (Essau et al., 2012), desempenho acadêmico (O'Connor et al., 2014), entre outros. Ainda não é claro, no entanto, se existem diferenças ou superioridade na aplicação de tais intervenções isoladamente para FE, ou para RE, ou de forma combinada-consecutiva, e em quais desfechos. A relevância em investigar a diferença, equivalência ou superioridade da aplicação dos programas existentes de intervenções em escolares, é tornar o oferecimento desses programas custo-efetivos, na medida em que existe um tempo limitado para a aplicação de intervenções complementares nos currículos escolares.
No que se refere a programas de estimulação na infância, foi desenvolvido no Brasil o “Programa de Estimulação Neuropsicológica da Cognição em Escolares: ênfase nas funções executivas (PENcE)” (Cardoso & Fonseca, 2016), que visa estimular as habilidades executivas. Visando-se à ampliação do programa PENcE, foi publicado por Cardoso et al. (2020), o “REPENcE Regulação Emocional”, programa que visa a estimular a RE de acordo com o modelo bidirecional proposto por Blair e Ursache (2011). Em vista da corrente de intervenções neuropsicológicas em FE, o presente estudo buscou investigar se a intervenção exclusivamente de FE (PENcE) seria equivalente, superior ou inferior em relação à intervenção das FE mista em conjunto com estratégias de RE em escolares (PENcE+REPENcE). Mais especificamente, buscou verificar se existe diferença no desempenho executivo, emocional e escolar de alunos do Ensino Fundamental I que foram submetidos a programas de desempenho exclusivamente focados nas FE (PENcE) versus programa misto de FE e RE (PENcE+REPENcE) versus controles. Tem-se como hipótese que o grupo que realizou a intervenção combinada de FE e RE apresentará um desfecho superior ao grupo que realizou a intervenção exclusiva de FE e ao grupo controle. Essa hipótese é baseada na literatura que sugere que a integração de estratégias de regulação emocional com o desenvolvimento das funções executivas potencializa os benefícios, conforme o modelo bidirecional de Blair e Ursache (2011). Além disso, espera-se que o grupo de intervenção exclusivo de FE tenha desempenho superior aos controles nos desfechos, dado que participou de uma intervenção direcionada e com base em evidências anteriores que demonstram os benefícios significativos que a estimulação das funções executivas pode proporcionar (Diamond & Ling, 2020).
Materiais e métodos
Participantes
A amostra foi composta inicialmente por 145 crianças, sendo 34 excluídas por: a) rebaixamento intelectual (percentil 25 ou inferior no teste Matrizes Progressivas Coloridas de Raven adaptado para o português brasileiro por Angelini et al. (1999) (n = 15), b) deficiências sensoriais não corrigidas, condições médicas de ordem genética, psiquiátrica ou neurológica (identificados através de questionários respondidos pelos pais e relato dos professores) (n = 6), c) total de faltas superior a quatro durante a execução da intervenção (n = 6), d) não completar as duas etapas da avaliação (n = 3), e) trocar de escola durante o semestre (n = 4). Assim, a amostra final foi composta por 111 crianças de 3 escolas públicas da região metropolitana de Porto Alegre (Rio Grande do Sul - Brasil). A distribuição dos grupos pode ser visualizada na Tabela 1.
Nota: GCA: Grupo Controle Ativo (PENcE + Currículo); GCP: Grupo Controle Passivo (Currículo); GE: Grupo Experimental (PENcE+ RePENcE+Currículo).
Participaram do estudo oito turmas, divididas em três grupos: um grupo que recebeu uma intervenção mista, ou seja, PENcE seguido do programa REPENcE (quatro turmas; n = 60), um que realizou exclusivamente o programa PENcE (duas turmas; n = 29) e um grupo controle que continuou com as atividades escolares regulares previstas no calendário escolar, sendo assim, não foram propostas outras atividades adicionais a este grupo (duas turmas; n = 22). Os anos escolares foram 3º e 4º ano, sendo que no grupo REPENCE+ PENCE foram 15 do 3º ano, grupo PENCE 19 do 4º ano e o grupo controle 7 do 4º ano. Foram incluídos no presente estudo: alunos que os pais concordaram com a sua participação de forma voluntária através da assinatura do TCLE, alunos do 3º ou 4º ano do Ensino Fundamental I das escolas selecionadas, ter idade entre 8 e 11 anos, não ter repetência prévia e ter realizado pré-escola. A intervenção e as avaliações foram realizadas no ano de 2019, anteriormente à pandemia da SARS-CoV-2.
Procedimentos e instrumentos
Procedimentos éticos
O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (parecer n. 4.292.810). Salienta-se que este estudo atendeu às condições estabelecidas na Resolução 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), considerando o respeito pela dignidade humana e a proteção devida aos participantes das pesquisas científicas envolvendo seres humanos. Este estudo ocorreu em diferentes etapas, sendo elas:1) reunião com a direção e coordenação das escolas, 2) reunião com pais e responsáveis - explicação sobre a pesquisa e seus objetivos e entrega de questionários e termos para pais (todos os grupos), 3) avaliação pré intervenção (todos os grupos), 4) aplicação do PENcE (grupo misto e exclusivo FE), 5) aplicação do REPENcE (somente grupo misto), 6) avaliação pós-intervenção (todos os grupos). Foi realizada uma avaliação cega por avaliadores (n =15), que receberam treinamento prévio na aplicação dos instrumentos utilizados. Os avaliadores eram alunos de pós-graduação e de iniciação científica da universidade à qual o projeto está vinculado. As avaliações ocorreram individualmente, com duração de aproximadamente 1h10min em sala de aula disponibilizada pela escola para este fim.
Instrumentos administrados na avaliação pré e pós-intervenção
Para pais ou cuidadores
1) Questionário de dados sociodemográficos e de saúde que investiga questões relacionadas a saúde do participante, histórico desenvolvimental, aspectos relacionados à escolaridade, verifica o nível socioeconômico familiar, a partir do Critério de Classificação Econômica Brasil (Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa, 2016). No questionário de dados sociodemográficos consta a escala de Frequência de hábitos de leitura e escrita (FHLE) dos responsáveis (Holz et al., 2017), que investiga a frequência de hábitos de leitura e escrita dos pais/cuidadores. Este questionário foi preenchido pelos pais ou responsáveis dos alunos e avaliou a FHLE dos próprios respondentes, e não dos alunos.
Todos os instrumentos a seguir foram administrados individualmente em um local adequado, e a avaliação teve duração aproximada de 1 h10 min. Os testes foram aplicados na sequência a seguir:
Avaliação cognitiva das crianças
1) Matrizes Progressivas Coloridas de Raven (adaptado para o português brasileiro por Angelini et al., 1999): medida de inteligência não-verbal associada à avaliação da inteligência fluída. O ponto de corte adotado foi de percentil 25 ou inferior.
2) Teste Hayling (Burgess & Shallice, 1997; adaptação para população brasileira por Siqueira et al., 2016) que busca avaliar os seguintes construtos: controle inibitório, iniciação, flexibilidade cognitiva e velocidade de processamento.
3) Tarefa Go No Go do Instrumento de Avaliação Neuropsicológica Breve NEUPSILIN-Inf (Salles et al., 2016), avalia inibição e iniciação. Considerou-se o total de acertos, total de omissões e total de erros.
4) Tarefas de fluência verbal livre, fonêmica e semântica (Jacobsen et al., 2016), avaliam diferentes construtos executivos, como inibição, monitoramento, flexibilidade, planejamento, iniciação e velocidade de processamento, além da memória léxico-semântica e habilidades linguísticas. Considerou-se o total de acertos de cada modalidade e total de clusters.
5) Subteste Dígitos da Escala Wechsler de Inteligência 3ª versão (adaptado por Figueiredo, 2002). Visa a averiguar os componentes relacionados à atenção e memória de trabalho. Calculou-se o total de acertos ordem direta, total de acertos ordem inversa, total de acertos ordem direta mais ordem inversa e total de acertos ordem direta menos ordem inversa.
6) Teste Wisconsin de Classificação de Cartas (WCST) - versão reduzida de 64 cartas (Kongs et al., 2000), pretendeu-se avaliar o raciocínio e planejamento abstrato, flexibilidade cognitiva e manutenção de regras bem-sucedidas. Considerou-se as variáveis: número de ensaios administrados, número de respostas corretas, número de categorias completadas, total de erros, total de erros perseverativos, resposta de nível conceitual, fracasso em manter o contexto.
Avaliação dos aspectos emocionais das crianças
1) Questionário de Consciência Emocional (Emotion Awereness Questionnarie EAQ, Rieffe et al., 2008; adaptado para o contexto brasileiro por Seibert et al., 2023), instrumento de autorrelato destinado a crianças e adolescentes, composto por 30 itens, que tem por objetivo verificar como o seu público-alvo sente e pensa sobre suas próprias emoções e dos outros. É dividido em seis dimensões: diferenciar emoções, comunicar verbalmente emoções, não esconder emoções, consciência corporal, atender às emoções dos outros, e analisar as próprias emoções.
Desempenho acadêmico
1) Subteste Aritmética do Teste de Desempenho Escolar - 2ª. Edição (TDE II) (Stein et al., 2019), busca avaliar as habilidades básicas de aritmética. Realizou-se aplicação coletiva deste instrumento, e considerou-se a pontuação bruta do total de acertos na tarefa.
2) Notas escolares atribuídas pelo professor por semestre: refere-se à média calculada quanto ao desempenho em todas as matérias, divididas em três semestres. Calculou-se a média terceiro semestre - média primeiro semestre.
Os programas
O PENcE (Cardoso & Fonseca, 2016) busca potencializar e otimizar o desenvolvimento das FE através de estratégias e atividades cognitivas e lúdicas estruturadas e sequenciais no contexto curricular escolar. É constituído por quatro módulos, 1) Organização e planejamento; 2) Controle inibitório; 3) Memória de trabalho; 4) Flexibilidade cognitiva. Possui estudo de desenvolvimento e evidências de validade de conteúdo (Cardoso et al., 2017) e de efeito, efetividade e transferência (Cardoso et al., 2019). No presente estudo, o PENcE foi aplicado 3 vezes na semana, com duração de 50-60 minutos cada encontro, totalizando 5 meses de aplicação. O programa foi administrado pelo próprio professor da turma, com auxílio de um integrante do projeto de extensão em neuropsicologia escolar. Já o programa REPENcE Regulação Emocional: uma extensão do programa de estimulação neuropsicológica e da cognição em escolares ênfase nas funções executivas quentes (Cardoso et al., 2020), visa a estimular a RE, proporcionando às crianças conhecimento acerca das emoções, estratégias para regulá-las e estilos de comportamento. O programa contempla os seguintes aspectos: 1) identificação das emoções em si (emoções primárias, emoções secundárias, parâmetros de intensidade), 2) identificação das emoções nos outros, 3) estilos de comportamento assertivo, agressivo e passivo. O REPENcE baseia-se na neuropsicologia clínica e escolar, e na Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC). Neste estudo, o REPENcE foi aplicado após a implementação do programa PENcE, que ocorreu três vezes por semana durante um mês, com sessões de aproximadamente 50-60 minutos cada. As atividades foram conduzidas pelo professor da turma, com o auxílio de um membro do projeto de extensão em neuropsicologia. Os professores receberam um treinamento prévio dividido em quatro encontros. Tanto o PENcE quanto o REPENcE seguem um cronograma específico, o qual foi rigorosamente respeitado. Antes do início da aplicação do programa, foram organizados com cada turma os dias e horários disponíveis para a intervenção, a fim de não prejudicar o calendário escolar. O professor foi responsável pela condução das atividades, enquanto o auxiliar estava presente para resolver eventuais dúvidas.
Análise de dados
A comparação das características sociodemográficas entre os grupos foi feita a partir de uma one-way ANOVA e qui-quadrado para, respectivamente, as variáveis contínuas e categóricas. Utilizou-se também a one-way ANOVA, para investigar equivalências entre os grupos no pré-teste. Para analisar possíveis ganhos em decorrência da intervenção por meio da diferença entre os desempenhos no pós e pré-teste (delta) realizou-se uma análise multivariada de covariância (Mancova). Controlou-se o efeito da variável frequência de hábitos de leitura e escrita dos pais, visto que os pais do grupo PENcE+REPENcE apresentaram maiores hábitos de leitura e escrita do que os pais dos demais grupos. Para verificar entre quais grupos se localizavam as diferenças, analisou-se o post hoc Bonferroni. Para cálculo do tamanho de efeito, considerou-se o Eta Square, em que 0,01 tamanho de efeito pequeno; 0,06 médio, e 0,14, grande (Field, 2009). Neste estudo, foram discutidos os achados com tamanho de efeito médio e grande. Os resultados foram considerados significativos se p ≤ 0,05.
Resultados
A Tabela 2 apresenta as características sociodemográficas da amostra para os três grupos na linha de base. Como pode ser observado na Tabela 2, os grupos não apresentaram diferenças significativas na avaliação pré-intervenção em variáveis sociodemográficas. Contudo, o grupo misto PENcE+REPENcE se diferenciou significativamente quanto à frequência de hábitos de leitura e escrita de seus pais/ cuidadores, quando comparado ao grupo PENCE, apresentando maiores hábitos, com tamanho de efeito médio. A Tabela 3 4 y 5 apresenta a comparação entre os três grupos na avaliação pré-intervenção quanto à performance em tarefas de desempenho executivo, emocional e escolar na linha de base de cada grupo.
Nota: f: frequência; M: média; DP: desvio-padrão. *Variáveis analisadas e comparadas com ANOVA entre grupos. **Diferença significativa em p ≤ 0,05. Frequência analisada pelo teste qui-quadrado. 0 = não há efeito.
Nota: M: média; DP: desvio padrão; TDE-II: Teste de Desempenho escolar. *Variáveis comparadas e analisadas com ANOVA. 0 = não há efeito. ***Instrumento utilizado para critério de inclusão/exclusão da amostra.
Conforme apresentado na Tabela 3, os grupos não apresentaram diferenças significativas na avaliação pré-intervenção em relação às medidas de funcionamento executivo, de consciência emocional e de desempenho escolar. Assim, podem ser considerados indistintos na sua linha de base. Na Tabela 4 7 8 9 , é possível verificar os resultados da comparação entre grupos considerando o Delta de cada variável, controlando-se o efeito da frequência de hábitos de leitura dos pais/cuidadores dos alunos. Verificou-se que as crianças que participaram do grupo misto PENcE+REPENcE apresentaram escores significativamente melhores no Tempo A do Teste Hayling, bem como nas variáveis “Consciência Corporal” e “Comunicar verbalmente as emoções” do Questionário de Consciência Emocional (EAQ), quando comparado ao grupo PENcE. Além disso, o grupo misto apresentou escores significativamente melhores, no total de acerto no Go no Go, e o PENcE apresentou menos erros neste mesmo instrumento, ambos em relação ao grupo controle. Os dois grupos, PENcE+REPENcE e PENcE apresentaram diferenças significativas quanto ao total de acertos no WCST em relação ao grupo controle.
O grupo controle apresentou melhor desempenho no total de ensaios administrados no WCST. Por fim, os grupos PENCE e controle apresentaram melhores escores nas tarefas de fluência verbal. Ademais, resultados interessantes foram evidenciados com efeito para a covariável total da frequência de hábitos de leitura e escrita dos pais/cuidadores, sendo possível verificar resultados significativos na ordem direta do subteste dígitos e quanto ao total de respostas corretas no WCST. Neste estudo não foram evidenciados resultados significativos em relação ao Delta para desempenho escolar (aritmética do TDE-II e notas) entre os três grupos.
Discussão
Neste estudo, buscou-se verificar se há diferença entre duas modalidades de estimulação cognitiva: uma com foco em FE e outra combinada consecutiva FE mais RE, além da comparação entre si, ambas foram comparadas à ausência de intervenção específica, ou seja, exposição ao próprio currículo escolar comum (grupo controle passivo). Os alunos que realizaram a intervenção mista de FE e RE apresentaram desfechos superiores ao grupo que realizou a intervenção exclusiva de FE em iniciação, velocidade de processamento, consciência corporal, e comunicação das emoções. Foram mais eficientes em flexibilidade cognitiva e controle inibitório do que o grupo controle. Assim, sugere-se que um programa de intervenção para RE pode aprimorar uma estimulação de FE, além de ser mais promissor do que apenas o currículo escolar.
Mais especificamente, o grupo de intervenção mista apresentou melhores resultados em relação ao controle inibitório, no total de acertos, com mais acertos e menos erros por impulsividade. Isto é, houve maior redução de respostas impulsivas no grupo que foi estimulado com os dois programas consecutivos. Tal achado vai ao encontro dos desfechos em pré-escolares de Dias e Seabra (2016), em que o grupo que realizou a intervenção escolar do PIAFEx apresentou melhor controle inibitório do que o grupo controle.
Os grupos que passaram por intervenções melhoraram significativamente mais que o grupo controle quanto à flexibilidade cognitiva. Com resultados semelhantes em pré-escolares, Dias e Seabra (2016), e Lizarraga et al. (2003) encontraram diferenças significativas quanto ao aprimoramento dessa habilidade após a intervenção em comparação ao grupo controle, demonstrando desfechos superiores para aqueles que realizaram a intervenção.
O grupo PENcE+REPENcE melhorou significativamente mais do que o PENcE quanto à iniciação verbal e à velocidade basal de processamento. Zauza (2018), ao investigar os efeitos do Programa de Intervenção para Promoção da Autorregulação (PIPA), encontrou resultados positivos e significativamente melhores para o grupo que realizou a intervenção quanto à velocidade de processamento. Este resultado pode demonstrar que uma intervenção que inclua a estimulação tanto de habilidades de autorregulação emocional, quanto de FE, pode melhorar significativamente a velocidade de processamento e iniciação de escolares em comparação ao grupo controle.
Por outro lado, os grupos controle e PENcE apresentaram melhoras significativamente mais expressivas que o grupo misto nas tarefas de fluências verbais. Uma possível hipótese para esta diferença inesperada é a ausência de transferência interna para o domínio fluência verbal. Isto pode ser um indício qualitativo de que os alunos do grupo misto estão menos acelerados e, com isso, evocam menos palavras e formam menos clusters no tempo de duração da tarefa, evitando respostas impulsivas. Estes resultados vão ao encontro da melhora evidenciada nos escores de controle inibitório do Go no GO.
Ademais, em relação à consciência emocional, o grupo misto apresentou melhores resultados de consciência corporal e comunicação verbal das emoções se comparado ao grupo que participou somente do PENcE. Esse resultado era esperado, dado que o programa REPENcE é especificamente projetado para estimular habilidades de regulação emocional, incluindo o reconhecimento e a expressão das emoções. Domitrovich et al. (2007), ao investigarem a efetividade do programa curricular “PATHS” por meio de um ensaio clínico randomizado, encontraram que as crianças que realizaram a intervenção apresentaram melhores habilidades de reconhecimento e identificação das emoções. Contudo, não foram encontradas diferenças significativas na comparação com o grupo controle. Portanto, esses achados precisam ser mais explorados em pesquisas futuras para compreender melhor as nuances e os efeitos combinados dessas intervenções.
Além disso, um importante achado deste estudo é o impacto que a maior frequência de hábitos de leitura e escrita dos pais/cuidadores das crianças do grupo misto PENcE+REPENcE teria em desfechos caso não tivesse sido controlada. Essa variável sociocultural pró-estimulação cognitiva natural (Pawlowski et al., 2012) poderia impactar no desempenho quanto à memória episódica de curto prazo e à atenção sustentada e focalizada, além da flexibilidade cognitiva. Estudos que investigam a relação entre leitura e aspectos do contexto familiar apontam que tal habilidade pode estar diretamente relacionada ao contexto que a criança está inserida, incluindo os hábitos dos próprios pais, o quanto eles leem para seus filhos, a disponibilidade de materiais para ser realizada a leitura e o nível de escolaridade dos pais (Kiuru et al., 2013; van Bergen et al., 2015). Ou seja, o suporte parental de modelagem e de estimulação direta pelos ganhos de leitura e escrita mais frequentes pode beneficiar as crianças cognitivamente do grupo misto.
Conclusões
Os resultados do presente estudo sugerem que uma intervenção para RE pode acrescentar e aprimorar os desfechos de uma intervenção específica para FE. De um modo geral, a maioria dos resultados está em consonância com a literatura que aponta que tanto as FE, quanto a RE podem ser aprimoradas por meio de intervenções específicas (Cardoso et al., 2019; Diamond & Ling, 2016; Dias & Seabra, 2016). Salienta-se que Diamond e Ling (2020) e Pandey et al. (2018) destacam que as intervenções de abordagens curriculares destinadas ao estímulo autorregulação (cognitiva e emocional) apresentam vantagens. Por exemplo, sua implementação em sala de aula permite alcançar um grande número de crianças simultaneamente, promovendo acessibilidade ampla, sem a necessidade de seleção individual. Além disso, essas intervenções são altamente custo-efetivas, pois podem ser integradas ao currículo escolar de forma econômica, eliminando a necessidade de recursos adicionais, como profissionais especializados ou materiais específicos.
Considerando-se os resultados do presente estudo, sugerem-se algumas estratégias para otimizar futuros possíveis efeitos de transferência e diferentes desfechos cognitivos e emocionais: 1) inserir estimulação específica de motivação e automonitoramento das emoções durante a execução de tarefas, 2) acrescentar tarefas de casa que também contemplem a participação dos pais, 3) englobar atividades de estimulação de hábitos de leitura e escrita das crianças e de seus pais, 4) aprimorar a quantidade e a qualidade da formação de aplicadores e de mutliplicadores. No que se refere às limitações do presente estudo e direções futuras, aponta-se a necessidade de estudos longitudinais, com a realização de follow-up, a fim de verificar os efeitos a longo prazo dos programas, bem como se os resultados aqui encontrados se mantêm no decorrer do tempo e do desenvolvimento. Em relação ao método, uma limitação foi não ter sido realizada uma avaliação entre os dois programas de intervenção (no intervalo entre PENcE e aplicação do REPENcE), não sendo possível verificar o efeito deste programa isoladamente, bem como não ter medidas válidas ecologicamente para examinar o processamento da RE. Por fim, outra limitaçãodeste estudo é o fato de o grupo controle ter sido um grupo passivo, o que significa que as crianças continuaram com suas atividades regulares na escola, sem nenhuma intervenção adicional. Isso pode ter influenciado os resultados, uma vez que a falta de intervenção no grupo controle pode não ter permitido uma comparação totalmente equilibrada entre os grupos. Além disso, o grupo que recebeu a combinação de PENcE+REPENcE participou de um programa mais extenso do que o grupo que recebeu apenas o PENcE. A duração e a intensidade aumentadas podem ter proporcionado mais oportunidades para a prática e o desenvolvimento das habilidades. Essas limitações sugerem que, em futuros estudos, seria benéfico incluir um grupo controle ativo, que receba uma intervenção alternativa ou uma versão modificada do programa, para melhor avaliar os efeitos específicos das intervenções. Além disso, garantir que os grupos de intervenção tenham uma duração similar pode ajudar a esclarecer melhor os impactos das diferentes abordagens na evolução das habilidades emocionais das crianças.
Ressalta-se que o presente estudo pode contribuir como base e inspiração quanto ao desenvolvimento de políticas públicas, de ações de instituições escolares e de formação de professores e de clínicos da aprendizagem. Essas novas ferramentas podem ser incorporadas na prática pedagógica e clínica tanto em escolas públicas, quanto privadas, buscando potencializar funções cognitivas e emocionais de crianças em idade escolar. Assim, as escolas podem oferecer formação de professores e orientadores educacionais, utilizando programas com evidências científicas, assim como clínicos podem estimular crianças com fator de risco para fins de prevenção ou de redução de prejuízos desenvolvimentais iniciais.